sexta-feira, 12 de abril de 2024

Relendo Glazyev: A Europa tem sido o campo de batalha por um século – o liberalismo perdeu

 



      Ramin Mazaheri – 06 de abril de 2024

/Uma releitura socialista na tese da "multipolaridade" de um possível sucessor de Putin/

A Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria, a
queda da URSS, a ascensão (e o fracasso) da União Europeia – todos esses
são conflitos nos quais a Europa foi central ou primária, e todos
envolveram uma batalha de ideologias. O fracasso inegável, mas
totalmente não relatado, da União Europeia, combinado com o poder de
permanência da China, significa que o veredicto está dado: a ideologia
do liberalismo perdeu.

Esse é o novo “fim da história”?

A visão nacionalista da história moderna obscurece o fato de que o que
importa são as ideologias, não as fronteiras. As ideologias são o que
produzem e definem os sistemas de gestão, ou seja, os governos, e está
claro como água que nos últimos 15 anos o sistema de gestão de
inspiração socialista (China, Irã, Coreia do Norte e, em menor escala,
Rússia) derrotou o sistema de gestão de inspiração liberalista
econômica, militar e politicamente. O liberalismo está em um nadir no
nível da Grande Depressão em termos de admiração global.

A Revolução Francesa não foi o imperialismo francês, mas uma ideia: o
fim do feudalismo. A Primeira Guerra Mundial foi uma ideia: que o
liberalismo – com seus componentes de imperialismo e dominação das altas
finanças – era pelo menos melhor do que o monarquismo absoluto. A
Segunda Guerra Mundial foi uma ideia: que tanto o liberalismo quanto o
socialismo deveriam ser derrubados pelo fascismo nacionalista-
corporativo, mas o fascismo perdeu e foi absorvido pelo campo
liberalista. A Guerra Fria foi uma ideia: que o liberalismo e o
socialismo não podem coexistir e – apenas no campo de batalha da Europa
– o socialismo perdeu. O “mundo unipolar” era uma ideia: que o
liberalismo dará início ao “fim da história” depois de (supostamente)
derrotar o socialismo e absorver o monarquismo e o fascismo.

A ideologia do liberalismo via a Europa na década de 1990 como um
imperialista raivoso veria a lua se ela tivesse oxigênio e água: espaço
virgem para criar um novo mundo. O projeto pan-europeu era de fato esse
novo mundo, pois sua concepção é mais liberal do que a dos Estados
Unidos. A UE/Zona do Euro deveria ser a cidade mais alta e mais
brilhante do liberalismo em uma colina.

Eu estava relendo o influente artigo de Sergey Glazyev Patterns Of
Formation And Disappearance Of Global Economic Poles (Padrões de
formação e desaparecimento de polos econômicos globais <https://
kolozeg.org/patterns-of-formation-and-disappearance-of-global-economic-
poles-sergey-glazyev/>) da primavera de 2023. Glazyev é um político
russo pós-comunista de longa data, economista e atual Comissário de
Integração e Macroeconomia da Comissão Econômica da Eurásia. Ele é
frequentemente considerado um dos poucos possíveis sucessores de Putin,
e seu artigo é excelente – algo que Xi e Khamenei poderiam propor, mas
nunca Trump ou Biden. Ele fornece uma destilação importante da nova
visão multipolar do mundo e, por meio de algumas perspectivas históricas
excelentes e únicas, que estão simplesmente além do conhecimento da
maioria dos analistas ocidentais.

Nele, ele descreve – mas somente se você realmente ler com atenção, pois
ele só menciona isso no final – o que chamarei de “tese imperial vs.
integral”. A última visão de mundo está sendo implementada por uma China
que aceita a diversidade e a soberania – exemplificada por seu projeto
multinacional e multicultural Belt and Road – para substituir a visão de
mundo imperial do Ocidente em declínio. É a rejeição da cooperação
internacional que é a própria essência do liberalismo competitivo e do
imperialismo, afinal de contas – eles não trabalham juntos nem mesmo em
seu próprio bloco, como evidenciado pela pilhagem/autoimolação da UE.

Ele cita o uso do conceito de “Ordem Econômica Mundial” pelo economista
italiano Giovanni Arrighi, do final do século XX, e relata seu resumo da
sucessão dos polos mais dominantes da economia global desde a descoberta
do Hemisfério Ocidental: “elites governantes hispano-genovesa (Gênova
financiou as expedições espanholas), holandesa, inglesa e americana,
agora superadas pelos comunistas chineses”. Em suma, a eficiência da
gestão dos sistemas (não apenas de suas elites, como Glazyev diz
repetidamente) desses polos tornou-se dominante, impulsionou o
desenvolvimento econômico global e – o que é crucial – serviu de modelo
para outros países.

“Eles (o polo dominante) também servem de modelo para os países da
periferia, que tentam alcançar o líder importando as instituições
impostas por ele. Portanto, o sistema institucional da economia mundial
permeia a reprodução de toda a economia mundial na unidade de seus
componentes nacionais, regionais e internacionais.”

O projeto pan-europeu é explicado com precisão aqui: A Europa tomou o
liberalismo americano como modelo, como forma de “alcançar” os EUA, mas
isso não passou de uma catástrofe e um fracasso total.

“As instituições do país líder, que têm uma influência dominante sobre
as instituições internacionais que regulam o mercado mundial e o
comércio internacional, as relações econômicas e financeiras, são de
importância primordial.”

Mas o que fazer quando as instituições do país líder não oferecem mais
um modelo viável? Então temos o mundo ocidental em 2024, e é por isso
que o fracasso da UE/Zona do Euro é a maior história do nosso século até
agora: A eficiência do liberalismo diminuiu, a ponto de modelos
diferentes que antes estavam na periferia terem provado ter modos e
instituições qualitativamente mais eficientes – a democracia socialista
– e agora estão adquirindo o domínio global.

Glazyev escreve que esses sistemas de gerenciamento são tão diferentes
que a transição de um para o outro só ocorreu por meio de uma grande
guerra e revolução social, a fim de esmagar o sistema de gerenciamento
obsoleto. Foi o que aconteceu com o sistema feudal em 1789, a economia
baseada em escravos/colônias em 1865 e o sistema de monarquia absoluta
em 1918, se é que posso dar alguns exemplos. É a recusa em adotar o
sistema de governança mais eficiente e sempre mais moral e democrático
(Glazyev não enfatiza nenhum desses dois últimos componentes críticos)
que leva à estagnação e ao declínio dos outrora dominantes “Modelos
Econômicos Mundiais” (MEI): “…os países centrais do antigo MEI estão
mergulhando em uma crise estrutural e depressão causadas pela
concentração excessiva de capital nas produções obsoletas do antigo modo
tecnológico.”

Essa versão específica do projeto pan-europeu é exatamente esse
investimento excessivo em um modo obsoleto, e esse modo é o liberalismo.

Por fim, em uma seção interessante, Glazyev observa astutamente que,
fora da análise de Arrighi sobre a dominância do Modelo Econômico
Mundial, a Rússia realmente está presente.

“Como resultado dessa competição, surge um líder global que aumenta
constantemente seu domínio. Além deles, há também a Rússia, que mantém
sua influência global em várias formas políticas durante todo o período
considerado, cujo papel histórico foi completamente ignorado por Arrighi.”

É isso que quero dizer com análises que estão simplesmente fora do
alcance da maioria dos analistas ocidentais: grandes porções do mundo
são, muitas vezes, simplesmente omitidas por eles em suas análises
“globais”.

Glazyev tem toda a razão: ele observa que, a partir de 1492, o povo da
Rus manteve um império que, na verdade, não era muito inferior a
qualquer outro dos líderes dos polos – a Espanha imperial, os holandeses
marítimos, os ingleses, os americanos e, agora, os chineses não são
muito mais avançados do que a poderosa Rússia, não? Historiadores,
políticos e analistas centrados no Ocidente ignoraram esse fato da
história, e muitos até mesmo aceitaram alegremente as estupidezes da
descrição ignorante de John McCain da Rússia como “um posto de gasolina
gigante que finge ser um país de verdade”.

Nem mesmo Arrighi pensou nisso: E quanto à Rússia? De fato, mas para
Glazyev eu poderia dizer: e a Pérsia/Irã, que ele mal menciona?

Por que os EUA não conseguem esmagar ou controlar o pequeno Irã, que
McCain provavelmente chamou de “um posto de gasolina gigante que finge
ser uma mesquita”? O Irã não foi esmagado – apesar de todas as décadas
de guerra quente e fria – obviamente por causa da eficiência superior do
sistema iraniano de administração. Essa não é uma resposta nacionalista
que estou dando; estou dando essa resposta para mostrar que o Glazyev
pós-comunista está ocasionalmente pensando em termos de nacionalismo e
interesses patrióticos, e não de ideologia. Poucos estão interessados em
investigar por que o Irã não foi esmagado apesar de todos os esforços, e
perdoe-me por dizer que meu livro sobre o socialismo islâmico iraniano
tinha como objetivo detalhar exatamente por que o estilo de gestão único
(revolucionário) do Irã tem sido tão eficiente.

*Os principais erros de Glazyev, provavelmente causados pela adesão ao
liberalismo*

Devemos corrigir o fato de Glazyev ter relegado os EUA a um polo
completamente secundário de poder global. Séculos de salários roubados e
pilhagem simplesmente não evaporam, e nenhuma nação vai se apossar
violentamente de grande parte das propriedades dos Estados Unidos.
Portanto, digamos que Glazyev esteja realmente falando de um sistema
tripolar em sua visão do futuro, e ele basicamente admite isso mais tarde:

“…O núcleo bipolar da nova IEU (integral) (observação: IEU é usado da
mesma forma que Modelo Econômico Mundial), com polos comunista (China) e
democrático (Índia), cuja concorrência produzirá metade do crescimento
do PIB. […] Por fim, a terceira variedade da nova ordem econômica
mundial é determinada pelos interesses de uma oligarquia financeira que
almeja a dominação mundial. Ela é realizada por meio da globalização
liberal, que consiste na ofuscação das instituições nacionais de
regulamentação econômica e na subordinação de sua reprodução aos
interesses do capital internacional. A posição dominante na estrutura
deste último é ocupada por algumas dezenas de clãs familiares americano-
europeus entrelaçados que controlam as principais participações
financeiras, estruturas de poder, serviços de inteligência, mídia,
partidos políticos e o aparato do poder executivo.”

Índia, China e Ocidente – escolha o seu “Modelo Econômico Mundial” para
seguir.

No entanto, há alguns problemas,

Em primeiro lugar, Glazyev estima a Índia de forma correta e incorreta.
No entanto, sua análise é principalmente louvável ao perceber que a
Índia é uma grande parte do futuro global, o que a maioria dos
ocidentais simplesmente não consegue admitir.

Ele observa que a constituição da Índia declara abertamente que se trata
de uma república socialista (Constituição indiana: A Índia é uma
“república soberana, socialista, secular e democrática”), e ele observa
que em 1969 a Índia nacionalizou seus bancos. O erro de Glazyev é
acreditar que a Índia ainda é “democrática” – e Glazyev dá a entender
claramente que ele quer dizer “democrática liberal”, já que ele
considera a Suíça como uma espécie de igual à “democracia” indiana por
causa do uso de referendos. Os dois não são a mesma coisa, e esse é um
falso agrupamento feito por Glazyev – se a Suíça nacionalizasse seus
bancos privados, o resto do Ocidente liberal invadiria imediatamente e
retomaria seus ganhos ilícitos.

Ele também comete um erro ao acreditar que, por ser “comunista”, a China
NÃO é democrática – isso é totalmente falso, pois a China simplesmente
segue o modelo, as regras, os costumes e as estruturas da democracia
socialista, e não da democracia liberal. Glazyev, sendo um político
liberal democrático russo pós-comunista muito bem-sucedido,
aparentemente não acredita que a China possa ser socialista e
democrática, e também acredita que a Índia seja “democrática”, embora a
nacionalização de seus bancos não seja apenas um anátema, mas até mesmo
uma provocação de guerra para qualquer país liberal “democrático”.

Glazyev também persiste na recusa enlouquecedora e generalizada de
chamar o “liberalismo” simplesmente de “liberalismo”. Não há NENHUMA
diferença entre o “globalismo” e o “liberalismo” no sentido de que –
como Marx observou essencialmente na França de 1848 – ambos são
administrados por e para o 1%. Uma “oligarquia financeira que aspira à
dominação mundial… que consiste na ofuscação das instituições nacionais
de regulamentação econômica e na subordinação de sua reprodução aos
interesses do capital internacional” – é isso que o liberalismo tem sido
há mais de 175 anos! Portanto, devemos perceber que Glazyev não consegue
fazer as distinções corretas entre “liberalismo” e “socialismo”, mas
errar nisso é o que os não socialistas fazem o tempo todo, em seu
esforço para ofuscar o terrível projeto fracassado que são os mais de
175 anos de liberalismo.

De fato, são pontos importantes, mas o ponto mais importante a ser
destacado aqui é que Glazyev está correto ao ver o futuro como uma luta
de três vias entre os modelos de socialismo de esquerda (China),
socialismo de direita (Índia) e liberalismo.

E, como ele observa, assim como a luta anterior entre o socialismo
(URSS), o liberalismo (EUA) e o fascismo (Alemanha), essa é outra
batalha de três, na qual apenas dois polos podem prevalecer.

Da mesma forma, em 1914 também havia três polos – socialismo,
liberalismo e monarquismo – e o monarquismo seria absorvido pelo
liberalismo. Para os socialistas, o monarquismo é, obviamente, um
anátema. O mesmo vale para o fascismo – absorvido pelo liberalismo,
anátema para o socialismo.

Mas é essa exposição do liberalismo como o modo governamental agora
claramente ineficiente que é tão historicamente vital para entendermos e
proclamarmos hoje. O liberalismo é o MEI, agora desacreditado e
obviamente ineficiente, que está em vias de extinção historicamente.

A derrota da Ucrânia no campo de batalha mostrou que o liberalismo – com
toda a sua ameaça imperialista e toda a sua receita tributária
fascisticamente dedicada às forças armadas – não pode lutar contra a
Rússia, de inspiração socialista mais eficiente (no nível do
planejamento econômico-militar). A vitória da China no campo econômico
desde 2008 mostrou que o liberalismo também não pode lutar contra o
modelo mais eficiente de inspiração socialista. Como Glazyev escreve:

“As razões para o desempenho superior da RPC estão na estrutura
institucional do novo MEI (World Economic Model/sistema de gestão), que
garante uma gestão qualitativamente mais eficiente do desenvolvimento
econômico. Ao combinar as instituições de planejamento central e
concorrência de mercado, a nova ordem econômica mundial demonstra um
salto quântico na eficiência da gestão do desenvolvimento socioeconômico
em comparação com os sistemas de ordem mundial que a precederam: o
soviético, com planejamento diretivo e estatismo total, e o americano,
dominado pela oligarquia financeira e pelas corporações transnacionais.”

Basta observar o que a China constrói e o que os EUA constroem – há um
salto quântico na eficiência do desenvolvimento socioeconômico das
nações de inspiração socialista em relação às nações de inspiração
liberal. Basta observar os trens e as rodovias do Irã moderno – não há
nada nos EUA que se compare a isso porque o liberalismo se tornou
ineficiente, ficou para trás; agora existem modelos CLARAMENTE
superiores. Com o advento do mundo digital – e agora do mundo da IA – os
cálculos estão ficando cada vez mais rápidos e mais óbvios: o
liberalismo pode ser capaz de vencer o antigo sistema colonial/hacienda,
mas o capitalismo financeiro burguês não é mais eficiente do que os
sistemas de inspiração socialista.

Tudo isso é claro e inegável, assim como a vitória da Rússia sobre os
esforços combinados do Ocidente liberal na Ucrânia.

Glazyev, talvez como um político liberal, quase não discute o
imperialismo ou a moralidade – o primeiro porque isso exporia a
verdadeira base oculta da alegada “eficiência” do liberalismo: *“S.
Huntington admitiu, ‘não por causa da superioridade de suas ideias,
valores morais ou religião (aos quais poucas outras civilizações se
converteram), mas sim por causa da superioridade no uso da violência
organizada'”[Enfase adicionada pelo tradutor]*. Esse último não é
discutido porque a moralidade é extirpada do liberalismo, que afirma ser
o modo econômico mais “moral” principalmente por meio da constante e
falsa demonização de outros modos. Para o liberalismo (pense no
“fordismo” do livro Admirável Mundo Novo), a eficiência é a mais alta
moralidade – portanto, podemos dizer que, mesmo nos próprios termos do
liberalismo, agora é claramente “imoral” ser um liberalista.

Glazyev acerta em muitas coisas – é um artigo excelente – mas uma das
coisas em que ele falha é em apontar o fracasso absoluto do liberalismo,
conforme evidenciado pela Europa perpetuamente estagnada. Será que essa
omissão significa que a Rússia cometerá o mesmo erro que o Irã?

Significativamente, Glazyev não aprendeu com o Irã e com a tese
fracassada do JCPOA que a Europa romperia com Washington em questões de
importância primordial para a política externa se os interesses da
Europa estivessem muito ameaçados. A Europa não se separou mesmo quando
o Irã lhe ofereceu termos excelentes e mutuamente benéficos, e vemos
como a Europa não se separou mesmo quando Washington exige que a Europa
se empobreça – por meio da inflação, da destruição de suas reservas de
armas, da destruição de sua reputação no Sul Global – com sua política
incrivelmente autofágica em relação à guerra na Ucrânia.

Glazyev comete um grande erro em sua conclusão ao classificar a Europa
dessa forma em sua seção final de prognósticos, intitulada “Configuração
do polo da nova ordem econômica”:

“A disputa entre os núcleos do antigo e do novo (Modelos Econômicos
Mundiais), a União Europeia, a Turquia e o mundo árabe, cujas chances de
influência mundial dependerão de sua capacidade de se libertar dos
ditames dos EUA.”

A UE não é uma “errante” – ela provou ser um 51º estado repetidas vezes,
e isso porque a questão não é nacionalista, mas ideológica: o advento da
União Europeia acabou totalmente com a metade oriental comunista e a
metade ocidental social-democrata – a Europa é um bloco liberal por
completo agora. Da estrutura à prática – da sopa às nozes e todos as
refeições intermediárias – a diferença entre o que um projeto pan-
europeu poderia ser (1948-2008) e o que o projeto pan-europeu
definitivamente é (2009-hoje) é inegável e clara.

O erro de incluir a Europa nesse agrupamento é cometer o mesmo “erro”
que o Irã cometeu: a UE não é errante, mas está totalmente aliada a
Washington, mesmo que isso lhe custe. É um casamento tóxico, mas o Irã
provou que é um casamento, mesmo assim.

Esse casamento seria impossível se a Europa estivesse dividida em mais
de duas dúzias de nações, mas a União Europeia tem sido uma realidade
política funcional – embora também ineficiente – desde 2009.

Se a Europa, de alguma forma, abandonasse Washington e, portanto,
abandonasse o liberalismo que orienta sua própria governança e
estruturas, isso só poderia ser feito em uma verdadeira revolução que
acabasse com essa versão do projeto pan-europeu e desse ao projeto um
rumo novo e mais progressista. A ideologia em falta aqui não é o “pan-
europeísmo”, mas o mesmo velho liberalismo versus socialismo.

Estamos supondo que a Europa “perceberá” que o socialismo é o modo mais
eficiente de governança antes dos EUA? Por quê? Os dois estão unidos
porque são imperialistas capitalistas liberais por completo.

A resposta final de Glazyev, essencialmente, é que as novas organizações
do Sul Global, como o BRICS, praticamente substituirão ou simplesmente
ignorarão (como o Ocidente faz) as Nações Unidas.

“A associação de países em grandes organizações internacionais, como a
SCO e o BRICS, representa um modelo qualitativamente novo de cooperação
que honra a diversidade em contraste com as formas universais da
globalização liberal. Seu princípio central é o apoio firme aos
princípios e normas universalmente reconhecidos do direito internacional
e a rejeição de políticas de pressão coercitiva e violação da soberania
de outros estados. Os princípios da ordem internacional, compartilhados
pelos países do ‘núcleo’ emergente da nova ordem mundial, são
fundamentalmente diferentes daqueles característicos das ordens mundiais
anteriores moldadas pela civilização da Europa Ocidental….”

É bom que o Comissário para Integração e Macroeconomia da Comissão
Econômica da Eurásia tenha tantas esperanças. Podemos simplesmente olhar
para a incapacidade da ONU de simplesmente controlar a última invasão de
Israel a Gaza como prova da falta de habilidade estrutural da ONU.

Não há dúvida de que o Ocidente liberal, com seus séculos de salários
roubados, manterá grande influência, mas também não há dúvida de que seu
“Modelo Econômico Mundial” está desmoronando em comparação com as nações
de inspiração socialista. A cada dia fica mais claro que isso é óbvio e
que o liberalismo não será imitado por muito mais tempo pela periferia,
apenas imposto, orquestrado e contrabandeado.

A China provou isso economicamente, a Rússia provou isso militarmente e
o Irã provou isso espiritualmente – o liberalismo não é mais um “modelo
eficiente”, para ser gentil.

É um momento incrível para se estar vivo – se você for socialista. O
caos real e existencial dos não socialistas é palpável, merecido e
totalmente evitável.

------------------------------------------------------------------------

Ramin Mazaheri é o principal correspondente da PressTV em Paris e vive
na França desde 2009. Foi repórter de um jornal diário nos EUA e fez
reportagens no Irã, em Cuba, no Egito, na Tunísia, na Coreia do Sul e em
outros lugares. Seu último livro é France’s Yellow Vests: France’s
Yellow Vests: Western Repression of the West’s Best <https://
www.amazon.com/Frances-Yellow-Vests-Western-Repression/dp/0578396416/
ref=sr_1_1?


Em
SAKERLATAM
https://sakerlatam.blog/relendo-glazyev-a-europa-tem-sido-o-campo-de-batalha-por-um-seculo-o-liberalismo-perdeu/
6/4/2024

terça-feira, 9 de abril de 2024

É real a eventualidade de uma Guerra mundial ?

 

 
Serge Marchand , Thierry Meyssan

Uma guerra atómica é possível. A paz do mundo está suspensa pelo dedo
dos Estados Unidos que os « nacionalistas integralistas » ucranianos e
os « sionistas revisionistas » israelitas chantageam. Se Washington não
fornecer armas para massacrar os Russos e os Gazenses, eles não
hesitarão em lançar o Armagedão.


*Segundo o Livro dos Juízes, Sansão é um judeu consagrado a Deus. Tinha
feito voto de jamais cortar os cabelos e dispunha de uma força fabulosa.
No entanto, a sua amante, Dalila, cortou-lhe as tranças durante o sono,
privando-o assim do auxílio de Deus e da sua força. Ele foi feito
prisioneiro pelos Filisteus que lhe furaram os olhos e o atiraram para a
prisão em Gaza. Durante um sacrifício ao deus deles, quando os cabelos
recomeçaram a crescer, ele foi colocado entre duas colunas do palácio.
Sansão afastou-as com a força das suas mãos nuas a fim de as fazer
desmoronar. Assim, ele suicidou-se matando vários milhares de Filisteus. *

As guerras na Ucrânia e em Gaza levaram vários responsáveis políticos de
primeiro plano a comparar o período actual com os anos 30 e a evocar a
possibilidade de uma Guerra mundial. São estes temores justificados ou
trata-se de uma retórica visando criar medo ?

Para responder à esta questão, vamos resumir acontecimentos ignorados
por todos, muito embora conhecidos pelos especialistas. Fá-lo-emos
desapaixonadamente, correndo o risco de parecer indiferentes a esses
horrores.

Em primeiro lugar, temos de distinguir os conflitos na Europa Oriental e
no Médio-Oriente. Eles só têm dois pontos comuns :
*–* » Por si mesmos eles não representam nenhum desafio significativo,
mas sim uma derrota do Ocidente que, após o desaire na Síria, marcaria o
fim da sua hegemonia sobre o mundo.
*–* » Eles são alimentados por uma ideologia fascista, a dos «
nacionalistas integralistas» ucranianos de Dmytro Dontsov [1 <#nb1>] e a
dos « sionistas revisionistas » israelitas de Vladimir Ze’ev
Jabotinsky [2 <#nb2>] ; dois grupos que são aliados desde 1917, mas que
passaram à clandestinidade durante a Guerra Fria e hoje em dia são
desconhecidos do grande público.

Existe no entanto uma notável diferença entre eles :
*–* Nos dois campos de batalha é visível o mesmo furor, mais os «
nacionalistas integralistas » sacrificam os seus próprios concidadãos
(já quase não há mais homens válidos com menos de trinta anos na
Ucrânia), enquanto os « sionistas revisionistas » sacrificam pessoas que
lhes são estranhas, civis árabes.
Há o risco destas guerras se generalizarem ?

Essa é a vontade dos dois grupos pré-citados. Os «nacionalistas
integralistas» não cessam de atacar a Rússia no interior do seu
território e no Sudão, enquanto os «sionistas revisionistas» bombardeiam
o Líbano, a Síria e o Irão (mais precisamente o território iraniano na
Síria, uma vez que o Consulado em Damasco é extra-territorializado). No
entanto, ninguém responde : nem a Rússia, nem o Egipto e os Emirados, no
primeiro caso, nem o Hezbolla, nem o Exército árabe Sírio, nem os
Guardas da Revolução, no segundo caso.

Todos, incluindo a Rússia, desejosos de evitar uma réplica brutal do «
Ocidente Colectivo » que conduziria a uma Guerra Mundial, preferem
encaixar os golpes e aceitar os seus mortos.

Se houvesse uma generalização da guerra, esta já não seria só
convencional, mas sobretudo nuclear.

Se são conhecidas as capacidades convencionais de todos, ignora-se em
grande parte as suas capacidades nucleares. No máximo sabe-se que apenas
os Estados Unidos utilizaram bombas nucleares estratégicas durante a
Segunda Guerra Mundial e que a Rússia afirma dispor de portadores
nucleares hipersónicos com os quais nenhuma outra potência pode
rivalizar. Contudo, alguns peritos ocidentais põem em dúvida a realidade
destes prodigiosos avanços técnicos. No plano de fundo, qual é pois a
estratégia das potências nucleares ?

Para além dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, também
a Índia, o Paquistão, a Coreia do Norte e Israel dispõem de bombas
atómicas estratégicas. Todos, salvo Israel, as encaram como meios de
dissuasão. Os média (mídia-br) ocidentais apresentam igualmente o Irão
como uma potência nuclear, o que a Rússia e a China oficialmente
desmentem. Durante a guerra do Iémene, a Arábia Saudita comprou bombas
nucleares tácticas a Israel e utilizou-as, mas não parece dispor delas
em permanência, nem dominar a sua técnica.

Só a Rússia realiza regularmente exercícios de Guerra nuclear. Durante
os de Outubro passado, ela admitia perder um terço da sua população em
poucas horas, depois simulando o combate saía vencedora.

Em última análise, o conjunto das potências nucleares não pensa disparar
primeiro, pois isso levaria, sem dúvida nenhuma, à sua destruição. À
excepção de Israel que, pelo contrário, parece ter adoptado a « Doutrina
Sansão » («Quero morrer com os Filisteus»). Seria, portanto, a única
potência a imaginar o sacrifício final, o «Crepúsculo dos Deuses», tão
caro aos nazis.
Duas obras criticas foram consagradas ao átomo militar israelita : /The
Samson Option : Israel’s Nuclear Arsenal and American Foreign Policy/ (A
Opção Sansão : O Arsenal Nuclear de Israel e a Política Externa
Americana-ndT) de Seymour M. Hersh (Random House, 1991) e /Israel and
the Bomb/ (Israel e a Bomba-ndT) de Avner Cohen (Columbia University
Press, 1998, traduzido em francês pelas edições Demi-Lune) [3 <#nb3>].

O átomo militar jamais foi encarado como uma forma de dissuasão
clássica, apenas como a garantia que Israel não hesitará em se suicidar
para matar os seus inimigos mais do que aceitar ser vencido. Este é o
complexo de Massada [4 <#nb4>]. Esta maneira de pensar inscreve-se na
linha da « Directiva Hannibal » segundo a qual as FDI devem matar os
seus próprios soldados em vez de os deixar cair prisioneiros do
inimigo [5 <#nb5>].

Durante a Guerra dos Seis Dias, o Primeiro-Ministro israelita, o
Ucraniano Levi Eshkol, deu ordens preparar uma das duas bombas de que
Israel dispunha na altura a fim de a fazer explodir não muito longe de
uma base militar egípcia no Monte Sinai. Este plano não foi executado,
já que as IDF venceram muito rapidamente esta guerra convencional. Se
tal tivesse tido lugar, as repercussões teriam morto grande numero não
só Egípcios, mas também de Israelitas [6 <#nb6>].

Durante a Guerra de Outubro de 1973 (dita no Ocidente « Guerra do Yom
Kippur »), o Ministro da Defesa, o Israelita de origem ucraniana Moshe
Dayan, e a Primeiro-Ministro, a Ucraniana Golda Meir, pensaram de novo
em utilizar 13 bombas atómicas [7 <#nb7>].

*As revelações de Mordechai Vanunu na manchete do Sunday Times. *

Em 1986, um técnico nuclear da Central de Dimona, o Marroquino Mordechaï
Vanunu, revelou o programa nuclear militar secreto de Israel ao /Sunday
Times/ [8 <#nb8>]. Ele foi raptado pela Mossad em Roma, a ordens do
Primeiro-Ministro israelita e pai da bomba atómica, o Bielorusso Shimon
Peres. Foi julgado à porta fechada e condenado a 18 anos de prisão, dos
quais 11 passados em isolamento total. Ele foi de novo condenado a 6
meses de prisão por ter ousado dar uma entrevista à Rede Voltaire.

Em 2009, Martin van Creveld, o principal estratega de Israel,
declarava : «Possuímos várias centenas de ogivas atómicas e de foguetes
e podemos atingir os nossos alvos em todos os azimutes, até mesmo Roma.
A maior parte das capitais europeias fazem parte dos alvos potenciais da
nossa Força Aérea (…) Os Palestinianos devem ser todos expulsos. As
pessoas que lutam com este fim esperam simplesmente a chegada da “pessoa
certa na hora certa”. Há apenas dois anos, 7 ou 8 % dos Israelitas eram
da opinião que essa seria a melhor solução, há dois meses eram 33 % e
agora, segundo uma sondagem Gallup, o número é de 44 % a favor».

Assim é razoável pensar que nenhuma potência nuclear, excepto Israel,
ousará cometer o irreparável.

Precisamente, foi o que o Ministro do Património, Amichai Eliyahu (Otzma
Yehudit/Força Judaica), imaginou na Rádio/Kol Berama/, em 5 de Novembro
passado. A propósito da arma atómica contra Gaza, ele declarou : « É uma
solução... é uma opção » Em seguida comparou os residentes da Faixa de
Gaza aos « nazis », garantindo que « não existem não-combatentes em Gaza
» e que este território não merece ajuda humanitária. « Não há gente que
não esteja implicada em Gaza ».
Estas declarações levantaram a indignação no Ocidente. Mas, apenas
Moscovo se espantou que a Agência Internacional de Energia Atómica não
agisse [9 <#nb9>]]].

É muito provável que seja esta a razão que leva Washington a continuar a
armar Israel enquanto reclama um cessar-fogo imediato : se os Estados
Unidos não fornecerem mais armas a Telavive para massacrar os gazenses,
esta poderia recorrer à arma nuclear contra todos os povos do região,
Israelitas incluídos.
Na Ucrânia, os « nacionalistas integralistas » haviam previsto fazer
“dançar” os Estados Unidos com o mesmo argumento : a ameaça nuclear ou,
à falta, a das armas biológicas [10 <#nb10>]. Em 1994, a Ucrânia, que
dispunha de um vasto arsenal de bombas atómicas soviéticas, assinou o /
Memorando de Budapeste/. Os Estados Unidos, o Reino Unido e a Rússia
deram-lhe garantias de integridade territorial em troca da transferência
de todas as suas armas nucleares para a Rússia e da assinatura do
Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP). No entanto, após o
derrube do Presidente eleito, Viktor Yanukovych, em 2014 (EuroMaidan),
os «nacionalistas integralistas» trabalharam para voltar à nuclearização
do país. Aos seus olhos isso indispensável para erradicar a Rússia da
face da Terra.

Em 19 de Fevereiro de 2022, o Presidente ucraniano, Voloymyr Zelensky,
anunciou durante a Conferência anual de Segurança de Munique que ia por
em causa o /Memorando de Budapeste/, a fim de rearmar o seu país no
plano nuclear. Cinco dias depois, em 24 de Fevereiro de 2022, a Rússia
lançou a sua operação especial contra o governo de Kiev com vista à
aplicação da Resolução 2202. Ela colocou como objectivo ultra-
prioritário tomar o controlo das reservas secretas e ilegais da Ucrânia
em urânio enriquecido. Após oito dias de combates, a central nuclear
civil de Zaporizhia foi ocupada pelo Exército russo.

*Laurence Norman, enviado especial do Wall Street Journal ao Fórum de
Davos sobre o nuclear iraniano, relatou no Twitter a declaração de
Rafael Grossi sobre o nuclear ucraniano, mas não publicou nenhum artigo
a respeito. A informação foi confirmada por um outro jornalista, do New
York Times desta vez, sempre no Twitter. *

Segundo o Argentino Rafael Grossi, Director da Agência Internacional de
Energia Atómica, que se pronunciou três meses mais tarde, em 25 de Maio,
no Fórum de Davos, a Ucrânia tinha secretamente armazenado 30 toneladas
de plutónio e 40 toneladas de urânio em Zaporizhia. A preços de mercado,
esse stock (estoque-br) representava, pelo menos, US$ 150 mil milhões
(bilhões-br) de dólares. O Presidente Russo, Vladimir Putin, declarou :
«A única coisa que falta [à Ucrânia] é um sistema de enriquecimento de
urânio. Mas é uma questão técnica e para a Ucrânia isso não é um
problema insolúvel». No entanto, o seu Exército havia já retirado uma
grande parte desse stock da Central. Os combates prosseguiram aí durante
meses. Se os nacionalistas integralistas ainda as tivessem, teriam feito
como os «sionistas revisionistas» hoje : teriam exigido sempre cada vez
mais armas e, em caso de recusa, teriam ameaçado utilizá-las, quer
dizer, lançar o Armagedão.

Regressemos aos campos de batalha actuais. Que observamos ? Na Ucrânia e
na Palestina, os Ocidentais continua a fornecer um arsenal
impressionante aos «nacionalistas integralistas» e, em menor grau, aos
«sionistas revisionistas». No entanto, eles não têm nenhuma esperança
razoável de fazer recuar os Russos, nem de massacrar a totalidade dos
gazenses. Na pior das hipóteses podem levar os aliados a esvaziar os
seus arsenais, a sacrificar todos os Ucranianos em idade de combater e
em isolar diplomaticamente o Estado rúfia de Israel. Aliás, era Moshe
Dayan que dizia : «Israel deve ser como um cão raivoso, demasiado
perigoso para ser controlado».

Imaginemos que estas consequências, aparentemente catastróficas, sejam
na realidade o seu objectivo.

O mundo ver-se-ia então dividido em dois como durante a Guerra Fria,
exceptuando que Israel se teria tornado um pária. No Ocidente, os Anglo-
Saxões continuariam a ser os mestres, tanto mais porque seriam os únicos
a dispor de armas, tendo os seus aliados esgotado as suas na Ucrânia.
Israel isolado, como no fim dos anos 70 e princípio dos anos 80, quando
só era verdadeiramente reconhecido pelo regime do apartheid da África do
Sul, cumpriria ainda a missão que lhe foi originalmente confiada :
mobilizar, ao serviço do Império, a diáspora judaica que temeria uma
nova vaga “anti-semita”.

Esta sombria visão é a única que pode permitir aos Anglo-Saxões não se
afundarem e continuar a ter vassalos, mesmo que isto já não tenha maior
relação com o seu poderio da época do «mundo global». É por isso que
eles se colocaram na inextricável situação actual. Os «nacionalistas
integralistas» e os «sionistas revisionistas» fazem-nos “dançar”, mas
eles entendem manipulá-los para dividir o mundo em dois e preservar o
que podem da sua supremacia.

Em
REDE VOLTAIRE
https://www.voltairenet.org/article220705.html
9/4/2024

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Lula e seus adversários

 

 

Paulo Nogueira Batista Jr

"A situação do governo Lula, difícil desde o primeiro dia, parece ter
sofrido alguma deterioração nos meses recentes. Não chega a ser
surpreendente", indica

A situação do governo Lula, difícil desde o primeiro dia, parece ter
sofrido alguma deterioração nos meses recentes. Não chega a ser
surpreendente. Sempre há uma lua de mel e ela sempre acaba. Mais
importante, a herança recebida dos governos anteriores é pesada, são
muitas as dificuldades de recuperar a máquina pública e – ponto de quero
tratar hoje – são poderosos os adversários políticos do governo.

Cheguei a pensar em intitular o artigo “Governo sitiado”, mas me pareceu
pesado e sombrio demais. Aí pensei em amenizar colocando um ponto de
interrogação, mas isso também não resolveu. Não cabe espalhar pessimismo
e desânimo. Os adversários são poderosos, mas o governo Lula tem seus
recursos e pode prevalecer. Antes de entrar no assunto, porém, faço uma
advertência. As questões de política e economia política são sempre
pantanosas, obscuras, sujeitas a incertezas radicais. Quem se aventura a
escrever ou falar sobre isso precisa avisar o leitor ou a leitora de que
o que se diz ou coloca no papel fica sempre no terreno das conjecturas e
hipóteses. Muitos dos que se aventuram não o fazem e, pior, se deixam
embalar pela própria retórica e cometem não só afirmações taxativas
sobre o presente e o passado, como se lançam em previsões, adotando às
vezes um tom profético. E a história mostra que mesmo os grandes
profetas se enganam.   *Os cinco blocos de poder* Mas vamos ao assunto.
O objetivo fundamental dos adversários do governo Lula é claro e
cristalino: enfraquecê-lo para que chegue derrotável à eleição de 2026.
Derrotável significa para eles não apenas a possiblidade de ganhar a
eleição. Caso isso não seja possível, desejariam encontrar um Lula
fragilizado, suscetível a fazer concessões importantes.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Obviamente, os adversários formam um grupo bem heterogêneo, o que
facilita o seu enfrentamento. Lula, com sua vasta experiência e grande
habilidade, sabe aproveitar-se dessas diferenças para avançar.

Para facilitar a exposição, vou distinguir quatro grandes blocos
políticos, ou cinco se incluirmos a centro-esquerda liderada pelo
Presidente da República. Os adversários principais são:

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

 1. A extrema-direita, que emerge depois de 2018 com a eleição de Bolsonaro.
 2. A direita tradicional ou centro-direita, isto é, o/establishment/,
    os donos do poder e do capital, cuja fração hegemônica é o capital
    financeiro, o chamado “mercado”.
 3. A direita fisiológica, o chamado ”Centrão”, que não tem ideologia
    definida, mas controla o Congresso e age de maneira consistente,
    sempre procurando abocanhar pedaços de poder e recursos orçamentários.
 4. Os militares, quase sempre hostis à esquerda e historicamente
    propensos a golpes de Estado.

Com exceção da direita fisiológica, todos esses blocos de poder têm
importantes ramificações internacionais. A extrema-direita bolsonarista
encontra eco e apoio em Trump nos Estados Unidos, em Milei, na
Argentina, e em diversos países da Europa, onde a extrema-direita
governa ou cresce em popularidade e ameaça vencer eleições. A direita
tradicional sempre teve ligações umbilicais com os EUA e encontra
contrapartes influentes em todos os países desenvolvidos e no resto da
América Latina. Os militares, por sua vez, mantêm vínculos históricos
com os militares americanos, sendo a sua formação muito influenciada
pelas concepções políticas e estratégicas do Departamento de Defesa.

Qualquer taxonomia é sempre uma simplificação. As fronteiras entre os
blocos políticos são fluidas. Há muitas figuras intermediárias, com os
pés em mais de uma canoa. Com frequência, os blocos se misturam,
estabelecendo diferentes alianças políticas e combinações variáveis ao
longo do tempo. A própria palavra “bloco” talvez não seja a mais
adequada, pois passa uma sensação enganosa de solidez e uniformidade.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

*A Arca de Noé*

É imenso, portanto, o desafio para Lula. Quando se critica o governo
atual, e eu mesmo o faço com alguma frequência, não se deve perder de
vista esse contexto político – tanto mais que Lula e a centro-esquerda,
com todas as suas deficiências e limitações, são os únicos que oferecem
uma perspectiva de desenvolvimento com justiça. Politicamente falando,
recorde-se, não há nada significativo à esquerda de Lula. A extrema-
esquerda existe, mas não tem peso político real e também não oferece
saídas convincentes para nossos problemas.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

O melhor que se pode esperar nesse cenário tão complicado é que o
governo Lula consiga negociar com alguns adversários, reforçando a sua
posição – sem, contudo, transigir no essencial e sem se descaracterizar.
Esse requisito é fundamental, como tento explicar na sequência.

A estratégia de Lula, desde 2021 ou 2022, tem sido isolar o principal
adversário, a extrema-direita. Foi assim que ele venceu a eleição.
Compôs com a direita tradicional para derrotar Bolsonaro que, em busca
da reeleição, contava com a máquina do governo e a fidelidade, ou pelo
menos a simpatia, de uma parte muito expressiva do eleitorado. Lula
ganhou por pequena margem, o que sugere que fez a escolha correta.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Note-se, a propósito, que os donos do poder têm sempre uma pequena
dificuldade no Brasil: raramente ganham eleições presidenciais. Os seus
candidatos não costumam ser competitivos e nem sempre fazem bonito
nessas disputas. Historicamente, os donos do poder recorrem a dois
expedientes tenebrosos. Apoiam candidatos caricatos, mas bons de voto
(Jânio em 1960, Collor em 1989 e Bolsonaro em 2018). Se esta alternativa
não está à mão, eles não se vexam em descartar suas supostas
”credenciais democráticas” para patrocinar golpes militares (como
fizeram contra Getúlio, Juscelino e Jango) ou parlamentares (como
fizeram contra Dilma).  

No caso de Bolsonaro, assim como nos de Jânio e Collor, suponha-se que
seria possível controlá-los depois da eleição. De 2019 em diante,
entretanto, a desordem foi maior do que se esperava e a possibilidade de
controlar Bolsonaro menor do que se esperava. O /establishment/
brasileiro, ou uma parte significativa dele, parece ter se dado conta de
que mais um mandato para Bolsonaro poderia ser desastroso para seus
interesses. Tentaram uma terceira via, que não decolou. Lula foi
percebido como alternativa, contanto que se mostrasse disposto a
negociar com eles. Encontraram receptividade. Lula deixou claro que não
seria revanchista nem radical. Formou-se então a Arca de Noé (expressão
do próprio Lula), a ampla e heterogênea coligação que venceria as
eleições em 2022.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Não querendo e nem podendo praticar um estelionato eleitoral, Lula teve
que formar um governo heterogêneo, tão heterogêneo quanto a Arca de Noé.
Na área econômica, a presença de neoliberais se faz sentir claramente.
Não só no primeiro escalão, como no segundo escalão dos ministérios e do
Banco Central.

Como a direita fisiológica controla o Congresso, Lula também teve que
abrigá-la no ministério e até numa instituição financeira da importância
estratégica da Caixa Econômica Federal. Assim, o primeiro e o segundo
escalão do governo são uma mistura indigesta de quadros da centro-
esquerda, da centro-direita e da direita fisiológica.

Ao mesmo tempo, Lula busca aplacar os militares. Não se dispõe a
confrontá-los; ao contrário, deseja cooptá-los ou pelo menos neutralizá-
los. Foi por isso que resolveu não patrocinar eventos de condenação do
golpe militar de 1964, no seu aniversário de 60 anos. Parte da esquerda
ficou revoltada, sem levar na devida conta, talvez, o quadro político
adverso que tentei descrever acima.

*A caminho das eleições de 2026 *

Prevalece no governo (ou assim me parece) a percepção de que a principal
e mais destrutiva face da oposição continua sendo a extrema-direita
bolsonarista. Imagine, leitor ou leitora, que ela volte ao poder em
2027, seja com Bolsonaro, seja com alguém que ele indique. Não preciso
falar mais nada.

O tempo dirá, mas os demais blocos não parecem ter força eleitoral para
se contrapor à centro-esquerda nas eleições de 2026. Será provavelmente
tão difícil quanto foi em 2018 e 2022 construir uma terceira via
competitiva.

Assim, a aliança constituída para as eleições de 2022 tende a se repetir
em 2026. Não se deve esperar que Lula faça qualquer movimento para
desalojar a direita tradicional de suas posições de poder no governo.
Tampouco que tente romper com a direita fisiológica. Ou que descuide das
sempre problemáticas relações com as Forças Armadas. Confrontação nunca
foi um traço da personalidade do Presidente da República. Ele chegou
aonde chegou escolhendo suas batalhas e comendo pelas beiradas. Por que
mexeria nesse time que está ganhando?

*A máscara se apega ao rosto *

Para terminar, um alerta que me parece importante. Apesar de tudo que
escrevi acima, há um risco que não pode ser negligenciado: o de que o
governo Lula e com ele toda a centro-esquerda se descaracterize e perca
o rumo estratégico. E esse risco é especialmente relevante na disputa
com a extrema-direita.

Onde reside a força política e eleitoral de figuras como Trump,
Bolsonaro e Milei? Em grande parte, na difusão da ideia de que eles se
opõem a um “sistema”, um conjunto de instituições e interesses viciados
que exclui a grande massa da população, inclusive a classe média. Na
Europa, por exemplo, os partidos socialistas e social-democratas se
confundiram com o /establishment/ e copatrocinaram nas últimas décadas
políticas econômicas e sociais excludentes, a chamada agenda neoliberal.
Assim, quem cresceu com a crise do neoliberalismo foi a extrema-direita.
A centro-esquerda minguou, posto que foi vista como parte integrante
desse maldito “sistema”. O PT é a social-democracia brasileira e corre o
risco de cair na mesma armadilha. Vou dizer uma coisa meio desagradável.
No Brasil, de modo geral, há muito jogo de cintura e pouca espinha
dorsal. A centro-esquerda não foge a essa regra. Ela acredita, ou diz
acreditar, que continua fiel a seus propósitos. Que todas as concessões
são um preço a pagar nas circunstâncias. As medidas cautelosas e a
retórica conformista seriam assim uma máscara, a ser retirada quando as
condições forem mais favoráveis. Compreendo. Mas não vamos esquecer o
poema de Fernando Pessoa: “/Fiz de mim o que não soube,E o que podia
fazer de mim não o fiz.O dominó que vesti era errado.Conheceram-me logo
por quem não era e não desmenti, e perdi-me.Quando quis tirar a
máscara,Estava pegada à cara.Quando a tirei e me vi ao espelho,Já tinha
envelhecido.Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha
tirado.Deitei fora a máscara e dormi no vestiárioComo um cão tolerado
pela gerênciaPor ser inofensivoE vou escrever esta história para provar
que sou sublime/.” O poema caiu como uma luva, não é mesmo?     ***

Em
JORNAL 247
https://www.brasil247.com/blog/lula-e-seus-adversarios
5/4/2024

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Genealogía y bases del neofascismo brasileño

 



Fernando de la Cuadra

En este artículo el autor sostiene que existe en la historia de Brasil
una línea que podríamos definir como ‘ur-fascista’ que conecta el
esclavismo con las dictaduras militares y culmina con el bolsonarismo y
neofascismo, que «resurge permanentemente para recordarle a sus
habitantes y a sus instituciones que los soportes democráticos de este
país son demasiado inestables y endebles».

------------------------------------------------------------------------

/El fascismo aún está en nuestro alrededor, a veces en trajes civiles./

*Umberto Eco*

El documental /Extremistas.br/ ganó recientemente el premio Václav Havel
como la mejor película en defensa de los derechos humanos que otorga
el /One World Film Festival/ de la República Checa. El premio recibido
por esta obra documental ha recolocado en el tapete de la discusión un
tema que sigue intrigando a investigadores, académicos, políticos,
periodistas e interesados en general, que se interrogan y analizan el
resurgimiento de la extrema derecha en Brasil y, claro, en el resto del
mundo.

Esta serie compuesta por ocho episodios muestra como el extremismo de
derecha fue tomando cuenta de una parcela significativa de la población
brasileña y las causas que llevaron a miles de ciudadanos a adherir y
difundir los discursos totalitarios de ideólogos radicales inspirados en
el ideario nazifascista: ataques a la democracia, autoritarismo y
despotismo; nacionalismo exacerbado y exaltación del odio y la violencia
en nombre de una supuesta superioridad nacional, culto a las tradiciones
perdidas y construcción de mitos sobre la grandeza del pasado;
animadversión hacia los extranjeros, desprecio por las minorías y
combate vehemente a la diversidad, desconfianza por la cultura, el arte
y la inteligencia[1]; adoración por las armas y culto a la muerte;
machismo y menosprecio hacia las mujeres, entre otras características.

Muchos de estos aspectos tienen su origen en la ideología nazifascista
surgida desde hace un siglo en Italia y Alemania, aunque ellos se han
ido renovando y cambiando a través de los años formándose algo que
Robert Paxton atribuye a la propia dinámica socio histórica del proyecto
fascista, cristalizándose quizás en aquello que Umberto Eco ha llamado
de ur-fascismo o fascismo eterno. Dicha doctrina es integrada por una
constelación de elementos de este mismo tenor y que se encuentran
presentes en los movimientos con esta orientación en las sociedades
contemporáneas.

En la serie documental conocemos la opinión de especialistas y
estudiosos, así como la de un sinfín de militantes de la extrema derecha
que participaron en las actividades que propiciaban un golpe de Estado
para impedir que el candidato electo Lula da Silva pudiera asumir o
mantenerse como Presidente de la República. Pero antes de ello, la serie
va mostrando la diseminación del odio y los discursos antidemocráticos
de numerosos sectores de la población que son alimentados por las /fake
news/ producidas por milicias digitales, personas e instituciones que se
dedican a difundir ataques a personalidades del mundo de la política, el
arte y la cultura. Un capítulo completo del ciclo está dedicado a las
arremetidas realizadas por influenciadores radicales en contra los
miembros del Poder Judicial, en especial, a los ministros del Supremo
Tribunal Federal (STF).

En esa parte de la serie se puede conocer precisamente la labor de un
mercenario digital que recibe un salario mensual para investigar la vida
de diversas personalidades influyentes con el objetivo de difundir
falsas noticias sobre ellas y también para inventar hechos completamente
inverosímiles, pero que son incorporados por los cibernautas como
perfectas verdades[2]. Hay decenas de casos de historias y relatos
burdos desperdigados en el ciberespacio, pero sería agotador citar
algunas de las numerosas mentiras que vienen siendo concebidas durante
los últimos años. Estos grupos de milicianos digitales funcionan en
total anonimato y se inspiran –probablemente sin saberlo- en el conocido
teorema del sociólogo estadounidense William Thomas que decía: “Si los
individuos definen las situaciones como reales, éstas son reales en sus
consecuencias”.

Después de asistir las diversas secciones de Extremistas.br queda muy
claro para el espectador que la emergencia de la extrema derecha y del
“bolsonarismo”[3] no representan un mero capricho histórico o un
accidente del curso de la historia. Ellos no nacieron por casualidad y
sus bases se encuentran ancladas en el devenir de la sociedad brasileña.
En este proceso de extrema derechización de la sociedad cumplen un papel
central las iglesias pentecostales y sus pastores, los cuales viene
insuflando los sentimientos y los comportamientos contra el progreso y
la modernidad de forma vehemente.

Fanatismo religioso, sumado a la ignorancia y falsas narrativas se
funden en una sopa reaccionaria que asume sin matices la lucha del bien
contra el mal. El mal son los izquierdistas, los comunistas, los
homosexuales, los drogadictos que quieren acabar con la libertad de los
ciudadanos de bien que deben protegerse ante esta amenaza permanente. En
el documental se ven escenas de pastores distribuyendo armas entre los
fieles, enseñándoles a disparar para enfrentar a enemigos ocultos que
estarían agazapados esperando el momento propicio para dar el zarpazo final.

Estos comportamientos de personas comunes que viven bajo la influencia
de pastores inescrupulosos son estimulados por el clima de miedo en que
viven los ciudadanos en el mundo actual. Para el crítico literario
británico Terry Eagleton, el fundamentalismo no tiene sus raíces en el
odio, sino en el miedo. Es el miedo de un mundo moderno y cambiante, en
que todo está en movimiento, donde la realidad es transitoria y con
final indefinido, en que las certezas y los pilares más sólidos parecen
haber desaparecido.

Es lo que en otras palabras el sociólogo polaco Zygmunt Bauman
denominaría como “modernidad líquida”. En esta modernidad líquida los
individuos se sienten aislados, fragilizados, carentes de los
referenciales que le daban peso o solidez a las estructuras en las que
estábamos inmersos. Los individuos se ven sucumbiendo ante un contexto
de transformaciones aceleradas que no son capaces de procesar. Los
valores de la sociedad industrial se desvanecen y el pánico a la
inseguridad se apodera de las personas, por eso ellas buscan refugio en
las iglesias, en las sectas o en cualquier entidad que les provea algún
tipo de sustento o piso ante tanta incertidumbre.

En dicho escenario la extrema derecha se nutre competentemente de los
temores, las ansiedades y el malestar de los ciudadanos, transformando
estas sensaciones, en la mayoría de los casos, en sentimientos de
indignación y revuelta reaccionaria. Los problemas concretos de la
gente, por una mejor calidad de vida, por mayor estabilidad laboral y
seguridad ciudadana, por mejores equipamientos y servicios sociales y un
largo etcétera, la extrema derecha los convierte en una convicción
antisistema, contra la política y los políticos, contra los tribunales
de justicia y el parlamento, haciendo que finalmente los sujetos
direccionen su rabia contra las instituciones democráticas y hacia
enemigos invisibles como el comunismo, el globalismo o las fuerzas
satánicas.

La extrema derecha dice entender los problemas y los miedos de la
población y acude para aplacar este sufrimiento psíquico, entregando a
cambio falsas soluciones e impregnando de resentimiento y virulencia la
frustración de las personas. Si a ello le agregamos las bases
conservadoras de una cultura esclavista construida en torno al machismo,
la exclusión y el desprecio por los más débiles, tenemos los
ingredientes necesarios para que el caldo neofascista prospere,
convirtiendo a una parte de esta sociedad en una masa de maniobra que
nutre las expresiones más radicales del pensamiento retrógrado.

En ese contexto, surge en Brasil la figura de Jair Bolsonaro, un ex
capitán expulsado del Ejercito y prohibido de ingresar a los cuarteles e
instalaciones militares, diputado mediocre e inexpresivo del bajo clero
y personaje bizarro que apoyaba dictadores y torturadores. En 2016
mientras se votaba en el Congreso Nacional el /impeachment/ de la
Presidenta Dilma Rousseff, el diputado Bolsonaro le dedicó su voto al
Coronel Carlos Brilhante Ustra, reconocido torturador y asesino de
muchos presos políticos durante la dictadura militar (1964-1985). Lejos
de salir preso del hemiciclo del Congreso por su apología a la tortura,
Bolsonaro se transformó en el vocero de la extrema derecha y el Coronel
Ustra en un héroe para los grupos más radicales que pedían ardorosamente
intervención militar.

Sin embargo, los orígenes de estas expresiones de los ultraderechistas
ya pueden observarse en las manifestaciones que irrumpieron en junio de
2013, durante la realización de la Copa de las Confederaciones. En esa
ocasión, frente a un conjunto innumerable de demandas de diversos
segmentos sociales, surgieron las primeras señales de que se estaba
incubando un movimiento de derecha radical, con grupos enarbolando
banderas con los símbolos nazistas y pancartas llamando a la sedición.
Tales grupos -con células fascistas ya organizadas- exigían la acción de
los militares en la perpetración de un Golpe de Estado que acabase con
el Congreso Nacional, los partidos políticos, el Supremo Tribunal
Federal y, consecuentemente, arremetiese contra los enemigos de la patria.

Estos sectores comenzaron a vestir la camiseta verde-amarilla de la
selección y autoproclamarse como “patriotas” en lucha contra la
corrupción, la decadencia moral, los políticos y el comunismo instalado
en el país. En el documental se muestran imágenes de cursos de tiro para
“ciudadanos de bien” que desean defenderse de las hordas de bárbaros y
marginales que amenazan sus vidas pacatas y cristianas. Disparan a
blancos que simulan ser personas que es preciso eliminar para proteger a
Dios, la patria, la familia y la propiedad.

Quienes verdaderamente lucraron con esta política de armamento de la
población que estimuló el gobierno Bolsonaro, fueron los fabricantes y
comerciantes de armas y también las academias de tiro. En efecto,
durante el gobierno del ex capitán, entre 2019 y 2022, más de un millón
de armas fueron registradas después que el ejecutivo liberó el porte y
uso de armas de fuego. Según los datos recogidos por el Instituto /Sou
da Paz/ por medio de la Ley de Acceso a la Información, en total, casi
un millón y medio de nuevos armamentos entraron en circulación en ese
periodo de cuatro años.

Solamente en 2022, más de 550 mil armas fueron registradas, siendo que
432 mil correspondían a los Clubes de /Colecionadores, Atiradores
Desportivos y Caçadores/ (CAC), que proliferaron de manera descomunal
durante esa gestión. El resto de las armas fueron registradas por
individuos comunes para la defensa personal, principalmente miembros de
las clases más acaudaladas que adhirieron a este discurso de rencor y
peligro inminente diseminado por la extrema derecha.

Como certeramente nos advierte Robert O. Paxton en su libro /La anatomía
del fascismo/, no existe un régimen fascista ideológicamente puro,
aunque –nos recuerda el autor- la mayoría de los estudiosos notaron que
esos regímenes se basaban en algún tipo de pacto o alianza entre el
partido fascista y las poderosas fuerzas conservadoras. Es decir, los
regímenes fascistas no se explican solamente por la incitación estatal,
sino que existirían fuerzas en la propia sociedad que impulsan su
desarrollo. Tampoco existiría un fascismo definido, estático, sino más
bien un fenómeno fascista en permanente movimiento.

Por lo mismo, nos encontramos frente a una multiplicidad de fascismos,
cada cual expresando la dinámica histórica y el contexto en el cual
emerge. El fascismo en Brasil tiene antecedentes en organizaciones de
raigambre y vena autoritaria surgidas en la década de treinta y
amalgamadas en torno al movimiento de la Acción Integralista Brasileña
liderada por Plinio Salgado, que se anunciaba como un movimiento
dictatorial, conservador y cristiano[4].

Por su parte, el gobierno de Getulio Vargas también reúne una cantidad
significativa de características que lo podrían acercar ciertamente del
recetario fascista. Como bosquejábamos en líneas anteriores, la actual
expresión del fascismo a la brasileña se llama bolsonarismo y ella
resulta de una síntesis de múltiples experiencias y miradas sobre el
país, que incluye desde los militares nostálgicos de la dictadura
militar, pasando por los monarquistas que no pierden la esperanza de
recuperar el trono o por grupos pentecostales de la teología de la
prosperidad, o de milicianos que controlan extensos territorios en las
principales capitales o por productores de madera y ganado que desean
seguir depredando los biomas sin ningún tipo de control estatal o de
empresarios conservadores que tienen pavor de perder sus lucros y sus
privilegios en una sociedad que se encaminaba crecientemente hacia
políticas más inclusivas, justas y democratizantes.

En síntesis, tenemos como corolario que matriz esclavista, dictaduras
militares, bolsonarismo y neofascismo forman parte de un mismo eje que
atraviesa la historia brasileña y que resurge permanentemente para
recordarle a sus habitantes y a sus instituciones que los soportes
democráticos de este país son demasiado inestables y endebles.

A dichas conclusiones se puede llegar cuando se asiste el documental
Extremistas.br, una inmersión necesaria para pensar los destinos de esta
Nación atrapada por su historia y por una extrema derecha cavernaria que
ha cooptado o anulado a otros sectores de la derecha tradicional y de
las elites del poder, para impulsar y consolidar su proyecto de
violencia, prejuicio y autoritarismo sobre la nación brasileña.

------------------------------------------------------------------------

*Notas*

[1] Como no recordar a dos icónicos e innobles personajes de esta
postura anti intelectual. El primero, Joseph Goebbels quien declaraba
que “cuando escucho la palabra cultura, saco mi revolver” o al General
José Millán-Astray que en la Universidad de Salamanca enfrentaba a
Miguel de Unamuno con una sentencia brutal: “Viva la muerte, muera la
inteligencia”.

[2] En la película polaca “/Red de Odio/” (2020), el director y
guionista Jan Komasa nos presenta la vida de un joven que comienza a
tener éxito explotando el odio hacia personalidades públicas en campañas
de /fake news/ que se expanden velozmente y se hacen virales en las
redes sociales, acabando con la credibilidad y la imagen de los enemigos
políticos de sus contratantes.

[3] Bolsonarismo es un concepto acuñado por algunos analistas políticos
que ven en la figura del ex capitán aquellos elementos que constituyen
un nuevo ciclo de la extrema derecha brasileña. Si esa expresión se
podrá mantener a partir de la articulación internacional de esta
ultraderecha con otras fuerzas neofascistas dispersas por el mundo es un
asunto que es difícil determinar, aun cuando nos atrevemos a afirmar que
la tendencia pueda ser que sobreviva un bolsonarismo sin el protagonismo
de Bolsonaro.

[4] Su acercamiento al catolicismo aproximaba este integralismo
brasileño más a la experiencia fascista española de Francisco Franco que
a los regímenes totalitarios de la Italia de Mussolini o la Alemania de
Hitler.

*Fernando de la Cuadra es doctor en Ciencias Sociales, editor del
blog Socialismo y Democracia <https://fmdelacuadra.blogspot.com/> y
autor del libro /De Dilma a Bolsonaro: itinerario de la tragedia
sociopolítica brasileña/ <https://fmdelacuadra.blogspot.com/2021/04/de-
dilma-bolsonaro-itinerario-de-la.html> (editorial RIL, 2021).*

Fuente: https://fmdelacuadra.blogspot.com/2024/04/genealogia-y-bases-
del-neofascismo.html <https://fmdelacuadra.blogspot.com/2024/04/
genealogia-y-bases-del-neofascismo.html>

Em
REBELION
https://rebelion.org/genealogia-y-bases-del-neofascismo-brasileno/
2/4/2024

terça-feira, 2 de abril de 2024

Entre Jango e Lula, 60 anos de uma historia que não pode ser esquecida,

 






por Luís Nassif



Nos dois casos havia governos reformistas, com plano de modernizar as
relações sociais no país. Em ambos os casos, foram alvo de uma frente
mídia-militares-empresários brandindo as bandeiras de sempre: corrupção
e comunismo.

Jango caiu porque não respeitou a correlação de forças existentes. De um
lado, havia San Thiago Dantas querendo colocar um mínimo de
racionalidade na elite empresarial brasileira. Ele e Afonso Arinos de
Mello Franco, um jurista ligado a Jango, outro udenista, ambos
racionais, tentaram trazer um mínimo de racionalidade à elite
brasileira, e não conseguiram.

Jango balançava entre a conciliação e a radicalização – para a qual era
empurrado por seu cunhado Leonel Brizolla. Há alguns anos com Almino
Affonso – que defendia posições mais agressivas contra o golpe que se
avizinhava – me disse que Jango estava certo em não medir forças com a
direita. O Ministro da Fazenda do parlamentarismo, Walther Moreira
Salles, tinha a mesma opinião. Havia pessoas como San Thiago, Tancredo
Neves, Franco Montoro, capazes de fazer a mediação. Mas havia uma sede
enorme pelos grandes negócios que poderiam ser abertos pela deposição de
Jango.

A grande diferença em relação ao quadro atual, era o grupo de pensadores
que montaram as chamadas reformas de base.

O país iniciara seu processo de industrialização, com a Companhia
Siderúrgica Nacional, Eletrobras, Petrobras e a indústria
automobilística. Começava a se urbanizar. Ainda havia uma enorme miséria
no nordeste e na periferia das cidades.

Em torno de Jango reuniu-se o melhor grupo de pensadores sociais da
época – muitos deles com papel central no desenvolvimento do Banco
Mundial, em sua fase mais social.

Para o nordeste, Celso Furtado pensou um plano de desenvolvimento
espelhado no Tennessee Valley, criado no período do New Deal, de Roosevelt.

Fundava-se na criação de uma autarquia, a Tennessee Valley Authority (TVA).

A TVA foi criada para resolver diversos problemas enfrentados pelo Vale
do Rio Tennessee, região que englobava partes de sete estados
americanos. A área era marcada pela pobreza, erosão do solo, falta de
energia elétrica e enchentes devastadoras.

As reformas de base

Havia muito mais. Desenvolveram um projeto de reforma agrária para
distribuir aos camponeses terras nas margens das ferrovias que estavam
sendo construídas.

Havia um grupo extraordinariamente brilhante de técnicos, como Josué de
Castro, Paulo Freire, Anisio Teixeira, Darcy Ribeiro.

No plano eleitoral, propunha-se e extensão do direito de voto aos
analfabetos. Para a área urbana, planos de ampliação do saneamento
básico, transporte público e habitação popular.

Propunha-e também um imposto progressivo sobre a renda, um aumento da
tributação sobre grandes fortunas e lucros das empresas e redução da
carga tributária dos mais pobres.

Enfim, a urbanização acelerada que se prenunciava encontraria serviços
públicos de qualidade, um orçamento com responsabilidade social, um
ataque direto à pobreza do nordeste, que passava por períodos tremendos
de seca.

Não apenas em Brasília. Esse espírito de combate à pobreza conquistou o
movimento estudantil, o nordeste tornou-se tema prioritário nas semanas
do estudante.

Todo esse processo civilizatório foi interrompido pelo golpe de 1964.
Por exemplo, a fazenda Bodoquena pertencia à Territorial Franco-
Brasileira, da família Rochefoucauld. Os franceses haviam financiado a
Estrada de Ferro Brasil-Bolívia e adquirido um total de 440 mil hectares
de terra, que iam de Miranda a Porto Esperança, em Mato Grosso, ladeando
os 142 quilômetros da estrada. Seriam desapropriadas para reforma
agrária. Em vez disso, foi vendida para o Grupo Moreira Salles, que
trouxe Nelson Rockefeller como sócio.

Matou-se a vida política nos estados e municípios, com fim das eleições
e uma enorme centralização tributária. No lugar de grupos sociais
organizados – desde Rotary, Lions, Maçonaria, Santas Casas de
Misericórdia, associações de negros – tudo foi substituído pelo deputado
despachante, ligado ao governo e com acesso às verbas federais.

Nos anos seguintes, as políticas de estabilização de Roberto Campos
destruíram milhares de pequenas empresas. Houve um aumento desmesurado
do êxodo do nordeste, com levas de miseráveis indo até Belo Horizonte,
pegando um trem para São Paulo, e tentando empregos mal remunerados para
sobreviver.

As cidades incharam, o ensino público deteriorou-se e, à custa de planos
de desenvolvimento, criou-se uma indústria que padeceu sempre da falta
de um mercado de trabalho robusto. E o controle absoluto exercido pelos
militartes – havia necessidade de autorização até para trocar um
computador de lugar – abriu espaço pára uma corrupção generalizada, com
aparecimentos dos chamados coronéis-maçanetas – que abriam as portas do
estado para negócios.

Pode-se afirmar que o futuro do Brasil foi destruído a partir do momento
que um general tresloucado saiu de Minas Gerais e foi para Brasilia. Mas
não apenas ele. Àquela altura, os conspiradores já tinham distribuído
armas para fazendeiros por todo o país.

Tortura, crimes contra a humanidade, os homens do porão saindo para
constituir milícias, o fim de um país do futuro, tudo isso foi resultado
de uma história que Lula não pretende relembrar.

Em
JORNAL GGN
https://jornalggn.com.br/coluna-economica/entre-jango-e-lula-60-anos-de-uma-historia-que-nao-pode-ser-esquecida-por-luis-nassif/
2/4/2024

segunda-feira, 1 de abril de 2024

A França salva a Europa

 
Published 1 April, 2024 by Quantum Bird <https://sakerlatam.blog/author/
quantumbird/>    





    Novamente. Por assim dizer.


      Aurelien – 27 de março de 2024

*Imagem de capa: *La Retraite de Russie, pintura de Bernard-Edouard Swebach, 1838 – fonte: Musée des beaux-arts de Besançon-WikiCommons

Estamos agora na fase degenerada da crise ucraniana e, mais
especialmente, na triste e patética história das tentativas do Ocidente
coletivo de administrá-la. Os líderes políticos ocidentais estão em modo
zumbi, cambaleando em vários estados de degradação, errando porque não
têm a menor ideia do que fazer, completamente superados por eventos que
não previram e que agora não conseguem entender. As declarações de
líderes nacionais e políticos tornam-se cada vez mais bizarras e
surreais, e a maioria delas não vale a pena ser analisada, pois não têm
quase nenhum conteúdo real. Na verdade, são gritos de raiva e desespero
vindos das profundezas da miséria. Somente o presidente Macron e algumas
outras figuras do governo francês têm dito algo remotamente consistente,
embora quase ninguém na mídia pareça ter o domínio do contexto e do
idioma para entender corretamente o que eles disseram.

O tema deste ensaio é um assunto com o qual tenho convivido e, em alguns
casos, trabalhado, desde o fim da Guerra Fria. Portanto, achei que
poderia ser útil oferecer uma visão (espero) razoavelmente informada
sobre três pontos. Explicarei onde estamos política e militarmente e
como os líderes ocidentais estão, na verdade, lutando por uma estratégia
de saída. Além disso, com um breve desvio para a história, explicarei de
onde acho que os franceses estão vindo e, em seguida, apresentarei muito
brevemente algumas ideias sobre onde tudo isso pode levar.

A ideia de que essa crise tem sua origem na ignorância e estupidez
culpáveis das lideranças ocidentais é amplamente aceita atualmente. Mas
o que não foi suficientemente divulgado, creio eu, é que essa ignorância
foi de fato desejada e deliberada. Isso quer dizer que certas coisas
foram simplesmente assumidas como verdadeiras e nenhuma tentativa foi
feita para verificar sua exatidão, porque não se julgou necessário. A
crença em uma Rússia fraca que poderia ser pressionada, a ideia de que,
mesmo que os russos não gostassem do que estava acontecendo na Ucrânia,
não havia muito que pudessem fazer a respeito, e a convicção de que
qualquer tentativa de intervenção russa se transformaria em caos após
alguns dias, levando a uma mudança de governo em Moscou, não foram
julgamentos feitos após uma análise adequada, foram artigos de fé
ideológica, para os quais não foi necessário ou procurado nenhum apoio
probatório.

E essa também não é a primeira vez. A lista terrível de desastres
políticos ocidentais dos últimos vinte anos, do Iraque à crise
financeira de 2008, à Líbia, à Síria, ao Brexit, à Covid e à ascensão do
chamado “populismo”, distingue-se menos pela malevolência ou estupidez
(embora ambas estivessem presentes) do que por uma crença arrogante na
correção das opiniões da Casta Profissional e Gerencial (PMC) e por suas
visões ignorantes, mas muito firmes, sobre o mundo, às quais o próprio
mundo tinha a responsabilidade de aderir. Por que se preocupar com o
trabalho de descobrir os fatos quando se tem certeza de que já os conhece?

Uma coisa é os governos aceitarem que estavam errados sobre algum fato,
mesmo que isso não seja fácil: outra coisa é aceitar que estavam
iludidos e que seus cérebros estavam cozidos para o almoço. Quando sua
estimativa pública da Rússia e seus comentários no início da guerra não
se baseiam em nenhum conhecimento real ou em nenhuma estimativa
profissional, mas apenas em suposições ideológicas, você perde a
capacidade de reagir e se adaptar à medida que as circunstâncias
demonstram a falsidade de suas suposições. É essa incapacidade que está
causando um colapso nervoso incipiente entre os líderes ocidentais, que
se assemelham cada vez mais a pacientes de uma casa de repouso para
doentes mentais, com seu comportamento antissocial e sociopata. Aqui
está Gabriel Attal, o primeiro-ministro francês adolescente,
aproveitando a oportunidade de um almoço para a comunidade armênia em
Paris, na presença de vários embaixadores, para lançar um ataque verbal
não provocado contra um de seus convidados: o embaixador russo saiu, e
estou surpreso que ele não tenha dado um tapa na cara de Attal e dito
para ele crescer. Esse é o tipo de comportamento que se associa a
crianças perturbadas ou adultos senis, não a supostos líderes nacionais.

Também é um comportamento que você associa a pessoas que estão tão
apegadas a determinadas visões de mundo que não conseguem mudar essas
visões sem se sentirem psiquicamente ameaçadas. Suponho que eu possa ser
acusado de preconceito, mas passei minha existência profissional em duas
áreas – governo e academia – onde, em princípio, se você não sabia do
que estava falando, as pessoas não te ouviam. Mas é claro que a
capacidade de abordar questões é sempre necessariamente limitada, e a
qualidade do governo e da academia caiu drasticamente nos últimos anos,
portanto, talvez não seja surpreendente que os governos ocidentais
tenham se encontrado completamente ignorantes sobre o que estava
acontecendo no início da crise, porque simplesmente não acharam que
valia a pena dedicar recursos para se informar. Era suficiente “saber”
que a Rússia era uma nação fraca e em declínio, que Putin era um ditador
implacável, que o exército russo era incompetente e assim por diante. (A
propósito, dificilmente você poderia pedir um exemplo melhor de como o
“conhecimento” é construído pelo poder: Foucault deve estar rindo em
algum lugar).

Na verdade, não era muito difícil. Você poderia ler um livro, OK, um
artigo, sobre a estratégia militar russa. Você poderia ler um artigo,
até mesmo um artigo curto, sobre a política russa desde 1990. Poderia
ler Clausewitz, OK, um artigo sobre Clausewitz, ou, pelo amor de Deus,
até mesmo a Wikipédia, e depois disso estaria mais bem informado do que
a grande maioria dos políticos e especialistas sobre o porquê e o como
do que está acontecendo. A total falta de vontade das pessoas envolvidas
nessa controvérsia – de todos os lados – de se informarem sobre os
conceitos básicos de estratégia, organização militar e destacamentos,
como a OTAN e as organizações internacionais realmente funcionam e como
as guerras são travadas, continua a me surpreender. Não é como se fosse
difícil aprender alguns dos conceitos básicos, mas as pessoas parecem
preferir permanecer em seus casulos ideológicos, em vez de aprender
alguma coisa.

Portanto, podemos ter como certo que a classe política ocidental e seus
parasitas especialistas nunca admitirão que, fundamentalmente, não
entenderam o que estava acontecendo porque não se deram ao trabalho de
descobrir. É como se algo tão básico e simples como descobrir o que está
acontecendo fosse muito difícil e, de qualquer forma, estivesse abaixo
deles. Há toda uma controvérsia cruel e sem sentido sendo travada em um
espaço virtual por pessoas completamente separadas da realidade. No
passado, isso realmente não importava porque as consequências de nossa
ignorância nunca voltaram para nos assombrar. Desta vez, elas voltarão.

Não é de surpreender, portanto, que os especialistas e, pelo que se pode
perceber, muitos políticos também, sejam incapazes de ver um fim para a
crise, exceto por uma de duas maneiras improváveis. A primeira é, de
fato, o Business as Usual, ou seja, o Ocidente “pressiona” Zelensky a
“negociar” e “concorda” em “conversar” com os russos, estabelecendo
exigências ocidentais que equivalem a algo como uma versão menor da
Ucrânia de 2022. Afinal de contas, “não devemos deixar a Rússia lucrar
com a agressão” ou “determinar o futuro da Ucrânia”, não é mesmo? É
difícil ver o quanto se pode ficar mais distante da realidade, mas essa
é a fantasia coletiva em que as pessoas estão vivendo, a partir da
ignorância voluntária de que falei. Afinal de contas, somos “mais
fortes”, não somos? Em breve, a Ucrânia terá um novo exército, com meio
milhão de homens, e o Ocidente, que tem um PIB e uma população muito
maiores do que a Rússia, poderá armá-los e equipá-los, de modo que as
negociações ocorrerão em uma posição de força. Não é verdade? Não acho
que seja possível argumentar com pessoas que pensam assim, porque mudar
de ideia exige a aquisição de conhecimento, o que é inerentemente
descartado. Do jeito que está, agora há uma confusão total entre o que
queremos que seja verdade e o que é de fato verdade, nas mentes das
elites ocidentais. A ideia de que a Rússia efetivamente ditará o
resultado de qualquer “negociação” sobre a Ucrânia está tão fora de seu
quadro de referência que deve estar errada, e descobrir os fatos básicos
que explicam por que isso acontece é um problema muito grande e, de
qualquer forma, não é para eles. As sociedades liberais, afinal de
contas, trabalham com raciocínio indutivo a partir de postulados
arbitrários.

A visão alternativa é que agora estamos caminhando impotentemente para a
Terceira Guerra Mundial, que começará com a “escalada da OTAN” e passará
por uma guerra convencional total, geralmente em direção a um holocausto
nuclear. As comparações com 1914 parecem estar em toda parte no momento.

Isso negligencia as realidades subjacentes. Para escalar, é preciso ter
algo com que escalar e algum lugar para onde escalar: A OTAN não tem
nenhum dos dois. A ideia de que a OTAN tem enormes forças não
comprometidas esperando para serem engajadas é uma fantasia, baseada em
vagas lembranças da Guerra Fria e no fato indubitável, mas irrelevante,
de que a população da Europa Ocidental sozinha é duas vezes maior que a
da Rússia. É o mesmo argumento que dizer que a China inevitavelmente
vencerá a Holanda no futebol amanhã, porque sua população é muito maior.
O fato é que os exércitos maciços de recrutas que teriam sido
mobilizados na Guerra Fria simplesmente não existem mais. Os exércitos
europeus são pálidas sombras do que costumavam ser: com pouca gente,
pouco equipados, subfinanciados e estruturados para o tipo de guerra
expedicionária que foi perdida no Afeganistão, mas que se supunha ser a
norma para o futuro. A propósito, não sou apenas eu que faço essa última
observação, mas também o General Schill, Chefe do Exército Francês, e
voltaremos a ele em um minuto.

As partes operacionais das forças armadas ocidentais, por mais fracas e
com pouca mão de obra que sejam, não foram projetadas para o tipo de
guerra que está sendo travada na Ucrânia e seriam rapidamente
obliteradas, mesmo que por algum milagre logístico pudessem ser
organizadas e transportadas para a frente de batalha. Mas e os EUA, você
pergunta? Eles ainda não têm cem mil soldados na Europa? Bem, sim, mas a
grande maioria deles está em unidades aéreas (que não desempenharão um
grande papel), treinamento, logística, bandas militares e outras
atividades na área de retaguarda. Há “planos” de enviar unidades dos EUA
para a Polônia em algum momento, mas, por enquanto, tudo o que os EUA
poderiam realmente contribuir seriam algumas forças mecanizadas leves e
tropas aeromóveis e helicópteros: nada bom quando seu oponente tem
divisões de tanques. (A situação é complicada por destacamentos
temporários, exercícios, rotação de unidades e “planos” anunciados, mas
mesmo em circunstâncias ideais, as forças que os EUA poderiam trazer
para uma luta não são muito mais do que um incômodo no que diz respeito
aos russos).

Portanto, a “escalada” do Ocidente, nesse sentido, não tem sentido.
Existe um fenômeno chamado “dominância de escalada”, que é bastante
simples de explicar, e é assim. Você tem uma faca, eu tenho uma faca
maior. Você tem uma faca grande, eu tenho uma arma. Você tem uma arma,
eu tenho uma arma automática. Você tem uma arma automática, eu tenho um
tanque. Em outras palavras, quando o inimigo consegue igualar qualquer
movimento seu e fazer um mais forte, é melhor desistir. Os russos têm o
domínio da escalada sobre o Ocidente, e qualquer pessoa que se dê ao
trabalho de pesquisar o potencial militar relativo dos dois lados
entenderá isso imediatamente. Além disso, o Ocidente não pode nem mesmo
enviar unidades para entrar em contato com os russos sem enormes
dificuldades e grandes perdas, enquanto os russos podem atacar a OTAN
mais ou menos como quiserem.

Talvez seja por essa razão que apenas alguns cabeças quentes tenham
imaginado seriamente um combate entre as forças da OTAN e a Rússia. As
fantasias agora parecem se concentrar no posicionamento de algumas
forças da OTAN em certas partes da Ucrânia para impedir o avanço dos
russos. Mas voltamos ao domínio da escalada novamente. A ideia parece
ser que, se um pelotão de soldados da OTAN estivesse bloqueando a
estrada para Odessa, os russos parariam naquele ponto porque teriam medo
das reações da OTAN se passassem por cima deles. E essas reações seriam…
o quê, exatamente? É bastante claro que os russos estão tentando evitar
um estado de guerra formal com o Ocidente, pois isso complicaria muito
as coisas. Mas também está muito claro que eles atacariam diretamente as
tropas da OTAN se achassem necessário, e que não haveria muito que a
OTAN pudesse fazer a respeito, se o fizessem. Parece haver uma crença
perigosa – ignorância voluntária mais uma vez – de que os russos estão,
em princípio, assustados com a “escalada” da OTAN e que isso poderia
afetar seu comportamento. Mas não há razão para pensar que isso seja
realmente verdade.

Portanto, não haverá a Terceira Guerra Mundial, porque um dos lados tem
pouco ou quase nada com que lutar. Tampouco estamos em algum tipo de
situação de 1914bis. A imagem popular de que a Primeira Guerra Mundial
começou por acidente, após um assassinato obscuro, não sobrevive à
leitura de um pequeno livro sobre o assunto – ignorância voluntária
novamente. A Europa em 1914 era um enorme campo armado onde as
principais potências tinham motivos para prever a guerra, objetivos já
formulados e planos já feitos. A Alemanha estava pensando em um ataque
preventivo por medo do rápido crescimento do poder militar francês e
russo. A França estava preparada para entrar em guerra para recuperar os
territórios da Alsácia e da Lorena. A Áustria-Hungria estava determinada
a dar uma lição militar à Sérvia. A Rússia não estava preparada para
permitir que isso acontecesse. As tendências centrífugas estavam
ameaçando destruir o Império Habsburgo. Os estados dos Bálcãs que haviam
conquistado sua independência dos otomanos agora estavam lutando entre
si. Até mesmo a Grã-Bretanha, embora esperasse ficar de fora, estava
preparada para se envolver para impedir que os alemães assumissem o
controle dos portos do Canal da Mancha. Não é preciso dizer que a
situação é completamente diferente hoje em dia: não há nada sério para o
Ocidente e a Rússia brigarem agora, e não há muito com o que o Ocidente
possa brigar, de qualquer forma.

Há uma crença persistente em alguns setores de que as guerras
“acontecem” ou “eclodem” independentemente da vontade humana. Isso não é
verdade. Sim, a Primeira Guerra Mundial “eclodiu” em um agosto
sonolento, quando os líderes nacionais estavam de férias e, até certo
ponto, uma vez iniciados os esquemas de mobilização em massa envolvendo
milhões de homens, era difícil detê-los. Mas mesmo que a corrida para a
guerra pudesse ser interrompida, os problemas subjacentes não teriam
desaparecido. A Alemanha se sentia cercada pela França e pela Rússia. A
primeira estava aumentando o tamanho do seu exército e a segunda estava
se industrializando rapidamente. A cada ano que passava, a situação
estratégica alemã piorava, e os alemães não podiam travar guerras contra
os dois adversários simultaneamente. A França se mobilizaria mais
rapidamente e precisava ser enfrentada primeiro. Se a crise política do
verão de 1914 pudesse ter sido resolvida, esses problemas teriam
permanecido os mesmos e, da perspectiva alemã, estariam piorando. Se não
for agora, quando?

Claramente, a situação atual é totalmente diferente. E não acho que
estejamos prestes a descer uma ladeira em direção à 3ª Guerra Mundial.
Não posso provar isso, é claro, assim como não posso provar que, se eu
sair pela porta da frente nos próximos minutos, não serei atropelado por
um idiota bêbado em uma scooter elétrica cantando slogans de futebol.
Mas algumas coisas são tão improváveis que, para fins práticos, podem
ser desconsideradas, e essa é uma delas. E não, as armas nucleares
táticas não são relevantes aqui. Existem apenas algumas delas na Europa,
todas bombas de gravidade que exigem que uma aeronave sobrevoe
fisicamente o alvo ou esteja muito próxima dele. Os preparativos
ucranianos ou da OTAN para mover e carregar armas nucleares seriam
óbvios a partir de imagens de satélite e é duvidoso que os russos
esperem mais do que o necessário. As aeronaves teriam que ser baseadas
perto da linha de frente, e qualquer aeronave que sobrevivesse para
decolar seria rapidamente destruída. Generais malucos, forças nucleares
em alerta e explosões nucleares acidentais são uma boa diversão em
Hollywood, mas, na prática, os governos exercem um controle político
fanático sobre tudo o que tem a ver com armas nucleares.

Portanto, se nem o Business as Usual nem a Terceira Guerra Mundial são
resultados prováveis, qual será o fim dessa crise? Bem, aqui é
instrutivo olhar para um desastre semelhante do século passado: os
alemães conseguiram invadir efetivamente toda a Europa Ocidental em
poucos meses. Isso foi sentido de forma especialmente cruel na França, e
o sangue dos mortos mal havia secado antes do início da guerra das
memórias. Um dos principais participantes foi Paul Reynaud, uma figura
conhecida apenas por especialistas hoje em dia, e talvez vagamente
vislumbrada nas biografias de De Gaulle, de quem foi patrono e apoiador.
Reynaud, na verdade uma pessoa bastante simpática e patriótica, foi
Primeiro-Ministro durante o período catastrófico em que o exército
francês parecia pronto para cair aos pedaços e seus generais exigiram um
armistício por medo de um levante comunista. Reynaud (que também teve
que lidar com sua amante Hélène de Portes, uma germanófila raivosa que
se convidava para as reuniões do gabinete e que supostamente tinha mais
poder do que ele nas decisões do governo) renunciou em vez de pedir um
armistício e foi preso durante parte da guerra. Mas depois da
Libertação, e como todo bom político, ele recebeu sua retaliação
primeiro na forma de suas memórias, com o título, bem, desafiador,
France Saved Europe. Não vou incomodá-lo com o argumento, que é
complicado e altamente suspeito, mas o livro é um excelente exemplo de
uma maneira de lidar com uma derrota política catastrófica: A culpa não
foi minha. De fato, nas primeiras páginas do livro, depois de apresentar
uma lista de acusações de erros e falhas que levaram à derrota, Reynaud
faz a pergunta favorita dos políticos: Quem é o responsável?

Embora seja justo dizer que Reynaud tem menos responsabilidade pela
derrota do que muitos (embora sua defesa das propostas de De Gaulle para
um exército muito menor e profissional em uma época em que eram
necessários exércitos de recrutamento em massa seja, no mínimo,
curiosa). Mas ele e os “homens culpados” que identificou (ele foi leal à
Sra. de Portes até o fim) faziam parte do jogo de disputa de lama que
caracteriza o resultado de toda derrota. Outros, por sua vez, produziram
suas próprias memórias autoexculpatórias e, depois disso, os
historiadores se juntaram ao jogo de lama com gosto, e ainda o fazem.
Portanto, o primeiro estágio do pós-Ucrânia será assim: A culpa não foi
minha. Eu tinha as respostas certas. Se ao menos tivessem me ouvido.

A diferença, porém, é que 1939-40 foi uma série de desastres que não
podiam ser ocultados. Os alemães haviam invadido a Europa, e era
impossível fingir que não haviam invadido, ou que o resultado havia sido
algo menos que um desastre. Mas há outro tipo de crise e desastre que é
mais equívoco, em que é possível argumentar, com uma cara séria, que
poderia ter sido pior. Esse é, obviamente, um reflexo profissional de
todos os políticos, muitas vezes combinado com a difamação de outros
(“OK, houve problemas, mas outros governos fizeram muito pior com a
inflação/Covid/crime ou o que quer que seja”). Um bom exemplo é a Crise
de Suez de 1956. Anthony Eden, o primeiro-ministro na época, sustentou
até o fim de sua vida que a operação havia sido um sucesso parcial: ela
havia impedido Nasser, e a União Soviética por trás dele, de dominar
todo o norte da África em nome de sua ideologia revolucionária. Muitos
dos colegas e contemporâneos de Eden concordaram com ele.

Agora, é claro que a Operação Suez não foi lançada apenas com esse
objetivo em mente, ela foi lançada principalmente para retomar a posse
do Canal de Suez e, no caso francês, para interromper o apoio dado pelo
governo egípcio à FLN na Argélia. Mas, apesar disso, o argumento é um
bom exemplo de como resgatar algo dos destroços, e acho que é isso que
veremos na Ucrânia também.

O sucesso e o fracasso, tanto na guerra quanto na política, vão
principalmente para aqueles que controlam a compreensão do que é sucesso
e fracasso. Desde o início da crise na Ucrânia, ficou claro que o único
resultado aceitável para o Ocidente era a vitória, o que significa que a
vitória teve de ser definida e redefinida conforme as circunstâncias
mudaram. Na maior parte do tempo, a ênfase tem sido menos na vitória
ocidental do que na derrota russa, portanto, se olharmos para trás na
mídia, veremos uma sequência interminável de derrotas russas, levando à
situação atual em que os russos estão prestes a destruir completamente o
exército ucraniano. A questão, é claro, é que, assim como o “poderia ter
sido pior” é uma vitória para nós, o “poderia ter sido melhor” é uma
derrota para eles. Assim, fomos informados de que os russos queriam
capturar Kiev – uma ideia ridícula, de qualquer forma – e não o fizeram,
o que foi uma derrota. Em seguida, disseram-nos que eles esperavam
invadir a Ucrânia em algumas semanas – o que manifestamente nunca
pretenderam – e que o fato de não terem conseguido isso foi uma derrota.
Depois nos disseram que o fato de não terem tomado grande parte da
Ucrânia – mais uma vez, eles nunca tiveram essa intenção – foi outra
derrota. E assim por diante. E, em todos os casos, a “derrota” russa era
também a “vitória” ocidental, porque estávamos fornecendo aos corajosos
ucranianos as ferramentas de que precisavam.

O resultado é que, acredito, agora podemos ver o esboço da defesa da
classe política ocidental de seu comportamento e de sua má administração
da guerra. Se eu estivesse escrevendo um discurso para um líder
ocidental a ser proferido em 2025, ele provavelmente consistiria no
seguinte.

  * Após o fim da Guerra Fria, o Ocidente esperava ter relações
    pacíficas e construtivas com a nova Rússia e, por algum tempo, isso
    parecia possível.
  * No entanto, com a chegada de Putin ao poder, ficou claro que a
    recuperação dos antigos territórios soviéticos e uma maior expansão
    estavam novamente no cardápio.
  * No entanto, o Ocidente persistiu na tentativa de manter a
    coexistência pacífica, apesar dos comentários agressivos e
    ameaçadores de Putin na Conferência de Segurança de Munique, em
    2007, e de sua tentativa de minar a convenção tradicional de que os
    Estados podem entrar e sair de organizações internacionais conforme
    desejarem.
  * Em 2014, ficou claro que nossa confiança e nosso otimismo haviam
    sido mal empregados. A tomada da Crimeia, seguida pela tentativa de
    tomada de partes do Donbas, mudou completamente a situação. Agora
    era óbvio que o plano para dominar e assumir o controle de grande
    parte da Europa Ocidental estava em andamento.
  * Os líderes da França e da Alemanha conseguiram estabilizar a
    situação por um breve período por meio dos acordos de Minsk, que
    forçaram uma interrupção temporária da expansão russa. Mas ficou
    evidente que isso foi apenas um alívio temporário e que os
    ucranianos não poderiam resistir a outra ofensiva russa séria.
  * Portanto, a OTAN iniciou um programa de choque para fortalecer as
    forças ucranianas para impedir ou, se necessário, derrotar novas
    agressões russas.
  * Os ultimatos apresentados aos governos ocidentais no final de 2021
    deixaram claro que Moscou havia decidido por uma guerra total.
    Nenhum governo democrático poderia ter aceitado tais termos e nenhum
    parlamento os teria ratificado.
  * A guerra que o Ocidente se esforçou tanto para evitar começou em
    fevereiro de 2022 e se transformou em um desastre militar para os
    russos, devido à resistência heroica das forças ucranianas e ao
    apoio generoso e irrestrito dado pelas democracias de todo o mundo.
    A Rússia conseguiu capturar apenas um quarto do país a um custo
    terrível.
  * No entanto, a Rússia continua sendo um adversário perigoso e
    imprevisível, e o Ocidente deve agora tomar medidas para fortalecer
    suas próprias defesas para impedir ou proteger contra novas
    agressões russas.

Agora, independentemente do que você ou eu possamos pensar, eu estimaria
que entre metade e dois terços dos tomadores de decisão ocidentais
aceitariam esse relato sem questionar. Quase todos os demais aceitariam
a maior parte dela sem grandes reservas. Mas a verdadeira diversão
começará depois que a crise terminar, sob o slogan “Se ao menos”. Se ao
menos tivéssemos feito isso, ou não tivéssemos feito aquilo. Se ao menos
tivéssemos fornecido armas e treinamento melhores para a UA. Se ao menos
tivéssemos enviado tropas da OTAN em pequenos números em um estágio
inicial, se ao menos tivéssemos fornecido esta ou aquela arma, ou
implantado estes ou aqueles sensores. Pode até haver algumas almas
corajosas que apontem que, se tivéssemos agido de forma diferente, a
crise poderia ter sido evitada, embora, sem dúvida, elas serão atacadas
por “apaziguamento”. E os líderes políticos individuais e os países que
eles representam competirão para ter tido as melhores ideias
negligenciadas, para defender com mais veemência as soluções que foram
“eficazes” e para se distanciar o máximo possível do fracasso.

Esse é o contexto no qual se deve entender as recentes observações do
presidente Macron. Macron não tem interesse em assuntos militares e,
consequentemente, os ignora em grande parte. Ele é o primeiro presidente
francês da geração que não prestou serviço nacional. Mas ele tem alguns
conselhos militares realistas e, se você ler as entrelinhas de suas
declarações, muitas vezes confusas, fica bastante claro que ele não está
defendendo o envio de tropas francesas para a Ucrânia em uma função de
combate, e certamente não sem o apoio de muitos outros países. Da mesma
forma, a referência à capacidade de reunir 20.000 homens como parte de
uma força internacional no artigo assinado pelo General Schill na semana
passada foi feita em um contexto em que as palavras “Ucrânia” e “Rússia”
não foram mencionadas, e isso certamente não foi um descuido. (Pelo que
vale, a cifra de 20.000 homens levantou dúvidas e, de qualquer forma,
essa força só poderia ser mantida em campo por alguns meses).

O que estamos vendo aqui são os primeiros tiros disparados na batalha
para assumir o controle das questões de defesa e segurança europeias
após o fim da crise atual. Por um lado, os franceses querem sair dessa
situação como defensores da Europa, com as ideias certas na hora certa,
sempre incentivando as nações a fazerem a coisa certa, fazendo
sacrifícios etc. etc. O fato de um pelotão ou uma companhia de tropas
estar ou não posicionada em Odessa dificilmente importa na prática. Se
estiverem, terão impedido o avanço russo graças à liderança francesa. Se
não estiverem, bem, essa foi uma boa ideia da França que nenhum outro
país teve a coragem de seguir. Em ambos os casos, eles venceram. Como
não existe a possibilidade de mobilizações de combate, tudo isso pode
ser feito com risco político mínimo.

Mas por que os franceses estão fazendo isso e por que um presidente
notoriamente ignorante em assuntos militares está liderando? Bem, em
primeiro lugar, temos que desaprender um pouco de ignorância deliberada.
A atitude dos anglo-saxões em relação à França sempre foi uma mistura
incômoda de inveja desesperada e desprezo arrogante, e poucas pessoas se
dão ao trabalho de analisar os antecedentes históricos e culturais.
Portanto, vamos dar uma olhada rápida.

A França entrou no período pós-guerra com um sólido consenso político de
que era necessário restabelecer a “glória” e a “posição” da França no
mundo. A guerra foi um acidente infeliz, que precisava ser desfeito.
Isso deveria ser feito de duas maneiras: uma pela manutenção do Império,
que foi apoiada por todos os principais partidos políticos, inclusive os
comunistas. A outra era reconstruir a França militarmente, o que logo
passou a incluir o desenvolvimento de armas nucleares, iniciado em
segredo no início da década de 1950 e que ganhou maior urgência com
Suez. Os franceses, movidos, como sempre, por cálculos frios de
interesse nacional, receberam bem o envio de tropas dos EUA para a
Europa, tanto como uma barreira descartável (“por que matar garotos
franceses quando você pode fazer com que os americanos morram por você”,
como me disse mais de um oficial francês) quanto como uma garantia de
que os EUA realmente viriam em auxílio da Europa imediatamente desta
vez, se houvesse uma guerra, e também não provocariam uma crise com a
União Soviética levianamente. Esse conceito da presença dos EUA – metade
cordeiros sacrificados, metade reféns – era particularmente forte na
França, mas, na realidade, a maioria dos países europeus tinha a mesma
opinião. Entretanto, por motivos de “hierarquia”, os franceses também
buscaram por mais de uma década a ideia de um “triunvirato” interno na
OTAN, formado por eles mesmos, pelos britânicos e pelos EUA, mas sem
sucesso. A desilusão progressiva de De Gaulle com a Estrutura Militar
Integrada da OTAN foi, em grande parte, uma continuação das atitudes de
seus antecessores, mas, livre da Guerra da Argélia e agora com armas
nucleares, ele conseguiu criar um papel nacional muito mais
independente. Mas o interesse nacional também ditou a cooperação com os
EUA, que sempre foi estreita, embora pouco divulgada, muitas vezes
tempestuosa e amarga, mas, em última análise, valiosa para ambos os lados.

Há décadas de coisas interessantes para pular, mas vamos mencionar
apenas três coisas. A partir de Ruanda, em 1995, e principalmente após a
desordem da Costa do Marfim, os sucessivos governos franceses procuraram
uma saída honrosa para os compromissos militares unilaterais na África,
para voltar a se concentrar na Europa e nas operações da OTAN. (Qualquer
um que pense que as crises político-militares entre a França e os
Estados da África Ocidental são de alguma forma novas ou diferentes tem
vivido sob uma rocha nos últimos trinta anos). Houve uma tentativa séria
de fazer isso durante o governo do Presidente Sarkozy (2007-12), mas ela
foi vítima de todos os tipos de lobbies, inclusive dos próprios líderes
africanos. No final, algumas forças foram retiradas, mas não todas. A
segunda foi o crescimento progressivo do poder da chamada tendência
“neoconservadora” na política e no governo francês, que via os EUA como
a única “hiperpotência” e não apenas compartilhava as opiniões dos
neoconservadores em Washington, mas também acreditava que a França
deveria ser um subordinado leal. O terceiro foi o crescimento paralelo
do lobby “europeu” (leia-se “UE”) na política e no governo francês, e
até mesmo a mudança de nome do novo Ministério de Assuntos Europeus e
Estrangeiros. Os franceses sempre favoreceram as políticas
intergovernamentais (uma das poucas áreas em que concordavam com os
britânicos), mas se viram cada vez mais dominados pela Comissão e por
órgãos supranacionais como a CEDH.

Os franceses sempre foram a favor da construção de uma capacidade de
ação militar independente pela Europa, na qual eles desempenhariam um
papel importante. Esse era um argumento político mais do que qualquer
outro: um continente com uma União Política que não pudesse controlar e
mobilizar suas próprias forças não era verdadeiramente soberano. Mas as
tentativas francesas de construir essas forças – “separáveis, mas não
separadas”, como dizia a frase – foram efetivamente sabotadas pelos
britânicos durante várias décadas.

Minha impressão é que as coisas podem estar mudando mais uma vez. Mais
do que a maioria das nações europeias, os franceses parecem estar
desistindo dos EUA como parceiros. A capacidade militar dos EUA foi
revelada como fraca onde é importante, mas, em contrapartida, o sistema
político em Washington – caso sobreviva até 2025 – parece perigosamente
instável e capaz de provocar crises incontroláveis. Está claro que os
EUA nunca mais serão um ator importante nas questões militares
europeias. Com grandes despesas e dificuldades, talvez seja possível
exumar e consertar tanques e veículos blindados armazenados, encontrar
comandantes e suboficiais e, lentamente, construir e implantar talvez
uma única divisão blindada na Europa, ao longo dos próximos cinco anos
ou mais, se houver vontade política e dinheiro e se os problemas
práticos puderem ser resolvidos. Mas isso não afetará muito o equilíbrio
de poder. E pode ser que o setor de defesa dos EUA tenha entrado em
declínio a ponto de nunca mais ser capaz de produzir armas eficazes.
Nesse caso, o papel da França como líder de fato nas questões de defesa
e segurança europeias estará garantido, principalmente por ser a única
potência nuclear da UE. As forças armadas alemãs são uma piada, e as
britânicas estão indo na mesma direção. Os poloneses têm ambições, mas
não seriam aceitáveis em um papel de liderança. E a UE está rapidamente
se tornando tóxica como participante na área de segurança, onde não tem
nada a ver.

Isso, repito, tem pouco a ver com a guerra na Ucrânia e muito mais a ver
com o formato da Europa depois disso. Pode ser que, de uma forma que
ninguém poderia ter imaginado há trinta e cinco anos, estejamos
finalmente nos movendo na direção que os franceses estavam defendendo
durante todo esse tempo. E temos que agradecer aos russos por isso. Não
é engraçado?

------------------------------------------------------------------------

Fonte: https://aurelien2022.substack.com/p/france-saves-europe

Em
SAKER LATAM
https://sakerlatam.blog/a-franca-salva-a-europa/
1/4/2024