quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Dívida, terra e dinheiro – De Polanyi à Nova Arqueologia Económica

 

*por Michael Hudson [*]

Michael Hudson. Os anos de formação de Karl Polanyi, no rescaldo da
Primeira Guerra Mundial, foram um período de turbulência monetária. Os
Estados Unidos da América tornaram-se, pela primeira vez, uma nação
credora e exigiram o pagamento das dívidas de guerra, que Keynes avisou
serem impagáveis sem destruir os sistemas financeiros da Europa (Hudson,
/Super Imperialism, / 1972, faz um resumo desta era). A França e a
Grã-Bretanha submeteram a Alemanha ao pagamento de reparações
insustentavelmente elevadas, ao mesmo tempo que impunham austeridade às
suas próprias economias, aderindo ao padrão de ouro. Jacques Rueff, em
França, e Bertil Ohlin, nos Estados Unidos da América, argumentaram que
a Alemanha poderia pagar qualquer nível de reparações em ouro - e os
Aliados poderiam pagar as suas dívidas militares denominadas em moeda
estrangeira - impondo um desemprego suficientemente alto para fazer com
que os seus salários fossem suficientemente baixos para tornar os seus
produtos suficientemente baratos para gerar um excedente comercial
suficientemente grande para pagar o seu serviço de dívida.

A maioria dos países seguiu a ideia do dinheiro sólido /("hard money"),
/ de que o dinheiro era (ou podia tornar-se num substituto de) uma
mercadoria, sendo convertível em ouro. Essa ideia, defendida de forma
muito notória pelos austríacos Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek,
resultou numa deflação monetária. Foi uma repetição do que tinha já
ocorrido depois de 1815, quando o banqueiro David Ricardo insistiu em
que o regresso ao padrão-ouro restabeleceria o equilíbrio face a
quaisquer pagamentos de dívida externa ou subsídios militares. Afirmou
que qualquer défice desses pagamentos seria automaticamente reciclado
sob a forma de procura de importações provenientes da economia "pagadora
de capital" por parte do país beneficiário. Não se verificou qualquer
equilíbrio desse tipo.

Quando o padrão-ouro foi reinstituído após a Primeira Guerra Mundial, as
economias foram espremidas de dinheiro para reduzir os seus preços e
salários, numa tentativa fútil de pagar as suas dívidas. Rueff, Ohlin e
Hayek afirmaram que impor às economias devedoras esta deflação e pobreza
representaria (e deveria representar) um equilíbrio estável.

Tudo – incluindo dinheiro, terra e trabalho – era visto como uma
mercadoria cujo preço seria fixado de forma justa pela oferta e procura,
sendo a "procura" corroída pelo serviço da dívida, pago sem limites aos
credores. A criação de dinheiro devia ser mantida fora das mãos dos
governos, porque, como Margaret Thatcher parafraseou da ideologia de
Hayek: "Não existe tal coisa como a sociedade". Existe (e deve existir)
apenas um mercado – um mercado que é inevitavelmente dominado por
fortunas financeiras, bancos e donos de propriedades.

Polanyi culpou a imposição da ideologia do mercado livre pela rotura do
pós-guerra e pela Grande Depressão. Escrevendo que "A década de 1920 viu
o prestígio do liberalismo económico no seu auge", ele previu que, "Sem
dúvida, a nossa era será vista como o fim do mercado autorregulador"
(Polanyi, 1944: 148). Ele esperava que o caos resultante da
implementação desta ideologia maníaca demonstrasse a falácia das
afirmações de que os mercados são autorreguladores e podem ser
desencastrados /("disembedded") / do seu contexto social regulatório sem
que isso cause destruição económica, desemprego e pobreza.

Para demonstrar a necessidade de regulamentação pública, Polanyi
empreendeu uma análise dos modos de organização do dinheiro, crédito e
uso da terra que sustentaram a prosperidade e daqueles que falharam.
Rejeitando aquilo que ele considerou ser a sequência de modos de
produção de Marx, enfatizou antes os modos de troca. Ele considerou o
conjunto de "estágios historicamente insustentáveis" de Marx como
decorrente "da convicção de que o carácter da economia era definido pelo
estatuto do trabalho" (Polanyi, 1957: 256), desde a antiga escravatura e
a usura, à servidão sob o feudalismo e ao trabalho assalariado sob o
capitalismo. Concentrando-se na transição do feudalismo para o
capitalismo industrial, que operou a expulsão do trabalho da terra para
se tornar trabalho assalariado ao serviço de empregadores, o objetivo de
Marx não era analisar a história da posse da terra. Polanyi insistiu em
que "a integração do solo na economia deve ser considerada como não
menos vital". "Sob o feudalismo e o sistema das guildas", escreveu
Polanyi, "a terra e o trabalho faziam parte da própria organização
social (o dinheiro ainda mal se tinha desenvolvido a ponto de se tornar
um elemento importante da indústria)". A terra foi atribuída como base
para manter "o sistema militar, judicial, administrativo e político; o
seu estatuto e função eram determinados por regras legais e
consuetudinárias" (Polanyi, 1944: 69). A tarefa própria do governo era
socializar regras para definir em que deviam ser utilizadas as suas
rendas – em impostos ou em pagamentos a rentistas?

Nos Volumes II e III de /O Capital, / Marx considerou a renda da terra e
a usura como sobrevivências dos tempos feudais, falsos encargos da
produção /("faux frais of production") / que ele esperava que o
capitalismo industrial eliminasse, libertando as economias de
proprietários extratores de renda da terra e de banqueiros usurários. Em
vez disso, estes interesses rentistas recuperaram o controlo das
economias, opondo-se à regulação pública acenando com a bandeira do
individualismo livre-mercantil. Idealizando os ganhos monetários sem
qualquer preocupação com a forma como isso afeta o bem público, os
banqueiros e outros rentistas definem economias "naturais" ou "puras"
como implicando nenhuma regulação de preços ou do funcionamento dos
mercados em função de considerações de bem-estar social. A economia é
vista como um mercado livre para todos, e não como um sistema social que
regula a propriedade, o crédito e a dívida para dar prioridade à
estabilidade social e ao aumento do nível de vida.

Ao descrever o poder regulador público como "não natural", a política do
mercado livre assume que é natural e desejável remeter para a riqueza
privada a existência de regras para propriedade, crédito e dívida. A
realidade é que nunca existiu um mercado "natural", sem regulamentação
social. O que passa por um mercado livre equivale a pouco mais do que
uma luta por posições, com as vantagens a estar sempre do lado dos
indivíduos mais ricos. O interesse destes reside em minimizar a
supervisão pública e a tributação das suas atividades empresariais
rentistas, de crédito e execução ou outras.

Polanyi propôs-se demonstrar a loucura de sujeitar a política laboral,
fundiária e monetária a "mercados livres" não regulamentados. O que
realmente está em questão é que tipo de mercados as economias terão, e
quem serão os seus principais beneficiários – ou vítimas. Na sua
clássica obra /A Grande Transformação / (1944) creditou o feudalismo e o
capitalismo industrial inicial da Inglaterra, com as suas leis para
pobres /("Poor Laws") / ainda em funcionamento, por preservarem
objetivos sociais amplos e regulamentos, em vez de atirarem o trabalho e
a terra aos lobos (os ricos), tratando-os como mercadorias. Mesmo nos
primeiros dias do desenvolvimento do capitalismo, as nações
mercantilistas "eram todas igualmente avessas à ideia de comercializar o
trabalho e a terra - a condição prévia da economia de mercado". ... O
mercantilismo, com toda a sua tendência para a comercialização, nunca
pôs em causa as salvaguardas que protegiam estes dois elementos básicos
da produção – o trabalho e a terra – de se tornarem objetos de comércio"
(ibidem: 70).

Desde a Antiguidade até à Europa feudal, a terra formou a base
tributária universal. Em contraste com as mercadorias normais, que têm
um custo de produção, a terra é fornecida livremente pela natureza.
"Terra, trabalho e dinheiro não são obviamente mercadorias", explicou
Polanyi. Trabalho "é vida", e "terra é apenas um outro nome para a
natureza". Não tendo sido produzida pelo trabalho e, portanto, não tendo
um custo de produção (valor clássico), a renda da terra é apenas uma
privilégio legal conferido à propriedade. Mas os mercados dão-lhe um
preço, de forma que transferir certos direitos de uso permite aos
proprietários extrair benefícios do arrendamento sem trabalho (ibidem,
72). Embora o valor dos terrenos seja criado principalmente pelo
investimento em infraestruturas públicas, os proprietários lutam por
guardar a renda da terra para si próprios. Isso impede que os governos
mantenham a renda da terra no domínio público, como a base tributária. E
na Antiguidade, grandes investidores e credores hipotecários executantes
expulsaram os pequenos proprietários, privando os governos de impostos,
bem como de mão-de-obra em corveia e de um exército de livres cidadãos.

Quando Polanyi chamou ao dinheiro uma mercadoria fictícia, estava a
rejeitar a ideia de o tornar escasso, limitando o seu fornecimento ao de
ouro, imitando assim as mercadorias, como se o dinheiro fizesse parte de
um sistema de permutas. Isso também dava aos credores um poder esmagador
sobre o resto da economia, especialmente sobre o trabalho e a terra,
empurrando os níveis salariais e os preços das colheitas para abaixo das
necessidades básicas quando os governos foram privados da capacidade de
criar crédito para empregar mão-de-obra. Ele criticou Ricardo por ter
"doutrinado a Inglaterra do século XIX na convicção de que o termo
«dinheiro» significava um meio de troca", com as notas bancárias a serem
prontamente convertíveis em ouro (ibidem: 196). Essa política levou à
deflação, dada a oferta limitada de ouro. A queda dos preços e dos
salários penalizou os devedores quando os países voltaram à
convertibilidade do ouro após inflacionamentos em tempo de guerra. Isso
ocorreu na Grã-Bretanha depois de 1815, e nos Estados Unidos da América
depois da década de 1870, quando se procurou reduzir os preços para que
o preço do ouro - e, portanto, os salários e os preços das mercadorias -
voltassem a descer para o seu nível anterior à Guerra Civil. O resultado
foi uma depressão económica prolongada, fazendo com que a terra e outros
bens fossem transferidos dos devedores para os credores.

A alternativa preferida de Polanyi era fazer o dinheiro servir objetivos
sociais, tornando-o uma pura criação pública da lei. Tal dinheiro
simbólico não tem custo de produção inerente, "mas surge através do
mecanismo da banca ou das finanças do Estado", e por isso não é uma
mercadoria com um custo de produção em trabalho: "o dinheiro real,
finalmente, é apenas um sinal de poder de compra que, em regra, não é
produzido de todo, mas surge através do mecanismo da banca ou das
finanças do Estado" (Ibidem: 72).

Os adversários austríacos de Polanyi argumentaram que a criação de
dinheiro público, programas de despesas sociais, regulamentos e
subsídios distorciam a supostamente eficiente economia "natural" dos
mercados fixadores de preços. Na prática, isso significava salários
baixos e uma transferência das terras para os ricos. Forças de mercado
não regulamentadas e a procura de ganhos levaram o sistema social a ser
gerido com o objetivo puramente financeiro de "máximos ganhos
monetários", sujeitando a terra, o trabalho e o dinheiro a um viés
pró-credor, em vez de favorecer a maioria endividada da população. Era
para evitar esta polarização económica e esta austeridade, afirmava
Polanyi, que "a regulação e os mercados... cresceram em conjunto". O
comércio e os rendimentos foram regulados durante a maior parte da
história, graças ao facto de que, "em regra, o sistema económico foi
absorvido pelo sistema social". (ibidem: 68)

Mas em meados da década de 1920, operações de caça ao dinheiro
/("money-seeking drives") / estavam a desestabilizar a agricultura e a
indústria. A França impôs a austeridade ao aderir ao padrão-ouro, e uma
política semelhante da Grã-Bretanha levou a uma Greve Geral a nível
nacional, em 1926. A moral, disse Polanyi, foi que:

    "Permitir que o mecanismo de mercado fosse o único diretor do
    destino dos seres humanos e do seu ambiente natural, na verdade, de
    facto, mesmo da quantidade e da utilização a dar ao poder de compra,
    resultaria na completa demolição da sociedade. ... a administração
    pelo mercado do poder de compra liquidaria periodicamente as
    empresas, pois a escassez e o excesso de dinheiro seriam tão
    desastrosos para as empresas como as inundações e as secas na
    sociedade primitiva" (Ibidem: 73).

*O projeto interdisciplinar de Polanyi em Columbia *

A publicação de /A Grande Transformação / em 1944 levou à nomeação de
Polanyi para um lugar de professor na Universidade da Columbia
(1947-53), onde organizou um grupo de antropólogos e historiadores da
Antiguidade para estudar como as sociedades não mercantis moldaram as
suas relações laborais, fundiárias e monetárias. Isto proporcionou uma
alternativa empírica ao pressuposto de que o estabelecimento de preços
em mercados "livres" sempre teria existido, sem "interferência" do governo.

A primeira investigação do grupo sobre alternativas à versão
livre-mercantil da história foi publicada no volume /Trade and Market in
the Early Empires / (Comércio e Mercado nos Primeiros Impérios) (1957),
um resultado dos debates do início do século XX entre os chamados
primitivistas e os modernistas. A leitura modernista da história insiste
em que os indivíduos egoístas inventaram espontaneamente o dinheiro e a
empresa, sem que caciques, palácios ou templos desempenhassem nisso um
qualquer papel. Contra esta ideia, Karl Bücher (1847-1930) contrapôs que
as antigas economias não estavam organizadas segundo linhas
individualistas modernas. Ele "opôs-se à economia clássica e neoclássica
com o argumento de que estas teorias tinham um conceito de economia
vinculado ao seu tempo, um conceito que eles assumiram ser aplicável a
todos os períodos históricos" (Polanyi, 1962: 164).

Tal como Bücher, Polanyi rejeitou reconstruções que se liam como se um
economista livre-mercantil entrasse numa máquina do tempo e voltasse ao
Neolítico para organizar o crédito e os mercados segundo linhas
modernas. Se qualquer economia arcaica tivesse seguido esse modelo
idealizado de manual, observou o seu seguidor Johannes Renger (1972), os
devedores teriam aí fugido ou desertado para rivais que prometessem
cancelar as suas dívidas. A ajuda mútua e os seus associados
constrangimentos à ganância eram condições para a sobrevivência social.
Esperava-se dos chefes que fossem generosos, protegendo os fracos e os
necessitados.

Elaborando as ideias desenvolvidas em /A Grande Transformação, / Polanyi
recorreu à Antropologia e à História antiga para mostrar que as
"obrigações monetárias não surgem normalmente das transações", da troca
de bens nos mercados. Tinham mais a ver com o pagamento de impostos,
dívidas e outras obrigações: "É vital fazer uma equiparação de bens tais
como a cevada, o azeite e a lã, em que os impostos ou os arrendamentos
têm de ser pagos, ou que podem constituir rações ou salários
alternativos" (Polanyi, 1957: 264f).

Polanyi caracterizou a troca mercantil como um de três sistemas de troca
distintos: a reciprocidade (troca de presentes), a redistribuição e a
troca "de mercado". "O comportamento de reciprocidade entre indivíduos
integra a economia apenas se forem dadas estruturas simetricamente
organizadas, tais como um sistema simétrico de grupos de parentesco".
Tais simetrias podem ser perturbadas pela "ascensão do mercado a uma
força dominante na economia", sobretudo quando "a terra e os alimentos
forem mobilizados através da troca, e a mão-de-obra for transformada
numa mercadoria livre para ser adquirida no mercado" (ibidem: 225). Ele
não via isto como tendo-se desenvolvido já por volta de 1800 AC, no
período babilónico antigo, nem que a dívida fosse então a principal
alavanca que permitisse aos indivíduos ricos obter as terras dos
pequenos proprietários. Os credores frequentemente faziam-se adotar como
"filhos" do proprietário de terra endividado, para que pudessem herdar a
terra, no devido tempo, sob as regras existentes que exigiam a
manutenção da terra nas mãos de famílias hereditárias.

Polanyi resumiu a sua esperança de que a sociedade se curasse de ter
desencastrado os mercados do seu contexto social, restaurando "formas
reminiscentes da organização económica de tempos primordiais". A
sociedade precisava de reencastrar as estruturas de mercado para bens e
serviços, administrando preços e rendimentos chave numa nova economia
redistributiva. Tal redistribuição "pressupõe a presença de um centro de
afetação na comunidade", um palácio ou templo em tempos antigos,
escritórios governamentais democráticos no mundo de hoje.

*A influência de Polanyi na Assiriologia *

Dois dos seguidores de Polanyi, Leo Oppenheim e Johannes Renger,
descreveram a Suméria e a Babilónia como economias redistributivas, a
partir do templo ou do palácio. O artigo de Renger de 1984 sobre o
contexto palaciano do comércio e das empresas mostrou o papel destas
grandes instituições na alocação e na fixação dos preços dos recursos.
Para levar a cabo o planeamento antecipado das suas próprias operações e
para realizar transações com a economia em geral, palácios e templos
precisavam de avaliar o pagamento de rendas e taxas em cereais num
balanço geral consolidado, juntamente com o comércio, o pastoreio e
outras atividades. A sua solução para este problema foi criar aquilo que
hoje conhecemos como dinheiro.

A caracterização por Polanyi da redistribuição como um modo de troca
abrangendo toda a economia – como se a Mesopotâmia não pudesse ser
simultaneamente redistributiva e uma economia de mercado – implicava que
a Mesopotâmia não podia ter também um comércio florescente orientado
para o lucro, num sector onde os preços variavam, especialmente entre as
cidades. Isto deixou-o exposto a críticas, designadamente as de Morris
Silver, que citou exemplos de comércio privado em busca de lucro, como o
dos assírios na Capadócia, bem como provas de que os preços excediam
frequentemente os prescritos nas proclamações reais (Silver, 1983;
Silver 1995).

Renger descreveu como muitas das necessidades palacianas da terceira
dinastia neo-sumeriana de Ur III (final do terceiro milénio AC) "foram
tratadas por empresários para a casa [real] /("Palastgeschäft") / pela
qual atuavam" (Renger, 1994: 197). Os comerciantes conduziam o comércio
empresarial por sua própria conta, frequentemente por consignação do
palácio, mas também vendendo, com uma margem de lucro, para o resto da
economia. Também emprestaram por sua própria conta, e cobraram impostos
e taxas pelo palácio. A mistura entre a economia palaciana
redistributiva e as partes menos formais da economia, onde os preços
eram mais flexíveis, torna muitas vezes difícil distinguir entre
"público" e "privado", e assim entre troca redistributiva e "de
mercado", empréstimo e juros, e rendas ou outras obrigações (Yoffee,
2003: 6).

O comércio empresarial para o mercado e o crédito na Mesopotâmia
coexistiram com a redistribuição palaciana com preços administrados e
troca de presentes, cada um na sua própria esfera. E a Mesopotâmia não
estava sozinha como uma "economia mista". Quase todas as sociedades nos
últimos cinco mil anos têm sido compósitas, apresentando simultaneamente
os três modos de troca de Polanyi. Ainda hoje, a troca de presentes
entre familiares e amigos e os preços administrados para bens e serviços
públicos coexistem com as trocas no mercado.

No entanto, a procura de ganhos monetários era geralmente encastrada
/("embedded") / num contexto social mais geral. As proclamações reais de
abolição de dívidas /("Royal Clean Slate") / e de "justiça e equidade",
anularam o acúmulo de impostos em cereais e outras dívidas agrárias,
libertaram servos e restauraram as terras confiscadas aos pequenos
proprietários. (Forneço uma história de tais atos em /…and forgive them
their debts – Lending, Foreclosure and Redemption from Bronze Age
Finance to the Jubilee year / – 2018). Isto preservou uma cidadania
livre para servir no exército e fornecer mão-de-obra de corveia, em vez
de cair em servidão permanente por dívidas a credores não oficiais.

As últimas décadas de investigação assíriológica mostraram que a
Mesopotâmia não era nem primitiva nem moderna enquanto tal. Como
Dominique Charpin resumiu, a ideia de Polanyi da Babilónia de Hammurabi
como sendo uma economia não mercantil foi formulada teoricamente, sem o
benefício da documentação agora disponível. Muitos dos textos publicados
nos últimos anos mostram muito claramente que a flutuação dos preços
caracterizou o mercado. É demasiado fácil utilizar estes termos de forma
anacrónica e permitir que surjam mal-entendidos (Charpin, 2003: 196).

Tais mal-entendidos tiveram já consequências de grande alcance, há meio
século atrás. Um dos mais influentes seguidores de Polanyi, Moses
Finley, excluiu o antigo Próximo Oriente da narrativa da civilização
ocidental. Expulso do ensino na América durante a caça às bruxas
maccartista dos anos 1950, por ter sido comunista, Finley insistiu em
que a civilização ocidental se desenvolveu a partir de comunidades
primitivas cujas práticas de chefia evoluíram diretamente para as
clássicas cidades-estado gregas e romanas. Na sua opinião:


    "As economias do Próximo Oriente eram dominadas por grandes
    complexos sediados em palácios ou templos, que possuíam a maior
    parte das terras aráveis, praticamente monopolizaram tudo o que se
    pode chamar «produção industrial», bem como o comércio externo (que
    inclui o comércio entre cidades, e não apenas o comércio com partes
    estrangeiras), e organizaram a vida económica, militar, política e
    religiosa da sociedade através de uma única operação de manutenção
    de registos complicada, burocrática, para a qual a palavra
    "racionamento", tomada em termos muito gerais, é a melhor descrição
    de uma só palavra que me ocorre. ... A exclusão do Próximo Oriente
    não é, portanto, arbitrária..." (Finley, 1985: 28).

Esta exclusão das economias do Próximo Oriente, sob o pretexto
equivocado de que não teriam mentalidade empreendedora, perde por
completo de vista o seu carácter "misto". A sua atitude dualista
caracteriza a tendência de alguns seguidores de Polanyi para pensar as
sociedades como sendo ora "sociais" ora "de mercado livre", como se a
empresa comercial e a dívida remunerada fossem incompatíveis com os
regulamentos públicos e os preços administrados. Finley tratou estes
últimos como sendo um beco sem saída primitivista, à maneira da
interpretação de Karl Wittfogel do "despotismo oriental", imaginando que
as economias irrigadas tinham necessariamente um autoritarismo
totalitário do tipo estalinista. Na realidade, os palácios foram
patrocinadores de empresas e de uma economia mista resiliente, que mais
tarde forneceriam à Grécia e Roma clássicas as suas técnicas básicas de
empresa comercial e de dívida remunerada.

Comentando como a visão dualista de Finley foi controvertida pela massa
de documentação entretanto surgida sobre comerciantes e investidores,
Steven Garfinkle observa:

    "O uso do termo «primitivo», portanto, torna-se particularmente
    censurável quando aplicado à economia mesopotâmica ... Para Finley,
    o antigo Próximo Oriente não era apenas primitivo, era estranho e,
    portanto, não fazia parte da «nossa» história. Ao colocar o antigo
    Próximo Oriente fora da experiência ocidental, Finley foi capaz de
    justificar a sua exclusão da história antiga; mas apenas se
    compreendermos o termo "história antiga" como aplicável
    exclusivamente às origens cuidadosamente escrutinadas do «Ocidente»"
    (Garfinkle, 2012: 6f).

    "Os assiriólogos têm demonstrado o papel dos empresários buscadores
    de ganhos monetários, surgindo sobretudo em conjugação com a
    economia palaciana, gerindo empresas realengas e comerciando com
    outras cidades e regiões. De facto, de que outra forma poderiam ter
    tido lugar o comércio e a privatização?" (Garfinkle, 2004a; 2004b)

*A Nova Arqueologia Económica como um derivado da abordagem de Polanyi *

A Nova Arqueologia Económica é, em muitos aspetos, um derivado do grupo
de Polanyi na Universidade de Columbia, enfatizando que os mercados
foram quase sempre regulados para evitar desequilíbrios crónicos e
insolvência. Esta escola, porém, vai para além da Polanyi, ao enfatizar
o papel da dívida e também o papel das empresas que emergiram de uma
simbiose entre a economia palaciana da Mesopotâmia e os comerciantes
individuais. A /International Scholars Conference on Ancient Near
Eastern Economies / (ISCANEE) procurou preencher as lacunas da história
da civilização através de um levantamento das empresas da Idade do
Bronze, do palácio e do templo, da posse da terra, da dívida e do
desenvolvimento precoce do dinheiro, bem como da distinção primordial
entre o crédito comercial e a usura agrária.

O nosso grupo começou em 1994 quando trabalhei com Karl
Lamberg-Karlovsky no departamento de Antropologia de Harvard – o Museu
Peabody – para organizar uma série de colóquios para os quais convidámos
importantes assiriologistas, egiptólogos e arqueólogos, para encontrar
as origens das práticas comerciais e monetárias da civilização e a forma
como as civilizações primordiais conseguiram evitar que a dívida pessoal
desestabilizasse e polarizasse as economias, como se tornou o caso na
Grécia e em Roma. O nosso grupo produziu cinco volumes de colóquios
sobre posse da terra e urbanização, dinheiro e juros, a organização do
trabalho, comércio e empresas. Juntos, mostram como as técnicas básicas
da empresa comercial foram criadas nas economias mistas da Idade do
Bronze do Próximo Oriente.

A primeira conferência foi realizada em novembro de 1994, na
Universidade de Nova Iorque, sobre 'Privatização no Antigo Próximo
Oriente e no Mundo Clássico' (publicada pelo Museu Peabody de Harvard,
1996). Centrou-se na relação entre as grandes instituições e o resto da
economia, numa época em que a terra era ocupada por unidades clãnicas e
as atividades mercantis eram dominadas pelo palácio, enquanto os templos
atuavam mais como aquilo a que hoje se chamaria serviços públicos,
fornecendo produtos de artesanato a comerciantes que se dedicavam ao
comércio de importação e exportação.

Este colóquio foi seguido por uma combinação de duas reuniões, a
primeira organizada pela Universidade de Nova Iorque, em 1996, e a
segunda pelo Instituto Oriental da Rússia, em São Petersburgo, sobre
'Urbanização e Propriedade da Terra no Antigo Próximo Oriente' (Peabody
Museum, 1999). Os seus colaboradores apontaram para o papel da usura em
minar a posse da terra baseada no clã. Historicamente, a dívida tem sido
uma alavanca para concentrar a terra nas mãos de credores hipotecários.

Estes dois volumes lançaram as bases do que pretendíamos ser a pedra de
toque da nossa série, abordando a lógica que levou os governantes da
Idade do Bronze a anular dívidas de usura rurais e pagamentos em atraso,
de modo a preservar a estabilidade económica. O terceiro colóquio foi
realizado em 1998 na Universidade de Columbia: 'Dívida e Renovação
Económica no Próximo Oriente Antigo' ( /Debt and Economic Renewal in the
Ancient Near East / – CDL Press, 2002). Em contraste com a crença
modernista então difundida que rejeitava as Limpezas de Cadastro ("Clean
Slates") como sendo um ideal utópico do passado, o nosso grupo
documentou registos legais mostrando que estas amnistias reais eram de
facto aplicadas na prática.

A razão era suficientemente clara: As sociedades teriam sucumbido à
servidão e à monopolização da terra há milénios atrás, se tivessem
considerado que "mercados livres" significavam a santidade da obrigação
de pagamento das dívidas pessoais. Roma foi a primeira grande sociedade
a não cancelar as dívidas agrárias e pessoais. Para a sua oligarquia, a
"santidade da propriedade" significava uma licença para executar a
hipoteca das terras de autossustento e de outras propriedades dos
devedores.

O nosso grupo foi reconhecido como prolongador do trabalho da geração de
Polanyi, e o colóquio incluiu uma visita ao arquivo dos seus documentos
em Columbia. Recebemos respostas tão positivas que realizámos um quarto
colóquio em 2000, no Museu Britânico, sobre as origens do dinheiro,
'Criando a Ordem Económica: Manutenção de registos, padronização e
desenvolvimento da contabilidade no antigo Próximo Oriente' ( /Creating
Economic Order: Record-Keeping, Standardization and the Development of
Accounting in the Ancient Near East / – CDL Press, 2004). O colóquio
seguinte foi realizado na Alemanha em 2005: 'O Trabalho no Mundo Antigo'
( /Labor in the Ancient World / – ISLET, 2015). Juntos, estes cinco
volumes desenharam um novo quadro do Neolítico e da Idade do Bronze no
Próximo Oriente, que alarga os vislumbres fundamentais de Karl Polanyi.

*O papel dos templos e dos palácios nas origens do dinheiro *

O dinheiro teve origem nas práticas contabilísticas desenvolvidas pelas
grandes instituições da Mesopotâmia, no terceiro milénio AC, para
denominar transações entre elas e o resto da economia, desde logo o
pagamento de impostos, taxas e a aquisição de bens e serviços. A prata
servia para denominar as dívidas contraídas pelos comerciantes por
avanços com vista a encomendas de matérias-primas e bens de luxo (de que
o palácio era, normalmente, o principal cliente), enquanto que a renda
da terra, as taxas por serviços e os adiantamentos aos cultivadores,
durante o ano agrícola, eram medidos em grãos de cereais. A maior parte
das trocas ocorreu a crédito, a liquidar no final da época de colheita,
na eira, ou no final de um período estipulado para a concretização de um
ato de comércio. A aceitação da prata e do grão pelo palácio tornou-os
aceitáveis como meio geral de pagamento por toda a economia.

Polanyi enfatizou a criação legal do dinheiro pelo governo. Aristóteles
observou também, há muito tempo, que o termo grego para cunhagem,
/nomisma, / se baseia na raiz /nomos / (a raiz do nosso termo
numismática), que significa lei. O que dava capacidade de circulação às
mercadorias monetizadas era, acima de tudo, o serem aceites pelo palácio
e pelo templo no pagamento de impostos ou taxas por bens e serviços. Os
governos modernos podem pagar as despesas sociais e fornecer à economia
dinheiro para crescer, desde que cobrem impostos para criar um valor de
uso para esse dinheiro.

Impostos, serviço da dívida e criação pública de dinheiro são ignorados
por aqueles que seguem o economista austríaco Carl Menger e a fábula do
dinheiro por ele elaborada em 1871. Ele descreveu o dinheiro como
emergindo entre os indivíduos que trocam entre si mercadorias e preferem
pequenos objetos portáteis como o seu veículo de troca e, eventualmente,
também de poupança e acumulação de riqueza (Menger, 1871/1892).
Subsequentes austríacos denunciaram /Trade and Market in the Early
Empires / (1957) como uma ameaça a esta linha individualista e
abertamente antigovernamental de teorização. Fritz Heichelheim chamou a
este esforço académico "amador" e "um livro muito lamentável", dizendo
que não deveria ter sido publicado. "Os teóricos económicos sistemáticos
terão de rejeitar completamente ou remodelar as ideias sobre história
económica expressas neste livro" (Heichelheim, 1960: 108).

Heichelheim criara anteriormente uma fábula de "empresa privada" que não
reconhecia qualquer papel para templos e palácios arcaicos. Ele teorizou
que o juro teve origem quando os credores neolíticos "adiantaram" os
animais e as sementes de culturas em troca de uma parte do excedente. A
sua suposição "modernista" de que as taxas de juro iniciais refletiam a
produtividade, as taxas de lucro e o risco, nem sequer é válida hoje em
dia, mas é aplicada retroativamente no tempo como se explicasse a origem
dos juros (Heichelheim, 1958: 54f).

O mito da criação individualística de dinheiro e dos juros retrata
cultivadores e artesãos a trocarem os seus produtos entre si, e a
pedirem juros por empréstimos de gado e de cereais com vista a produzir
um excedente, a partir do qual o devedor pagará juros aos credores.
Diz-se que os credores mais abastados terão manifestado preferência por
peças de metal, como meios de poupança compactos e não perecíveis. Não
se diz é de onde é que este metal é suposto ter vindo. Durante toda a
Antiguidade foi refinado nos templos, o que garantiu o seu grau de
pureza, enquanto o palácio patrocinava o comércio para obter a prata e o
ouro. A prata importada era o artigo de maior prestígio, com doações
reais aos templos estabelecendo o seu estatuto social e cerimonial. O
palácio fez dela o principal meio para o comércio e os contratos
mercantis, bem como para a gestão de empresas do sector palaciano.

As permutas entre particulares não podem ser uma explicação realista.
Uma longa tradição de denúncia de comerciantes e credores por usarem
pesos e medidas falsos vai desde a "literatura da sabedoria" babilónica
até à Bíblia - um peso leve para emprestar ou vender, um peso pesado
para comprar ou receber pagamentos dos devedores. Este registo literário
deixa claro que mesmo o dinheiro-mercadoria nunca poderia ser deixado
aos particulares, porque fazê-lo seria franquear os portões para que
credores e comerciantes agissem de forma tortuosa. Uma autoridade
pública eficaz foi sempre necessária para controlar a fraude e garantir
uma negociação justa nas trocas do mercado. É por isso que os
defraudadores procuram, sempre que possível, desmantelar a capacidade
reguladora do governo, usando a palavra de ordem hipócrita dos mercados
livres.

Quem mais, senão templos e palácios, poderia ter fornecido normas
honestas? A troca monetária não poderia ter sido viável sem a sua
supervisão de pesos e medidas padronizados, atestando a pureza dos
metais monetários, e estabelecendo sanções contra a fraude. Foi por isso
que a prata foi cunhada em templos desde a Mesopotâmia até Roma. A nossa
palavra para "dinheiro" vem do Templo de Juno Moneta em Roma – a
"alertadora", cujos gansos grasnantes alertaram Roma para a ameaça de
uma invasão. (A palavra "moneta" referia-se originalmente a um presságio).

Não é possível explicar as origens e o desenvolvimento inicial do
dinheiro sem reconhecer o papel catalítico dos templos e palácios no 3º
milénio AC. Para além de denominar as dívidas subsistentes para com a
economia palaciana, o dinheiro forneceu uma base para a contabilidade
dos custos dos palácios e dos templos e para a afetação de recursos. O
emprego e a produção nestas grandes instituições foram numa escala muito
superior à da permuta interpessoal. Como parte da economia
redistributiva, os templos sumérios aprovisionavam a mão-de-obra
empregada nas suas oficinas têxteis e de outros artesanatos, que o
palácio exportava por prata e outras matérias-primas.

Os templos criaram e regulamentaram pesos e medidas para o xéquel e a
mina de prata, e os "alqueires" ku de grão, no seu sistema sexagesimal
(baseado em 60) de alocação calendárica baseada em meses padronizados de
30 dias, para facilitar a distribuição de salários. A prata (cunhada com
uma pureza especificada) e os grãos foram designados como o principal
meio de pagamento de impostos, taxas e outras dívidas no tempo da
colheita. O valor de um xéquel de prata foi fixado como igual a um
"quarto" gur de grão, para o pagamento de taxas e impostos ao palácio ou
a outros credores rurais. (É verdade que os cereais eram comercializados
entre cidades a preços que podiam aumentar acentuadamente em épocas de
fracasso das colheitas, como aconteceu no final do império neo-sumeriano
de Ur III).

Como aponta Lamberg-Karlovsky (2009), "No Estado patrimonial há pouca
divisão funcional entre as esferas privada e oficial. Os escritórios
oficiais têm a sua origem na casa do governante". Nesta relação, o
objetivo não é o lucro, mas sim a continuidade estável. A facilidade de
manutenção da contabilidade e relações de preços estáveis eram uma
lógica que implicava não deixar variar os preços. E a prata é o luxo
cimeiro, sendo isenta de cálculos de oferta e procura ou de custo de
produção.

Além disso, a reciprocidade e a redistribuição são organizadas segundo
linhas tão racionais como uma economia de mercado, mas a lógica é
diferente. Baseia-se no estabelecimento de um sistema de regularidade e
ordem, e não de mercados flexíveis na formação de preços.

As importações do terceiro milénio na Mesopotâmia também não afetaram os
preços, nem pela variação na oferta e procura, nem por serem
substancialmente mais ou menos caras. Os preços de mercado ou foram
administrados ou, uma vez fixados, continuaram por inércia com pouca
resposta a mudanças na oferta e na procura, exceto no caso de variações
sazonais nos preços das colheitas ou de respostas a falhas nas
colheitas. Além disso, em vez de depender do comércio para o essencial
do seu quotidiano, como é defendido hoje pelos entusiastas do comércio,
as principais importações da Mesopotâmia (onde os preços, pesos e
medidas e, portanto, a equivalência monetária é documentada pela
primeira vez) incluíam bens dos produtores como minérios, estanho ou
cobre, assim como luxos tais o ouro, a prata e pedras preciosas. As
principais exportações foram têxteis de prestígio fabricados nas
oficinas do templo ou do palácio (principalmente por viúvas de guerra
dependentes e seus filhos), bem como artigos funcionais como facas e
cinzéis. Este "comércio de luxos (uma percentagem significativa do
comércio de longa distância da Mesopotâmia - como evidenciado pelos
achados arqueológicos) envolveu uma muito pequena parte da população".

Estas conclusões são consistentes com as conclusões do colaborador
inicial de Polanyi, Leo Oppenheim, que descreveu a economia da
Mesopotâmia como nem primitiva, nem baseada em mercados "livres"
fixadores de preços, mas sim como uma economia mista, com preços
administrados dentro das grandes instituições, para a sua própria boa
contabilidade e para denominar os pagamentos que lhes eram devidos.

*O papel dominante da dívida *

Tendo em conta os problemas que a dívida tem causado ao longo dos
tempos, a análise de como as sociedades têm regulado o crédito e a
dívida deveria estar no centro da nossa compreensão do dinheiro. E tendo
em conta que as dívidas paradigmáticas da Mesopotâmia eram devidas aos
palácios, templos e cobradores da sua burocracia – por taxas e impostos,
tributo de povos conquistados e por mercadores que atuavam como
consignatários de encomendas do palácio - a análise do dinheiro
primordial deve logicamente caminhar a par do estudo da dívida e da
política fiscal coetâneas.

Os economistas convencionais tratam o crédito (e implicitamente, os
atrasados bem como os empréstimos) como sendo sempre produtivo e útil,
não como extrativo e socialmente desestabilizador. Representam a
intervenção governamental para anular dívidas como conduzindo à crise
económica, não como salvando as populações do empobrecimento e da
desordem. Esta abordagem doutrinária ignora o facto de que, na prática,
a "segurança da dívida" significava fazer com que os antigos devedores
em atraso pudessem perder as suas terras e a sua liberdade pessoal. Isto
significava a insegurança dos seus direitos de propriedade. Essa é que é
a verdadeira crise.

Por muito que Ricardo argumentasse que todas as dívidas estrangeiras
poderiam ser pagas por procura recíproca automática, os teóricos
modernos do ciclo económico descrevem o equilíbrio como sendo o
resultado da flexibilidade salarial e de preços. Para considerar o
encerramento generalizado da propriedade dos devedores como uma política
viável, é necessário pressupor que as economias se auto-ajustam de uma
forma estável, justa e eficiente. A realidade é que a desregulamentação
da dívida e das relações de posse da terra impõe uma austeridade
assolada pelo endividamento.

Representar o crédito e o plano de negócios financeiro como tendo apenas
efeitos económicos positivos produz uma caricatura da história. Ver a
dívida e os seus encargos em juros simplesmente como um arranjo entre
indivíduos não reconhece como o peso da dívida em toda a economia tende
a crescer para além da capacidade de ser paga. Faz vista grossa à forma
como as oligarquias financeiras agem na ausência de oposição pública. A
ganância por dinheiro é aplaudida, como se assegurar os créditos dos
credores fosse a forma mais racional de organizar uma economia. A
implicação disso é que não haveria necessidade de ação governamental "de
fora" do mercado, por exemplo, por meio de Limpezas de Cadastro /("Clean
Slates") / para reverter os efeitos da usura rural que corroeu a posse
tradicional da terra no período da Velha Babilónia (2000-1600 AC).

Ao longo da história, a dívida tem sido a principal alavanca para
privatizar a terra e reduzir as populações à servidão. A Mesopotâmia
conseguiu atrasar esta dinâmica polarizadora, subordinando os direitos
dos credores ao objetivo de sobrevivência dinástica. Mas à Grécia e Roma
clássicas faltava a tradição das Limpezas de Cadastro reais. Esse foi o
grande ponto de viragem. Tito Lívio, Plutarco e Diodoro descreveram como
o endividamento retirava direitos e cidadania à população romana, mas um
inquérito moderno, citando uma lista aparentemente exaustiva de 210
causas às quais a posteridade, numa ou noutra altura, atribuiu a
responsabilidade pelo declínio e queda de Roma, não inclui sequer o
endividamento (Demandt, 1984).

*A civilização ocidental como um desencastramento da economia do seu
contexto social *

Os registos desaparecem no Egeu depois de 1200 AC. Quando reapareceram,
seis séculos mais tarde, os chefes e senhores da guerra gregos e
italianos tinham adotado a prática da dívida remunerada, trazida pelos
comerciantes sírios e "fenícios" por volta do século VIII AC.
Crucialmente, porém, adotaram-na seletivamente, sem as Limpezas de
Cadastro que libertavam os devedores da servidão e restabeleciam os
direitos à terra que tinham sido perdidos para os credores de execução
hipotecária. As oligarquias gregas e romanas privatizaram o crédito e
libertaram-se a si próprias das revogações reais.

Os defensores do "mercado livre" retomaram o fio da civilização
ocidental "no meio", apenas depois de o crédito, a dívida e as relações
de propriedade se terem desencastrado e descontextualizado dos controlos
e equilíbrios /("checks and balances") / que sustentaram a descolagem
/("takeoff") / do Próximo Oriente. É como se o cancelamento das dívidas
agrárias da Idade do Bronze fosse um beco sem saída (ou mesmo o
"despotismo oriental"). A sua exclusão fomenta a ideia de que, desde as
clássicas Grécia e Roma até à atual onda de austeridade e
desregulamentação pró-credores, a "santidade da dívida" e a execução
hipotecária são um resultado primordial da seleção natural darwiniana e
da sobrevivência dos mais aptos (nomeadamente, os mais ricos), não uma
convenção que leva à dissolução social.

O conflito inerente entre governantes que procuram manter os seus
cidadãos livres da servidão por dívidas, por um lado, e credores que
procuram os seus próprios ganhos a expensas do palácio, tem sido um fio
que percorre toda a história da civilização. A característica distintiva
das economias ocidentais é a privatização do crédito, da terra natural e
das infraestruturas públicas. Este é o verdadeiro desvio em relação aos
milénios anteriores. As sociedades arcaicas tratavam a terra necessária
à subsistência como um direito básico para os seus cidadãos. Em vez de
mercantilizar a mão-de-obra e a propriedade da terra, para tornar
irreversível a servidão por dívidas e a execução hipotecária, os
governantes da Mesopotâmia proclamaram Limpezas de Cadastro /("Clean
Slates") / para evitar a polarização financeira entre credores e
devedores que mais tarde trouxeram uma Idade das Trevas. Hoje, a
dinâmica da dívida impõe austeridade ao mundo ocidental contemporâneo,
transferindo a propriedade para credores que ganharam suficiente
controlo sobre os governos para bloquear a proteção dos devedores.

A teoria otimista de Polanyi sobre o "duplo movimento" afirma que quando
uma sociedade se torna demasiado exploradora e polarizada, há uma reação
para a ressocializar. Isto é feito através do restabelecimento da
regulação pública do dinheiro, da troca e da terra, com vista a um
crescimento a longo prazo, em vez da procura de ganhos financeiros
imediatos. Ele esperava que o socialismo providenciasse os serviços
básicos como um direito humano, na premissa de que as pessoas não
deveriam ter de perder a sua liberdade e os seus direitos como o preço a
pagar pelas suas necessidades básicas.

O socialismo seria, essencialmente, a tendência inerente a uma
civilização industrial para transcender o mercado autorregulador,
subordinando-o conscientemente a uma sociedade democrática. É a solução
natural para os trabalhadores industriais, que não vêm razão alguma para
que a produção não seja regulada diretamente e para que os mercados
sejam mais do que uma marca útil, mas subordinada, numa sociedade livre.
Do ponto de vista da comunidade como um todo, o socialismo é apenas a
continuação desse esforço para fazer da sociedade uma relação
distintamente humana entre pessoas.

Na sua opinião, as políticas de "mercado livre" conduzem a tanta pobreza
e tensão que criam uma reação por uma maior regulação social. Esta é uma
versão política da Terceira Lei do Movimento de Newton: Cada ação cria
uma reação igual e oposta. Era esta a essência das reformas feitas à
Economia Política clássica no século XIX em direção ao socialismo: "A
sociedade protegia-se contra os perigos inerentes a um sistema de
mercado autorregulado" (Polanyi, 1944: 76). Polanyi esperava que a
devastação provocada pela Segunda Guerra Mundial criasse uma pressão
política para renovar o caminho em que as economias ocidentais pareciam
estar já a avançar, antes do desencadeamento das hostilidades.

Podemos agora ver que não há quaisquer garantias de que as sociedades
evoluam automaticamente para a frente e para cima. Esse determinismo
centra-se no potencial – o que as economias poderiam conseguir, se
utilizassem todo o conhecimento disponível no sentido do melhor
aproveitamento para todos. Senhores da guerra, credores, proprietários e
monopolistas privaram sempre as populações dos frutos do potencial
tecnológico, ao longo da história. Nem Polanyi nem qualquer outro
futurólogo económico da sua época se debruçou sobre o crescimento
exponencial da dívida como a principal dinâmica polarizadora das
economias, servindo como alavanca para forçar a privatização e reverter
as reformas da Era Progressiva.

O "duplo movimento" de Polanyi pode tomar a forma de uma reação
patrocinada pelos interesses instalados, contra as reformas, não apenas
a favor delas. Apesar do florescimento do socialismo democrático
britânico e europeu após a Segunda Guerra Mundial, os anos 1980
assistiram a essa reação, na forma do neoliberalismo, o Thatcherismo e a
Reaganeconomia, que desencadearam uma onda de privatizações e
desregulamentação dos mercados. Os lobistas financeiros de hoje e os
seus académicos de estimação estão a defender a intervenção do governo
não para estabilizar as economias, mas precisamente para impedir uma
reação social como o duplo movimento de Polanyi.

Todas as formas de sociedade têm gerido os mercados. A chave é quem os
gere, sobretudo na esfera das relações de crédito e do equilíbrio entre
a autoridade governamental e a riqueza privada. Libertar a procura de
ganhos monetários da regulação é economicamente polarizador, como se
verificou quando o longo colapso da Antiguidade na servidão fez
descarrilar muitas sociedades, durante muitos séculos. A contribuição de
Polanyi para a história social foi demonstrar a necessidade de regular
as finanças, a terra e os mercados de trabalho, num contexto social
global, a fim de manter a prosperidade em vez do empobrecimento.

O enfoque de Polanyi nos modos de troca enfatizou que a terra e a sua
posse deveriam ser tratadas como uma instituição social, não como uma
mercadoria. Isso não estava em desacordo com o ponto de vista de Marx.
Cada uma das fases económicas por este consideradas tinha o seu próprio
modo de posse de terra, bem como um papel próprio da mão-de-obra na
produção. A terra para autossustento era a base para os cidadãos e
militares da Antiguidade (até perderem a sua terra e a sua liberdade por
meio da usura). Sob o feudalismo, os conquistadores apropriavam-se da
renda da terra como terratenentes. Sob o capitalismo industrial, assim o
esperava Marx, a terra e a sua renda seriam socializadas (como o seriam
também para Polanyi). Em vez disso, a propriedade imobiliária, sob o
capitalismo financeiro, foi democratizada a crédito, sendo a maior parte
da renda da terra paga aos banqueiros na forma de juros hipotecários.

Os modos do dinheiro e do crédito também evoluíram da Antiguidade
através do feudalismo até à era moderna. Refletindo a origem, na Idade
do Bronze, do dinheiro de uso geral nos pagamentos ao palácio (ou, na
Antiguidade clássica, às autoridades civis), os preços e as taxas de
juro das dívidas e dos pagamentos fiscais eram administrados. Esta era
uma condição prévia inicial para a estabilidade. Antes dos mercados de
trabalho assalariado, a usura tornou-se a forma mais precoce de obter
trabalho dependente e a terra dos pequenos proprietários. Contudo, os
governantes da Mesopotâmia proclamaram periodicamente Limpezas de
Cadastro, para evitar a servidão por dívidas e a perda da posse da
terra, em mais do que numa base temporária.

Os imperadores romanos empenharam-se na emissão de moeda fiduciária,
levando à inflação de preços em resultado da sua incapacidade de
tributar as famílias ricas – as únicas capazes de pagar na economia
imperial em retração. Os reis medievais também "menosprezaram" a
cunhagem de moeda, na tentativa de pagar pelas suas guerras. A
alternativa foi uma inovação financeira, a dívida real aos banqueiros e
a detentores estrangeiros de obrigações.

Quando as dívidas de guerra reais não podiam ser pagas, os credores
exigiam direitos minerais, infraestruturas públicas e a criação de
monopólios reais (tais como as empresas comerciais das Índias Orientais
e Ocidentais, dos Países Baixos, França e Inglaterra). As finanças
tornaram-se assim a principal alavanca para privatizar o domínio
público, do mesmo modo que arrancou os direitos à terra na Antiguidade,
tornando o solo "comercializável" para os ricos e sujeito a execução
hipotecária por credores predatórios – irreversivelmente.

As taxas de juro são "redistributivas", quando fixadas pelo governo.
Assim são também os preços das obrigações e das ações, no âmbito do
Flexibilização Quantitativa pós-2008, prosseguida pelos bancos centrais
dos E.U.A. e da Europa. O capitalismo do Pentágono não é um mercado que
minimize os custos, como é descrito nos manuais de concorrência em
mercado livre. Funciona com base em contratos de custos acrescidos
/("cost-plus contracts"), / nos quais as empresas militaro-industriais
aumentam os seus lucros através da maximização dos custos de produção.

Por detrás da atual defesa do "mercado livre" está o poder que tem a
riqueza financeira de se apropriar do papel político, fiscal e de
planeamento central que Polanyi, Marx e outros socialistas esperavam ver
expandido nas mãos de um governo democrático. O que daí resultou em
termos de mercados financeirizados de propriedades e instrumentos de
dívida é o oposto do que os reformadores esperavam criar há um século
atrás. A tomada financeira /("financial takeover") / da política
governamental reflete um plano empresarial de despojamento de ativos e
austeridade na economia em geral.

Isto não é o que Marx ou Polanyi esperavam. Se é para onde as dinâmicas
de mercado da civilização ocidental estão a conduzir, será uma repetição
do colapso da Antiguidade como um colapso no feudalismo.

*Referências bibliográficas *

Charpin, Dominique. /Hammurabi of Babylon / . London and New York.

Finley, Moses. 1985. /The Ancient Economy / . 2nd ed., Berkeley.

Demandt, /Der Fall Roms: Die Auflösung der römoschen Reichs im Urteil
der Nachwelt / (Munich 1984).

Garfinkle, Steven J. 2012. /Entrepreneurs and Enterprise in Early
Mesopotamia: A Study of Three Archives from the Third Dynasty of Ur
(2112–2004 BC) / . Bethesda, Maryland.

Garfinkle, Steven J. 2004a. 'Shepherds, Merchants, and Credit: Some
Observations On Lending Practices in Ur III Mesopotamia', /Journal of
the Economic and Social History of the Orient / , 47, 1-30.

Garfinkle, Steven J. 2004b. 'Public versus Private in the Ancient Near
East', in Daniel C. Snell (ed.), /A Companion to the Ancient Near East.
Blackwell / , pp. 384-396.

Heichelheim, Fritz. 1960. 'Review of Polanyi, Arensberg and Pearson,
Trade and Market in the Early Empires', /Journal of the Economic and
Social History of the Orient / , 3, 108-110.

Heichelheim, Fritz. 1958. /An Ancient Economic History, from the
Palaeolithic Age to the Migrations of the Germanic, Slavic and Arabic
Nations / , I. Rev. ed., Leiden.

Hudson, Michael. 1992. 'Did the Phoenicians Introduce the Idea of
Interest to Greece and Italy – And if So, When?', in Gunter Kopcke
(ed.), /Greece Between East and West: 10th8th Centuries BC / . Berlin,
pp. 128-143.

Hudson, Michael. 2000. 'Karl Bücher's Role in the Evolution of Economic
Anthropology', in Jürgen Backhaus (ed.), Karl Bücher. /Theory, History,
Anthropology, Non-Market Economies / . Marburg: Metropolis Verlag, pp.
301-336.

Lamberg-Karlovsky, C.C. .2009. 'Structure, Agency and Commerce in the
Ancient Near East', /Iranica Antiqua / , XLIV, 47-88.

Manning, J. G. e Ian Morris (eds.). 2005. /The Ancient Economy: Evidence
and Models / (Stanford: 2005), in /Archiv für Orientforschung / 51
(2005/2006), pp. 405-11.

Menger, Carl. 1871/1892. 'On the Origin of Money', traduzido in
/Economic Journal / , 2, 239-55.

Oppenheim, Leo. 1949. 'The Golden Garments of the Gods', /Journal of
Near Eastern Studies / , 8, 172-93.

Polanyi, Karl. 1944. /The Great Transformation: The Political and
Economic Origins of Our Time / . New York City: Farrar & Rinehart.

Polanyi, Karl. 1957. 'The Economy as Instituted Process,' in Karl
Polanyi, Conrad M. Arensberg e Harry W. Pearson, (eds.), /Trade and
Market in the Early Empires / . New York.

Polanyi, Karl. 1962. Karl Bücher. /International Encyclopedia of the
Social Sciences / , II 164.

Ph. Chancier, F. Joannès, P. Rouillard e A. Tenu, (eds.). 2005. /Autour
de Polanyi: vocabularies, théories et modalities des échanges. / Paris.

Renger, Johannes. 1972. 'Flucht als soziales Problem in der
altbabylonischen Gesellschaft', in Dietz O. Edzard, (ed.),
/Gesellschaftsklassen im Alten Zweistromland und in den angrenzenden
Gebieten / . Munich: Verlag der Bayerischen Akademie der Wissenschaften,
pp. 167-182.

Renger, Johannes. 1994. 'On Economic Structures in Ancient Mesopotamia',
/Orientalia / , 18.

Silver, Morris. 1983. /Prophets and Markets: The Political Economy of
Ancient Israel. / Boston/Hague.

Silver, Morris. 1995. 'Prophets and Markets Revisited', in K. D. Irani e
Morris Silver (eds.), /Social Justice in the Ancient World. / Westport,
Conn.

Yoffee, Norman. 1977. /The Economic Role of the Crown in the Old
Babylonian Period, / Malibu.

'Reconstructing the Origins of Interest-Bearing Debt and the Logic of
Clean Slates', in Michael Hudson e Marc Van De Mieroop. /Debt and
Economic Renewal in the Ancient Near East / (CDL Press, Bethesda, Md.,
2002, pp. 19f.)

*[*] Economista norte-americano, professor de Economia na Universidade
do Missouri, em Kansas City, pesquisador do Levy Economics Institute do
Bard College e Presidente do Institute for the Study of Long-Term
Economic Trends (ISLET). Estudou e meditou extensamente e em
profundidade sobre história e teoria económica, nas suas diversas
escolas, incluindo a fisiocrática, a economia política clássica,
marxista, neoclássica, keynesiana, pós-keynesiana, a teoria monetária
moderna, etc. Dedicou particular atenção ao problema da dívida, pública
e privada. Foi analista financeiro em Wall Street e conselheiro
económico, sobre finanças e direito fiscal, de governos de todo o mundo,
incluindo a Islândia, a Letónia e a China, para além de muitas
organizações não-governamentais. Já foi considerado "o melhor economista
da atualidade"
<https://www.counterpunch.org/2016/02/03/why-michael-hudson-is-the-worlds-best-economist/>
. É autor de numerosos livros, entre os quais /The Myth of Aid: The
Hidden Agenda of the Development Reports / (1971), /Global Fracture: The
New International Economic Order/
<https://www.bookdepository.com/Global-Fracture-Michael-Hudson/9780745323947?ref=grid-view&qid=1601483375299&sr=1-4>
(1977), /Super-Imperialism: The Origin and Fundamentals of U.S. World
Dominance/
<https://www.bookdepository.com/Super-Imperialism-Michael-Hudson/9780745319896?ref=grid-view&qid=1601483084317&sr=1-29>
(2003), /Trade, Development and Foreign Debt – A history of theories of
polarisation and convergence in the international economy/
<https://www.bookdepository.com/Trade-Development-Foreign-Debt-Michael-Hudson/9783980846691?ref=grid-view&qid=1601483019252&sr=1-6>
(2009), /The Bubble and Beyond/
<https://www.bookdepository.com/Bubble-Beyond-Michael-Hudson/9783981484243?ref=grid-view&qid=1601482877460&sr=1-3>
(2012), /Killing the Host – How Financial Parasites and Debt Destroy the
Global Economy/
<https://www.bookdepository.com/Killing-Host-Michael-Hudson/9783981484281?ref=grid-view&qid=1601482777872&sr=1-1>
(2015), /J is for Junk Economics: A Guide to Reality in an Age of
Deception/
<https://www.bookdepository.com/J-is-for-Junk-Economics-Michael-Hudson/9783981484250?ref=grid-view&qid=1601482830190&sr=1-2>
(2017) e /…and forgive them their debts – Lending, Foreclosure and
Redemption from Bronze Age Finance to the Jubilee year/
<https://www.bookdepository.com/Forgive-Them-Their-Debts-Michael-Hudson/9783981826036?ref=grid-view&qid=1601482919393&sr=1-4>
(2018), entre muitos outros. Este ensaio foi publicado originalmente em
04/Setembro/2020. *

*O original encontra-se em michael-hudson.com/...
<https://michael-hudson.com/2020/09/debt-land-and-money-from-polanyi-to-the-new-economic-archaeology/>

e a tradução de Angelo Novo em
www.ocomuneiro.com/nr31_02_MichaelHudson.html
<http://www.ocomuneiro.com/nr31_02_MichaelHudson.html> *

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/m_hudson/divida_terra_dinheiro_set20.html
1/10/2020

terça-feira, 29 de setembro de 2020

As Revoluções Coloridas e alguns truísmos … (I)

 


// Carlos Luque

O imperialismo ocidental desenvolveu uma sofisticada teoria, técnica e
prática de massas (ou que pareça sê-lo). Mobiliza todo o seu arsenal
ideológico e mediático, os seus poderosíssimos meios financeiros (e a
capacidade que tem de corromper), a sua completa falta de escrúpulos e
de respeito pelos povos e pela vida humana, o seu gigantesco poderio
militar. A destruição da Jugoslávia foi em muitos aspectos o modelo
acabado dessa acção criminosa.

A história mostra que a sobrevivência de uma Revolução, ou de qualquer
sistema político e social contrário ao imperialismo depende da coesão
social e da luta unitária de dentro das instituições referendadas pelas
maiorias.

Para recolher apenas algumas das razões, sem pretender abarcar os
múltiplos aspectos do tema que dão resposta a esta questão, e com o
intuito de provocar reflexão, é necessário começar por um pouco da
história recente e do papel que desempenharam nela alguns personagens.

Gene Sharp é o “exitoso” autor de um manual que expõe 198 técnicas para
realizar uma “revolução não violenta” ou, como também é conhecida,
“suave”, ou “colorida”. (Veremos de onde vem esta última curiosa
denominação e sua relação com Cuba). Traduzidas em mais de 30 idiomas,
as técnicas foram aplicadas com sucesso, para citar apenas alguns
países, na Sérvia, Geórgia e Ucrânia.

Está irrefutavelmente documentado que os interesses norte-americanos e
europeus da NATO intervieram activa e decididamente na desintegração da
Iugoslávia de Josip Broz ‘Tito’, aproveitando os erros cometidos pelos
governos de Tito e quem lhe sucedeu após a sua morte e a desintegração
da URSS, os conflitos interétnicos dos diferentes povos que formaram a
Federação Jugoslava e os protestos sociais e estudantis que eclodiram
naquele país desde os anos 90, exacerbados, planeados e dirigidos por
figuras ligadas aos serviços de informações para aplicar os ensinamentos
de Gene Sharp.

Esta nota pode começar com vários factos e seus personagens, mas
escolhemos uma pergunta.

Quem é Srda Popovic?

Por que devemos conhecer melhor esse personagem e a história da qual é
protagonista? A resposta mais curta: é o discípulo mais destacado de
Gene Sharp. E Sharp é autor de um Manual que expõe as 198 técnicas para
realizar uma “revolução não violenta”, ou como é mais conhecida, uma
“revolução colorida”.
As técnicas descritas na obra de Gene Sharp, traduzidas em mais de 30
idiomas, foram aplicadas com sucesso, para citar apenas três exemplos:
na Sérvia, Geórgia e Ucrânia. Desde há anos que são experimentadas, com
altos e baixos, na Venezuela. Mas curiosamente, como apontam alguns
analistas, não na Colômbia, no México nem em Honduras, para citar também
três países do pátio com graves problemas de violência ou manifestações
sociais mais ou menos intensas.

A inefável Wiki, na sua secção Prémios e Reconhecimento, informa o
leitor que:
“A revista “Foreign Policy” incluiu em 2011 Popović como um dos “100
mais importantes pensadores globais” por inspirar directa e
indiretamente manifestantes na Primavera Árabe e preparar activistas em
mudança social não violenta no Médio Oriente. Em Janeiro de 2012, The
Wired incluiu Popović entre as “50 pessoas que mudarão o mundo”.
Kristian Berg Harpviken, director do Instituto Internacional de Estudos
para a Paz em Estocolmo, considerou que Popović poderia estar entre os
candidatos ao Prémio Nobel da Paz em 2012. O Fórum Económico Mundial de
Davos considerou Popović como um dos Jovens Líderes Globais em 2013.”

A actividade pela qual Srda Popovic recebeu esses prémios e
reconhecimentos está intimamente relacionada aos acontecimentos que,
desde a morte de Josip Broz ‘Tito’ em 1980, precipitaram a desintegração
da República Federativa Socialista da Jugoslávia.

É uma história que merece actualização. Porque ilustra
paradigmaticamente o que acontece naquelas regiões do planeta, como hoje
em alguns países do Médio Oriente, quando as diferenças religiosas e
étnicas e as insatisfações populares explodem em conflitos internos, mas
são potenciadas e manipuladas para balcanizar, dividir e provocar a
implosão de uma ordem política que impeça a realização dos apetites
imperialistas e capitalistas em qualquer parte do planeta.
Acontecimentos semelhantes ocorreriam posteriormente na Líbia, Iraque e
Afeganistão, e ainda hoje na Síria. E vão continuar a acontecer. Mas
podem não apenas encontrar terreno fértil nessas condições históricas e
geográficas peculiares, mas também na nossa região.

Não é conveniente que as pessoas esqueçam ou ignorem, pelo menos como
informação geral, o que são as revoluções coloridas, quais são algumas
das suas mais de cem técnicas, quando são aplicadas e, sobretudo, como
são criadas as condições internas para promover sua aplicabilidade.
Situemos o contexto.

Como a Líbia antes de ser destruída pela NATO, e os EUA nos bastidores,
a federação jugoslava não era um estado falhado. Muito pelo contrário,
durante as duas décadas anteriores a 1980, a sua economia crescia a uma
taxa média de 6,1%, a população desfrutava de assistência médica
gratuita, 91% era alfabetizada e a esperança de vida atingia os 72 anos.
O país mantinha relações com a Comunidade Europeia e com os Estados
Unidos, mas não entrou nas alianças modelo da guerra fria. Tito foi um
dos criadores do Não-Alinhamento, como país que se considerava parte do
terceiro mundo.

Enquanto existiu a URSS, era geopoliticamente conveniente ao Ocidente a
existência da RFS da Jugoslávia. Tito havia optado, ao contrário da
URSS, pela autogestão operária e, além disso, por causa dessa decisão e
de outras divergências ideológicas e políticas, o país havia sido
expulso, desde 1948, do Gabinete de Informação Comunista, o Kominform. A
ruptura com a URSS transformou a Jugoslávia numa barreira de contenção
estrategicamente localizada numa região que ia da Europa Central até ao
sul dos Balcãs.
Já com Gorbachev no poder, e com o ocidente atento e participante das
acções depois precipitariam a dissolução da URSS, começaram a ser
traçados os planos das verdadeiras intenções norte-americanas de Reagan
e da NATO na região.

Desde 1982 já existia um documento que orientava para “ampliar os
esforços para promover uma ‘revolução silenciosa’ para derrubar os
governos e partidos comunistas” e engolir os países da Europa Oriental
no sentido de uma economia de mercado, como com efeito aconteceria mais
tarde, para ir estendendo e fechando uma tenaz de bases militares cada
vez mais próxima da Rússia e da China.

Quando as condições estavam amadurecidas, em 1999 a NATO agrediu e
bombardeou a República Federal da Jugoslávia. Inauguraram as guerras que
depois repetiriam, sem a aprovação do Conselho de Segurança da ONU.

Durante mais de 70 dias, a partir de 24 de Março, 9.160 toneladas de
bombas começaram a cair sobre as cidades de Belgrado, Pristina, Novi Sad
e Podgorica, e por igual sobre a cabeça de militares e civis. Várias
delas, entre 10 e 45, continham urânio empobrecido. O inimigo principal
da NATO foi a população civil. Causou, conservadoramente, 1.200 mortos.
Outras fontes indicam até 2.500 vítimas e outras 5.700 civis. A
consequência geopolítica mais notória do fim desse genocídio e da
consequente fragmentação definitiva da ex-Jugoslávia, foi a mudança na
correlação de forças mundial a favor do unilateralismo imperialista e a
sua aparente vitória na Guerra Fria.

A agressão contra o povo jugoslavo começou com uma mentira e foi
premeditada. Quer isto dizer que, embora tenham sido realizadas
negociações para supostamente impedir a guerra e evitar a agressão, a
realidade foi a crónica de um fracasso anunciado: as bases das
negociações que se realizaram para supostamente impedir a guerra estavam
preparadas para que não dessem qualquer resultado positivo.

De facto, entre 6 e 23 de Fevereiro de 1999, tinham sido realizadas em
França, entre Rambouillet e Paris, negociações entre um denominado Grupo
de Contacto para a Jugoslávia, formado por quatro países membros da
NATO, mais a Rússia. Entre os documentos que norteariam a negociação
estava incluído “um Anexo B”, que a grande imprensa da época não
mencionou e que, como mais tarde se viria a saber, a Rússia não aprovava.

Se lerem alguma notícia dessa época no El País, encontrarão a afirmação
de que a NATO ficou “desconcertada” pelos os resultados dessa
negociação. Falso, pois, em resumo, o Anexo B continha uma série de
exigências totalmente inaceitáveis para o lado jugoslavo e foram
incluídas para provocar a sua previsível rejeição, o fracasso da
negociação e a fabricação do pretexto para a imediata e “inevitável”
agressão. Mesmo o genocida internacional Henry Kissinger teve que
reconhecer no The Daily Telegraph que “foi uma provocação, uma
justificação para começar o bombardeamento […] foi um documento que
nunca deveria ter sido apresentado naquela forma.”

A imprensa ao serviço dos interesses da NATO divulgava, como escreveu na
altura Francisco Fernández Buey - um dos poucos que denunciou a verdade
- que “os governantes sérvios se recusaram a assinar porque a proposta
de Rambouillet contemplava a presença das forças da NATO (mais de 30.000
soldados) no Kosovo. Mas isso é inexacto: a proposta exigia a presença
militar da NATO em todo o território jugoslavo”.
(https://elpais.com/diario/1999/05/08/opinion/926114403_850215.html)

E Fernández Buey cita a parte secreta do Apêndice B desses documentos:
“O pessoal da NATO, com os seus veículos, embarcações, aeronaves e
equipamentos, deverá poder circular livremente e sem condições em todo o
território da Federação das Repúblicas Jugoslavas, o que inclui o acesso
ao seu espaço aéreo e águas territoriais. É também incluído o direito
dessas forças de acampar, manobrar e usar qualquer área ou serviço
necessário para a manutenção, o treino e o desenvolvimento das operações
da NATO.”

E como se não bastasse, o artigo 7º do mesmo apêndice exigia também que:
“O pessoal da NATO não pode ser preso, interrogado ou detido pelas
autoridades da República Federal da Jugoslávia. Se alguma das pessoas
que fazem parte da NATO for presa ou detida por engano deverá ser
imediatamente entregue às autoridades da Aliança”.

O documento contém várias outras exigências, cada uma mais severa e
inaceitável. Mas um dos mais interessantes, o artigo 15 esclarece que
“quando se fala em serviços utilizáveis pelas forças da NATO, entende-se
a utilização plena e gratuita das redes de comunicação, o que inclui a
televisão e o direito de utilizar o campo electromagnético no seu conjunto.”
O que leva a lembrar no momento as pretensões de Google, quando
contactou Cuba com pretensões semelhantes.

Aquelas condições eram um garrote bem apertado e, portanto,
previsivelmente rejeitadas pelo lado sérvio.

Os objectivos geopolíticos daquela criminosa agressão foram amplamente
estudados e denunciados. E desdobram-se até hoje. Nas circunstâncias
daquela altura, marginalizar definitivamente uma Rússia enfraquecida,
advertir a China, dominar o acesso das rotas em direcção à Ásia Central,
com a vista posta nas matérias-primas do ouro, urânio e petróleo,
através dos Balcãs.

Como mais tarde se tornaria habitual nas preparações da opinião mundial,
campanhas de imprensa orquestraram um bombardeamento mediático prévio
para criar uma matriz credível de informação sobre o “genocídio
iminente” que o governo iugoslavo cometeria no Kosovo; começaram a
chamar “regime” ao governo, e líder “sérvio” ao seu presidente,
despojando-o da sua condição de presidente, e exacerbando as diferenças
étnicas com os croatas e kosovares.

Já desde os anos 1992, 96 e 97, começaram a recrudescer os protestos
sociais, principalmente estudantis, na Sérvia, enquanto a Croácia e a
Eslovénia proclamavam as suas aspirações de soberania. Independentemente
das razões históricas, étnicas e políticas que acompanharam as
diferentes repúblicas que tinham formado a federação jugoslava para se
oporem ao ultranacionalismo sérvio que Milosevic exacerbou em resultado
da implosão em curso da URSS para dar uma viragem de sobrevivência ao
seu governo, as revoltas e protestos contaram com a intervenção
sinérgica e a aplicação de técnicas da revolução não violenta, como o
prólogo para a criação de condições internas e internacionais, e
legitimidade internacional, para a justificação da agressão imperialista.

Em “Como exportar a democracia liberal”, a investigadora Ana Otaševic
oferece-nos alguns detalhes sobre aqueles acontecimentos e o papel
desempenhado pelas técnicas das revoluções “suaves”, não violentas de
Gene Sharp, aplicadas por Srda Popovic.
/
Fonte:
http://cubasi.cu/es/articulo-opinion/las-revoluciones-de-colores-y-algunas-verdades-de-perogrullo-i?

In
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/as-revolucoes-coloridas-e-alguns-truismos/
29/9/2020

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Lutas Identitárias: A Esquerda em Confinamento

 
 

// Manuel Augusto Araújo


Não é de admirar a simpatia e o apoio que tantos figurões do capitalismo
dão às causas “identitárias”. Citando Asad Haider, «o enquadramento da
identidade reduz a política ao que se é como indivíduo e não à sua
participação na luta colectiva contra uma estrutura social opressora (…)
O resultado é que a política identitária paradoxalmente acaba reforçando
as mesmas normas que se dispõe a criticar.»

Os estrénuos e estrepitosos corifeus das políticas identitárias, das
causas fracturantes em que a raça, o género, o sexo, a cor são as novas
frentes de luta, consideram que a condição social, as classes sociais
dissolveram-se até ser um resíduo que não conta no mundo globalizado
pós-industrial. Essas são as bandeiras de luta da esquerda cosmopolita
que abandonou as teorias marxistas, para as quais a exploração só é
eliminada com a abolição da propriedade privada pela revolução. O seu
objectivo, ainda que camuflado por enérgicas palavras de ordem que
simulam uma radicalidade logo factualmente desmentida, é o mudar de vida
sem mudar a vida. É considerar e aceitar que a luta de classes está
ultrapassada no quadro actual do capitalismo – porque acabar com o modo
de produção capitalista, para esses radicais de esquerda, está fora de
questão. É a deriva reformista que abandona definitivamente o campo de
batalha da luta de classes, em que se luta para acabar com o
capitalismo, substituindo-a pela luta pelo controlo político das
políticas económicas, aceitando que o capitalismo mau pode evoluir para
um capitalismo bom, com a ilusão de que a burguesia acabará motivada
pelas lutas identitárias e as causas fracturantes, assumindo uma cultura
de responsabilidade social para que tudo acabe no melhor dos mundos das
virtudes públicas e vícios privados da sociedade burguesa. São
indiferentes às evidências de a democracia não ser possível no quadro
global em que as desigualdades se agravaram, aumentando exponencialmente
desde os anos 60 até ao ano de 2010, em que se contabiliza que 1% dos
mais ricos do planeta controlam 46% de toda a riqueza mundial, o que
exige da esquerda uma ampla unidade para uma luta continuada contra o
neoliberalismo, unidade que é estilhaçada pelo segmentarismo identitário
que faz o jogo da concentração do poder do dinheiro desertando do campo
de batalha entre o capital e o trabalho, da luta de classes na sua forma
actual, que tem por objectivo final acabar com a exploração capitalista
que só se elimina com a abolição da propriedade privada pela revolução.

Essa esquerda radical chique reclama-se de uma imaginação política para,
dizem eles, remobilizar a esquerda pelo crivo das lutas identitárias e
das causas fracturantes, performances mediáticas com uma forte
componente intelectual e de moda, em que a representação é um fim em si
mesma que dispensa ideologias e propostas políticas, por considerar a
luta de classes ultrapassada o que, mesmo que o não digam
explicitamente, teria o óbvio efeito de desmobilizar os partidos e os
sindicatos que são base política e social da esquerda no mundo do
trabalho. No fim da linha, desarmar a esquerda marxista que considera
contingente a realidade histórica do capitalismo. Têm a presunção
elitista de que as lutas das mulheres, dos LGBT, dos grupos étnicos,
mesmo quando fazem parte da classe trabalhadora, estão para lá da classe
trabalhadora, pelo que poderiam assumir o seu lugar nos desafios aos
poderes do capital, o que de facto significa negar que a exploração
económica existe e persiste quaisquer que sejam os avanços que das lutas
por mudanças de atitudes sociais. Um enorme equívoco dessa esquerda
cosmopolita, em que se baralham as liberdades individuais de escolha com
as liberdades que o mercado oferece. O que na aparência é uma estratégia
revolucionária para derrubar opressões que de facto existem atasca-se
num pântano de equívocos por nunca ter percebido, por miopia filistina,
que as diferenças continuarão a florescer enquanto os seres humanos
forem submetidos à exploração capitalista, pelo que, como escreve
contundentemente Raymond Williams «as políticas identitárias são um
particularismo militante que se torna uma farsa» (A Short Counter
Revolution, Towards 2000, Revisited, Raymond Williams, Sage
Publications, 2010).

Não percebe essa esquerda que, como a história abundantemente demonstra,
as sociedades capitalistas neoliberais variam entre tanto serem
limitadamente libertárias como não hesitarem em recorrer aos extremos
mais repressivos, tanto se apresentam múltiplas como monolíticas,
variando conforme as geometrias dos enquadramentos sociais, económicos e
políticos resultantes dos avanços e recuos da luta de classes, para que
a exploração da força de trabalho se mantenha intocada, pelo que o
anti-capitalismo das lutas identitárias não é mais do que um código de
barras que passa nas caixas controladas pela burguesia, que «resolveu a
dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades
bem adquiridas e certificadas pôs a liberdade única, sem escrúpulos, do
comércio. Numa palavra, no lugar da exploração encoberta com ilusões
políticas e religiosas, pôs a exploração seca, directa, despudorada,
aberta» (Manifesto do Partido Comunista, Marx/Engels, Obras Escolhidas
(em três tomos), tomo I, edições Avante!, 2008).

As lutas identitárias e as causas fracturantes retomam o espalhar das
ilusões políticas de um revisionismo actualizado nas modas em uso,
considerando que os tempos revolucionários acabaram, que os grandes
combates colectivos deixaram de fazer sentido, que as frentes de luta
são as das tensões paradoxais das mutáveis relações entre as identidades
pessoais e a acção política. É o que se verifica na actualidade nas
manifestações contra o racismo nos EUA e no mundo, em que os movimentos
gerados pelo Black Lives Matter abandonaram a visão revolucionária dos
militantes do movimento de libertação negra dos Black Panthers, que viam
racismo e capitalismo como as duas faces da mesma moeda, para em seu
lugar instalarem os conceitos restritos da identidade, castradores de
qualquer estratégia revolucionária. Asad Haider, que estudou
extensamente a evolução das lutas contra o racismo nos Estados Unidos
conclui que «o enquadramento da identidade reduz a política ao que se é
como indivíduo e não à sua participação na luta colectiva contra uma
estrutura social opressora (…) O resultado é que a política identitária
paradoxalmente acaba reforçando as mesmas normas que se dispõe a
criticar.» (Mistaken Identity: Race and Class in the Age of Trump, Asad
Haider, Verso Books, 2018). O que desata o nó de outro aparente paradoxo
na luta contra o racismo nos EUA e que ecoa pelo mundo. A violência com
que os militantes do Black Panther Party foram combatidos pelo sistema
foi substituída pelos apoios concedidos ao activismo na luta contra o
racismo dos Black Lives Matter, extensível a outras grandes causas como
o feminismo, as alterações climáticas, os direitos do género, etc., por
«personalidades como Al Gore, George Soros, Mark Zuckemberg, Richard
Branson, Jeff Bezos, Bill Gates, fundações emanando de poderosos grupos
como Ford, Rockefeller, Bloomberg, Walmart, Heinz, Kellog, Lockheed
Martin, empresas como a Shell, o fundo Black Rock, os bancos JP Morgan
Chase ou Goldman Sachs distribuem os seus fartos lucros não apenas pelos
accionistas mas também por indivíduos e organizações envolvidos em
activismo por grandes causas». Em linha, a comunicação social
estipendiada, as redes sociais amplificam as imagens dessas lutas,
tratam com desvelado empenho e carinho todos esses activismos, qualquer
que seja a forma porque se apresentam, catapultando a imagem dessa
esquerda cosmopolita que reduz a política às performances identitárias
das causas fracturantes, renunciando de vez ao universalismo marxista e
à luta de classes para gáudio da plutocracia que percebe, até bem
demais, as virtudes que extrai desse reformismo que abandona a revolução
a favor do brilho das lantejoulas das constelações das causas.

A transfiguração que essa esquerda pretende fazer é rasurar a
universalidade da luta de classes que ecoa em todas as lutas:
transexuais, homossexuais, ciganos, negros, brancos, mulheres, pessoas
com deficiência, imigrantes, fragmentando-a nas lutas identitárias e nas
causas fracturantes onde ainda alguns colam o rótulo de anticapitalista,
de um anticapitalismo fora de prazo e que não é mais que um rótulo para
mascarar o seu reformismo.

Uma ideologia que não se traduza na luta de classes está condenada, na
melhor das hipóteses, ao apaziguamento da exploração capitalista
contribuindo objectivamente para a sua continuidade aceitando a sua
hegemonia e perenidade. Garantidamente acabará sempre na paralisia
política e social, ainda que contribua pontualmente para mudanças de
atitudes sociais porque, como já se referiu, uma das características
nucleares das sociedades capitalistas é adaptarem-se circunstancialmente
a ser tanto libertárias como repressivas, tanto múltiplas como
monolíticas, como a história, desde que a burguesia capitalista assumiu
o poder político, tem demonstrado ao longo dos séculos.

Há que dizer claramente que essa esquerda cosmopolita que ainda se
apresenta como radical vive em alegre contubérnio com as forças que
aparenta combater. É uma esquerda em confinamento.

Fonte:
https://mail.google.com/mail/u/0/#inbox/FMfcgxwJXxrvRrTmDCxlBWNhPBsPvSWT

In
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/lutas-identitarias-a-esquerda-em-confinamento/
28/9/2020

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Taxa de lucro mundial: uma nova abordagem

 In

RESISTIR.INFO

https://www.resistir.info/crise/roberts_20set20.html 

24/9/2020

por Michael Roberts [*]

O modelo de capitalismo de Marx assume uma economia mundial e principia com o "capital em geral". Foi a este nível de abstracção que Marx desenvolveu o seu modelo das leis de movimento do capitalismo e, em particular, o que ele considerou ser a mais importante lei de movimento no processo de produção capitalista, a lei da tendência da taxa de lucro para a queda.

A taxa de lucro é o melhor indicador da "saúde" de uma economia capitalista. Ela apresenta um valor previsional significativo sobre o investimento futuro e a probabilidade de recessão ou desmoronamento (slump). De modo que o nível e a direcção de uma taxa de lucro mundial pode ser um guia importante para o desenvolvimento futuro da economia capitalista mundial.

Contudo, no mundo real, há muitos capitais; e não apenas um estado capitalista mundial mas sim muitos estados capitalistas nacionais. Assim, há barreiras para o estabelecimento de uma economia mundial e de uma taxa de lucro mundial devido a restrições ao trabalho, comércio e capital concebidas para preservar e proteger mercados nacionais e regionais do fluxo do capital global. Mesmo assim, o modo de produção capitalista agora propagou-se para todos os cantos do globo e a "globalização" do comércio e fluxos de capitais torna o conceito de medida de uma taxa de lucro mundial mais realista e perceptível.

Minha primeira tentativa de medir uma taxa de lucro mundial foi num documento de 2012 . Uma medida adequada da taxa de lucro mundial teria de considerar todo o capital constante e variável do mundo e estimar o valor excedente total apropriado por este capital global. Naquele tempo, isto parecia uma tarefa impossível. Assim, uma média ponderada de taxas de lucro nacionais era o único caminho factível de obter um número.

Tentei desenvolver uma taxa de lucro mundial que incluísse todas as economias do G7 mais as quatro economias do acrónimo BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China). Isto cobriu 11 economias de topo e constituía uma fatia significativa do PIB global. A seguir utilizou as Extended Penn World Tables tais como construídas pelo Professor Adalmir Marquetti do Brasil. Ponderei as taxas nacional pela dimensão do PIB, embora a taxa média bruta não parecesse divergir significativamente da média ponderada.

Gráfico 1

Descobri que: 1) houve uma queda na taxa de lucro mundial desde o ponto de partida daqueles dados em 1963 e que até 2013 a taxa mundial nunca se recuperou para o nível de 1913; 2) a taxa de lucro atingiu uma baixa em 1975 e a seguir ascendeu para um pico nos meados da década de 1990; 3) depois disso, a taxa de lucro mundial foi estática ou ligeiramente cadente.

Em 2015 revisitei a mensuração da uma taxa de lucro mundial. No período intercalar, Esteban Maito havia feito algum trabalho pioneiro utilizando um método de medição semelhante (taxas nacionais ponderadas pelo PIB) para 14 países, mas utilizando estatísticas nacionais, não as Tabelas Mundiais Ampliadas da Penn e remontando a 1870 para alguns países. Maito confirmou o meu estudo mais limitado de uma clara tendência descendente na taxa de lucro mundial, embora houvesse períodos de recuperação parcial tanto nos países centrais como periféricos. Maito reviu e actualizou o seu trabalho para um capítulo em World in Crisis: uma análise global da lei da lucratividade de Marx – leitura essencial.

O gráfico abaixo é a minha adaptação do trabalho de Maito.

Gráfico 2

Maito mostrou que o comportamento da taxa de lucro sobre o stock de capital confirma as previsões feitas por Marx acerca da tendência histórica do modo de produção. Há uma tendência secular para a queda da taxa de lucro sob o capitalismo e a lei de Marx actua. Maito também descobriu que houve uma estabilização e mesmo uma ascensão na taxa de lucro mundial desde o princípio ou meados da década de 1980 até o fim da de 1990, o chamado período neoliberal de destruição de sindicatos, de redução do estado de bem-estar social (welfare state) e de impostos corporativos, de privatização, globalização, inovação hi-tech e da queda da União Soviética. Além disso, Maito mostrou que esta recuperação atingiu o pico cerca de 1997.

A medição da taxa mundial de lucro do meu trabalho de 2015 ( Revisiting a world rate of profit, June 2015 ); desta vez utilizei as tabelas mais actualizadas Penn World Tables 8.0 para dados baseados nas principais economias do G20. Estes resultados apresentaram um declínio secular semelhante ao dos dados de Maito. Houve uma queda significativa desde a primeira derrocada económica internacional simultânea em 1974-5 até ao início dos anos 80, depois uma modesta recuperação antes de outra queda coincidir com a recessão económica mundial de 1991-2. Houve uma ligeira recuperação na década de 1990 até ao início da década de 2000. Depois disso, a taxa de lucro do G20 baixou, tanto antes da Grande Recessão de 2008-9 como depois, apenas com uma minúscula recuperação até 2011.

Gráfico 3

Apoiei estes resultados com dados da base de dados AMECO do Eurostat, os quais estão ainda mais actualizados. A questão com os dados do AMECO é que a sua medida do stock líquido de capital é altamente duvidosa, especialmente nos primeiros anos a partir de 1963. Contudo, a partir do início dos anos 80, a taxa de lucro da AMECO segue aquela da medição das Penn Tables.

Agora dei uma terceira vista de olhos à taxa de lucro mundial utilizando os dados mais recentes das Penn World Tables 9.1. Esta última base de dados tem uma inovação importante. Tem uma nova série chamada taxa interna de rentabilidade (TIR) sobre o stock de capital, um excelente proxy para a taxa de lucro Marxiana. Como os dados são compilados sobre as mesmas categorias e conceitos, a série TIR oferece uma valiosa comparação entre as taxas de lucro nacionais e também é ampliada até 2017. Assim, temos agora uma série para as taxas de lucro de quase todos os países do mundo, principiando em muitos casos em 1950 e indo até 2017. ( Internal rate of return )

Em futuras mensagens sobre isto considerarei quaisquer problemas de medição com a TIR e outras categorias; explicarei a minha metodologia; e fornecerei fontes e elaborações. Além disso, analisarei a decomposição da taxa de lucro nos seus factores-chave, nomeadamente a composição orgânica do capital e a taxa de mais-valia. Esta decomposição é importante. Uma coisa é mostrar uma da taxa de lucro cadente ao longo do tempo; outra é mostrar que isto é causado pela lei de Marx da tendência para a queda da taxa de lucro. Poderia haver outras razões.

Se a lei de Marx está correcta, então segue-se que quando a taxa de lucro cai, a composição orgânica do capital (C/v) deve aumentar mais rapidamente do que a taxa de exploração (s/v). De acordo com a lei de Marx, uma composição orgânica ascendente do capital é o factor tendencialmente determinante para a queda da taxa de lucro e a taxa de exploração é o factor (principal) contrabalançador para isso . Se a última subir mais depressa do que a primeira, então a taxa de lucro sobe – e houve períodos em que isso aconteceu. Mas, no longo prazo secular, a taxa de lucro cai e isso acontece porque a composição orgânica do capital sobe mais do que a taxa de exploração.

Não discutirei estas questões nesta mensagem, mas considere-se apenas os resultados principais da mensuração da taxa de lucro mundial utilizando as séries IRR nas Penn World Tables. Ponderei as séries IRR pela dimensão do stock de capital (não pelo PIB como em mensagens anteriores) a fim de obter uma melhor medição para as economias do G20 (19 países excluindo a UE) e também para as principais economias imperialistas do G7; bem como para economias emergentes ou em desenvolvimento seleccionadas.

Os resultados do G7 confirmam os resultados das minhas duas medições anteriores em 2012 e 2015; que a taxa de lucro nas principais economias imperialistas têm estado em declínio a longo prazo. A taxa não tem sido uma linha recta descendente, mas pode ser dividida em quatro períodos: 1) a "era dourada" de alta e mesmo lucratividade crescente de 1950-1966; 2) então a enorme lucratividade entra em colapso de 1966 a 1982; 3) a seguir a relativamente fraca recuperação neoliberal; e 4) desde o pico em 1997, uma depressão geral na taxa de lucro até 2017 (quando terminam os dados).

Gráfico 4

Agora com as séries IRR podemos medir melhor a taxa de lucro do G20, provavelmente o mais próximo que podemos obter para uma "taxa mundial". Esta medida deveria ser melhor do que a de Maito ou qualquer medida anterior porque inclui mais países;
Agora com a série IRR podemos medir melhor a taxa de lucro do G20, provavelmente o mais próximo que podemos chegar de uma "taxa mundial". Esta medida deveria ser melhor do que a de Maito ou qualquer medida anterior porque inclui mais países; embora o trabalho pioneiro de Maito meça as taxas de lucro desde o século XIX e não apenas até 1950.

A taxa de lucro do G20 corresponde àquela da taxa de lucro do G7 na sua trajectória.

Gráfico 5

Mas note-se que o nível da taxa de lucro é geralmente mais elevado do que a taxa G7. Isto deveria ser expectável ao abrigo da lei de Marx porque a composição orgânica do capital será mais elevada nos países imperialistas do que nos países em desenvolvimento que ainda estão a tentar "recuperar" o atraso tecnológico. Voltaremos a este ponto numa futura mensagem.

Na verdade, vamos examinar a taxa de lucro em algumas economias em desenvolvimento seleccionadas, em particular os membros do G20, tais como Argentina, Brasil, México, África do Sul, China, Índia, Indonésia e Turquia. Mais uma vez, verificamos que a taxa de lucro cai a longo prazo, mas com os quatro sub-períodos semelhantes às séries G7 e G20.

Gráfico 6

Mas, mais uma vez, note-se o nível muito mais elevado da taxa de lucro, cerca de 24% na Idade de Ouro em comparação com apenas 10% nas economias do G7 caindo para 10% no último sub-período em comparação com 6,5% no G7. Também, o ponto de viragem dentro do período neoliberal é posterior; em 1989 a comparar com 1982 para o G7. E, para estas economias em desenvolvimento, qualquer recuperação da lucratividade é efémera, entrando em derrocada na crise dos mercados emergentes de 1998. A longa depressão da lucratividade nas economias em desenvolvimento tem prosseguido desde então.

Assim, podemos resumir estes resultados iniciais da série IRR das Penn World Tables 9.1 como a confirmação do declínio a longo prazo da taxa de lucro mundial (ou seja, para a maior parte das grandes e maiores economias), com vários sub-períodos, tal como foi percebido nas duas medições anteriores de 2012 e 2015.

Em futuras mensagens tenciono expandir estes resultados. Analisarei a decomposição da taxa de lucro mundial e os factores que a impulsionam. Considerarei a taxa de lucro em economias-chave específicas (EUA, Alemanha, Japão, China) para ver o que podemos aprender. Tentarei relacionar a variação da taxa de lucro com a regularidade e intensidade das crises no modo de produção capitalista. E considerarei a questão colocada e respondida no trabalho de Maito: se a taxa de lucro mundial estiver destinada a diminuir, irá para zero e como é que isso é possível? E, se assim for, quanto tempo irá demorar? E o que é que isso nos diz acerca do próprio capitalismo?

20/Setembro/2020
[*] Economista, autor de The Long Depression.

O original encontra-se em
thenextrecession.wordpress.com/2020/07/25/a-world-rate-of-profit-a-new-approach/ . Tradução de JF.