por John Siman
Dizer que o novo livro de Michael Hudson And Forgive Them Their Debts:
Lending, Foreclosure, and Redemption from Bronze Age Finance to the
Jubilee Year (ISLET, 2018) é profundo é uma subestimação equivalente a
dizer que a Fossa das Marianas é profunda. Apreender o seu argumento
central é tão estranho para o nosso moderno modo de pensar acerca de
civilização e barbárie que Hudson concordou comigo em que o livro é, na
medida em que for compreendido, "devastador" tanto na intenção como no
efeito. Ao longo das últimas três décadas, Hudson recolheu (sob os
auspícios do Museu Peabody de Harvard) e a seguir sintetizou a erudição de
assiriologistas americanos, britânicos, franceses, alemães e soviéticos
(escrito com minúsculas a para denotar colectivamente todos os que estudam
as várias civilizações da antiga Mesopotâmia, as quais incluem a Suméria,
o Império Acadiano, o Ebla, a Babilónia e outras, assim como a Assíria com
um A maiúsculo). Hudson demonstra que nós, globalistas do século XXI,
temos sido moralmente cegados por um obscuro legado de cerca de vinte e
oito séculos de história descontextualizada. Isso nos deixou, para todos
os propósitos práticos, absolutamente ignorantes do modelo civilizacional
correctivo que é necessário para nos salvarmos do afundamento numa negra
barbárie neo-feudal.
Este modelo colectivo realmente existiu e floresceu no funcionamento
económico de sociedades da Mesopotâmia durante o terceiro e segundo
milénio AC. Ele pode ser denominado amnistia do Passado Limpo (Clean
Slate), uma expressão que Hudson utiliza para abarcar a função essencial
do que era chamado amargi e níg-si-sá em sumério, e urârum e
mîðarum em acadiano (a linguagem da Babilónia), ðudûtu and kirenzi
e, hurriano, para tarnumar em hitita, and deror em hebraico: É o
apagamento necessário e periódico das dívidas de pequenos agricultores –
necessário porque tais agricultores estão, em qualquer sociedade na qual
sejam calculados juros sobre empréstimos, inevitavelmente sujeitos a serem
empobrecidos, a seguir destituídos da sua propriedade e finalmente
reduzidos à servidão (incluindo a servidão sexual de filhas e esposas)
pelos seus credores. Estes últimos inevitavelmente procuram efectuar a
polarização terminal da sociedade numa oligarquia de credores predatórios
canibalizando uma subclasse que se afunda atolada em irreversível servidão
da dívida (debt peonage). Hudson escreve: "Que é o que os credores
realmente querem. Não meramente o juro como tal, mas o colateral –
quaisquer que sejam os activos económicos que os devedores possuem, desde
o seu trabalho à sua propriedade, acabando com as suas vidas" (p. 50).
E tal polarização é, pela definição de Hudson, barbárie. Pois qual é a
condição mais básica da civilização, pergunta Hudson, senão a organização
societal que efectua um "equilíbrio" duradouro mantendo "todos acima do
nível de ruptura"?
"As sociedades mesopotâmicas não estavam interessadas em igualdade",
disse-me ele, "mas elas eram civilizadas. E possuíam o refinamento
financeiro suficiente para entender que juros sobre empréstimos aumentam
exponencialmente, ao passo que o crescimento económico na melhor das
hipóteses segue uma curva S. Isto significa que os devedores, se não forem
protegidos por uma autoridade central, acabarão por se tornar escravos
(bondservants) permanentes dos seus credores. Assim, os reis da
Mesopotâmia regularmente resgatavam devedores que estavam a ficar
esmagados pelas suas dívidas. Eles sabiam que precisavam fazer isto.
Repetidamente, século após século, proclamavam Amnistias Passado Limpo
(Clean Slate Amnesties) ".
Hudson também escreve: "Ao libertar indivíduos aflitos que haviam caído
na servidão da dívida, e ao devolver aos cultivadores as terras que haviam
perdido por dívida ou vendido sob pressão económica, estes actos reais
mantinham um campesinato livre desejoso de combater pela sua terra e de
trabalhar em projectos de edifícios públicos e de canais... Ao limpar a
acumulação de dívidas pessoais, os governantes salvavam a sociedade do
caos social que teria resultado da insolvência pessoal, da servidão por
dívidas e da deserção militar" (p. 3).
Marx e Engels nunca apresentaram um tal argumento (nem tão pouco Adam
Smith). Hudson destaca que eles nada sabiam destas antigas sociedades
mesopotâmicas. Ninguém sabia naquela época. Quase todas as espécies de
assiriologistas completaram suas escavações arqueológicas e análises
filológicas durante o século XX. Por outras palavras, este livro não
poderia ter sido escrito até que alguém digerisse as partes relevantes do
vasto corpo deste conhecimento académico recente. E este alguém é Michael
Hudson.
Assim, vamos reconsiderar a percepção fundamental de Hudson em termos
mais incisivos. Nas antigas sociedades mesopotâmicas entendia-se que a
liberdade era preservada pela protecção dos devedores. No que chamamos de
Civilização Ocidental, isto é, na pletora de sociedades que se seguiram ao
florescimento da poleis grega a partir do século VIII AC, exactamente o
oposto se passou, com apenas uma única grande excepção (Hudson descreve o
Império Bizantino do século X DC de Romano Lecapenus ): Para nós a
liberdade tem sido entendida como sancionando a capacidade dos credores de
exigir o pagamento de devedores sem restrição ou supervisão. Isto é a
liberdade de canibalizar a sociedade. Isto é a liberdade de escravizar.
Isto é, afinal das contas, a liberdade proclamada pela Escola de Chicago e
a corrente convencional dos economistas americanos. E assim Hudson
enfatiza que a nossa noção ocidental de liberdade tem sido, desde há cerca
de vinte e oito séculos, orwelliana no sentido mais literal da palavra:
Guerra é paz, Liberdade é escravidão, Ignorância é força. Ele escreve:
"Uma dinâmica constante da história tem sido o impulso por parte das
elites financeiras para centralizar o controle nas suas próprias mãos e
administrar a economia de modos predatórios e extractivistas. Sua
liberdade ostensiva é a expensas da autoridade governante e da economia
como um todo. Como tal, ela é o oposto da liberdade do modo concebido nos
tempos da Suméria" (p. 266).
E a nossa orwelliana noção neoliberal de liberdade irrestrita para o
credor condena-nos mesmo desde o início de qualquer investigação que
empreendamos de uma ordem económica justa. Toda e qualquer revolução que
efectuarmos, por mais justa que seja na sua concepção, está assim
destinada a falhar.
E estamos condenados, diz Hudson, porque temos sido moralmente cegados
por 28 séculos de história desenraizada ou, como ele diz,
descontextualizada. As verdadeiras raízes históricas da civilização
ocidental não estão na poleis grega à qual faltava supervisão real para
cancelar dívidas, mas nas sociedades mesopotâmicas da Era do Bronze que
entendiam como vida, liberdade e terra seriam ciclicamente devolvidas aos
devedores repetidas vezes. Mas, no oitavo século AC, juntamente com o
alfabeto vindo do Oriente Próximo para os gregos, surgiu o conceito de
cálculo de juros sobre empréstimos. Este conceito de juro
exponencialmente crescente foi adoptado pelos gregos – e a seguir pelos
romanos – sem o conceito equilibrador da amnistia Clean Slate.
Assim foi inevitável que, ao longo dos séculos de história grega e
romana, números crescentes de pequenos agricultores se tornassem
irremediavelmente endividados e perdessem a sua terra. Foi igualmente
inevitável que os seus credores acumulassem enormes haveres em terra e se
estabelecessem como oligarquias parasitas. Esta tendência inata para a
polarização social decorrente do não esquecimento de dívidas é a maldição
original e incurável da nossa civilização ocidental pós século VIII AC.
Civilização ocidental, escabrosa marca de nascimento que não pode ser
lavada ou extirpada. Neste contexto, Hudson cita o classicista Moses
Finley com grande efeito: "….a dívida era um artifício deliberado da parte
do credor para obter mão-de-obra mais dependente ao invés de um
dispositivo para enriquecimento por meio de juros". Ele cita igualmente
Tim Cornell: "O objectivo do 'empréstimo', o qual era assegurado na pessoa
do devedor, era precisamente criar um estado de servidão" (p. 52 – Hudson
anteriormente destacou este ponto nos dois volumes do colóquio por ele
editado como parte de seu projecto de Harvard: Debt and Economic Renewal
in the Ancient Near East (Dívida e renovação económica no antigo Oriente
Próximo) e Labor in the Ancient World (Trabalho no mundo antigo).
Hudson é capaz de explicar que o longo declínio e queda de Roma começa
não, como disse Gibbon, com a morte de Marco Aurélio, o último dos cinco
bons imperadores, em 180 DC, mas quatro séculos antes, a seguir à
devastação de Aníbal da Itália rural durante a Segunda Guerra Púnica
(218-201 AC). Depois daquela guerra os pequenos agricultores da Itália
nunca recuperaram a sua terra, a qual foi sistematicamente absorvida
pelos prædia (note-se a conexão etimológica com predatório ), os
latifundia, as grandes propriedades oligárquicas: latifundia Italiam
("as grandes propriedades destruíram a Itália", como observou Plínio o
Velho. Mas entre os académicos modernos, como destaca Hudson, "Arnold
Toynbee está quase sozinho ao enfatizar o papel da dívida na concentração
da riqueza romana e da propriedade" (p. xviii) – e portanto na explicação
do declínio do Império Romano.
"Arnold Toynbee", escreve Hudson, "descreveu a ideia de 'liberdade' da
aristocracia romana como limitada à liberdade oligárquica de reis ou
instituições cívicas suficientemente poderosas para conferir poder ao
credor para endividar e empobrecer a cidadania em geral. "O monopólio de
gabinete da aristocracia patrícia após o eclipse da monarquia [Hudson cita
do livro de Toynbee, Hannibal's Legacy ] foi utilizado pelos patrícios
como uma arma para manter o seu domínio sobre a parte do leão dos activos
económicos do país; e a maioria plebeia da cidadania romana tinha de se
esforçar para ganhar acesso a cargos públicos como um meio de assegurar
uma distribuição mais equitativa da propriedade e uma restrição à opressão
dos devedores pelos credores. Esta última tentativa fracassou", observa
Hudson, "e a civilização europeia e ocidental ainda vive com as
consequências" (p. 262).
Como Hudson põe em foco o grande quadro geral, o pulsar da história
ocidental ao longo de milénios, é capaz de descrever o abismo económico
entre a antiga civilização mesopotâmica e as sociedades ocidentais
posteriores que começam com a Grécia e Roma: "No início deste século [isto
é, o consenso académico até a década de 1970] entendia-se que os
cancelamentos da dívida da Mesopotâmia eram semelhantes a seisachtheia
de Solon de 594 AC libertando os cidadãos atenienses da servidão por
dívida. Mas as proclamações reais do Oriente Próximo estavam baseadas num
contexto sócio-filosófico diferente das reformas gregas que visavam
substituir aristocracias fundiárias credoras com democracia. As exigências
da populaça grega e romana pelo cancelamento da dívida podem ser
correctamente chamadas de revolucionárias [itálico meu], mas as
exigências sumérias e babilónicas eram baseadas numa tradição conservadora
enraizada em rituais do calendário cósmico e das suas periodicidades bem
ordenadas. A ideia mesopotâmica de reforma "não tinha a noção [Hudson cita
aqui o livro de Dominique Charpin, Hammurabi of Babylon ] do que
chamaríamos de progresso social. Ao invés, as medidas que o rei instituiu
sob o seu mîðarum eram destinadas a trazer de volta a ordem original
[itálicos meus]. As regras do jogo não foram mudadas, mas fora dada uma
nova mão de cartas a toda a gente" (p. 133). Contraste com os gregos e
romanos: "A antiguidade clássica", escreve Hudson, "substituiu a ideia
cíclica de tempo e renovação social pela de tempo linear. A polarização
económica tornou-se irreversível, não meramente temporária" (p. xxv). Por
outras palavras: "A ideia de progresso linear, na forma de dívida
irreversível e transferências de propriedade, substituiu a tradição da
Idade do Bronze de renovação cíclica" (p. 7).
Após todos estes séculos, permanecemos ignorantes do facto de que nas
profundidades das raízes da nossa civilização está contido o modelo
correctivo do retorno cíclico – aquilo a que Dominique Charpin chama a
"restauração da ordem" (p. xix). Continuamos a inundar-nos com mil milhões
de variações de argumentos de venda para contrair cada vez mais
empréstimos, com a exortação para aplicar cada vez mais no crédito,
porque, como sabe, o futuro é tão brilhante que preciso usar óculos
escuros.
Em parte alguma, mostra Hudson, é mais evidente que estamos cegados por
um entendimento desenraizado, descontextualizado, da nossa história do
que na nossa ignorância da carreira de Jesus. Daí o título do livro: And
Forgive Them Their Debts, E perdoa-lhes as suas dívidas e a ilustração da
capa com Jesus a açoitar os prestamistas – os credores que não perdoavam
dívidas – no templo. Durante séculos falantes do inglês recitaram a Oração
do Senhor com a suposição de que estavam meramente a pedir o esquecimento
das suas ofensas (trespasses), seus pecados teológicos: "... e esqueça
nossas ofensas, assim como nós esquecemos quem nos ofendeu..." é a
tradução apresentada na Versão Padrão Revista da Bíblia. O que se perde
na tradução é o facto de que Jesus veio "pregar o evangelho (preach the
gospel) aos pobres... pregar o Ano do Senhor aceitável": Ele veio, por
outras palavras, proclamar um Ano Jubileu, uma restauração do deror
para os devedores. Ele veio instituir uma Amnistia Passado Limpo (que é o
que a palavra hebraica denota neste contexto).
Assim, considere-se literalmente a passagem [em grego] da Oração do
Senhor: "... e remover para nós as nossas dívidas". A tradução latina
não é gramaticalmente idêntica à grega, mas também mostra a palavra grega
reveladoramente traduzida como debita: ... et dimitte nobis debita
nostra : "... e livrai-nos (dimitte) das nossas dívidas (debita)".
Consequentemente havia, da parte da classe credora, uma razão prática e
premente para condenar Jesus à morte: Ele estava a exigir que restaurassem
a propriedade que haviam avidamente tomado dos seus devedores. E após a
sua morte havia igualmente uma razão premente e prática para tornar
inoperante a sua proclamação do Jubileu de uma Amnistia Passado Limpo, o
que equivale a dizer tornada meramente teológica. Assim os ricos podiam
continuar a oprimir os pobres para todo o sempre. Amen.
Por este livro ser profundo, é escrito de modo tão denso que é muito
difícil lê-lo. Levei seis dias, o que incluiu seis ou mais horas de
conversações excelentes e esclarecedoras com o próprio autor, para
penetrá-lo. Muitas vezes recorri ao livro de David Graeber, Debt: The
First 5.000 Years , quando tive dificuldade em acompanhar alguns dos
argumentos de Hudson. (Graeber e Hudson foram amigos durante dez anos,
contou-me Hudson, e Graeber, ao escrever Debt; The First 5.000 Years,
apoiou-se na erudição de Hudson para relatar a teoria económica da antiga
da Mesopotâmia, cf. p. xxiii). Escrevi a presente resenha do livro a fim
de proporcionar alguma ajuda a outros leitores: não posso enfatizar
demasiado o quanto este livro é de facto um verdadeiro terramoto, mas é
preciso muito trabalho intelectual para digeri-lo.
ADENDA: Risco moral (Moral Hazard)
Depois de enviar um rascunho desta resenha a um amigo na noite passada
ele respondeu-me com esta pergunta:
– Será que cancelamentos de dívida não retirariam quaisquer incentivos às
pessoas para reembolsarem empréstimo e, portanto, retirariam incentivos
para conceder empréstimos? Pessoas que não ouviram antes o argumento e
lêem então a sua resenha provavelmente ficarão cépticas no início.
Eis a resposta de Michael Hudson:
– Credores argumentam que se você esquecer dívidas para uma classe de
devedores – digamos que empréstimos a estudantes – haverá alguns "free
riders" e que as pessoas esperarão ter maus empréstimos cancelados. Isto
é chamado um "risco moral", pois cancelamentos de dívida são um risco
para a economia e, portanto, imorais.
Isto é um exemplo típico da linguagem dupla orwelliana engendrada por
empregados de relações públicas para os possuidores de títulos e os
bancos. O risco moral para toda economia é a tendência para as dívidas
crescerem para além da capacidade dos devedores de pagarem. Os primeiros
incumpridores são vítimas de hipotecas lixo e devedores estudantes, mas de
longe as maiores vítimas são os países que tomam empréstimos do FMI em
programas de "estabilização" monetária (isto é, desestabilização
económica).
É moral para os credores terem de arcar com o risco de fazer maus
empréstimos, definidos como aqueles em que o devedor não pode pagar sem
perder a propriedade, status ou tornar-se insolvente. Um mau empréstimo
internacional a um governo é aquele em que o governo não pode pagar
excepto impondo austeridade à economia até um ponto em que a produção cai,
o trabalho é obrigado a emigrar para encontrar emprego, o investimento de
capital declina e os governos são forçados a pagar credores pela
privatização e liquidação do domínio público a monopolistas.
A analogia na Babilónia da Idade do Bronze era uma fuga de devedores da
terra. Hoje, desde a Grécia até à Ucrânia, é uma fuga de mão-de-obra
qualificada e mão-de-obra jovem a fim de encontrar trabalho no
estrangeiro.
Nenhum devedor – quer seja uma classe de devedores como estudantes ou
vítimas de hipotecas lixo predatórias, ou um governo inteiro e uma
economia nacional – deveria ser obrigado a seguir o caminho do suicídio
económico e da autodestruição a fim de pagar credores. A definição de
soberania – e, portanto, de direito internacional – deveria ser colocar a
solvência nacional e a autodeterminação acima dos ataques financeiros
estrangeiros. Ceder o controle financeiro deveria ser encarado como uma
forma de guerra, na qual os países têm o direito legal de resistir como
"dívida odiosa" sob o direito moral internacional.
O princípio financeiro moral básico deveria ser que os credores arcassem
com o risco de fazerem maus empréstimos que o devedor não pudesse pagar –
tal como os empréstimos do FMI à Argentina e à Grécia. Risco moral é
colocar exigências do credor acima da sobrevivência da economia.
16/Novembro/2018
O original encontra-se em www.nakedcapitalism.com/2018/11/145003.html .
Tradução de JF.
In
RESISTIR.INFOhttps://www.resistir.info/crise/hudson_resenha_16nov18.html16/11/2018