segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

A conspiração de Trotsky na Comintern

 


02.12.24

Palestra na ICSS de Oakland 20 de outubro de 2024 

(Parte I/II) 

Grover Furr 

 

Em 2005-2007, investiguei e escrevi Khrushchev Lied [Khrushchev mentiu] . Nele eu mostro que todas as acusações de crimes que Khrushchev fez naquele "Discurso Secreto" contra Stalin e Lavrentii Beria são falsos. 

 

 

 

Gostaria de agradecer aos organizadores do ICSS por me convidarem para falar sobre o nosso - meu e de Vladimir L. Bobrov - último livro, Conspiração de Trotsky na Comintern – o caso de Osip Pyatnitsky. 

Primeiro, gostaria de dar algum contexto que ajudará a explicar a sua importância. 

O campo académico da história soviética é corrupto. Existe principalmente para espalhar mentiras anticomunistas, e especialmente mentiras anti-Stalin, ao mesmo tempo em que dá a essas mentiras uma aparência de respeitabilidade. Existe boa investigação sobre tópicos específicos. Mas os resultados dessa investigação são sempre encaixados  numa estrutura anti-Stalin. Publiquei dois estudos completos de livros influentes que não fazem nada além de transmitir como verdade falsidades anti-Stalin – Mentiras de Sangue (2014) e Stalin Esperando pela ...  Verdade (2019). 

Leon Trotsky era um fascista 

Todos os escritos trotskistas, incluindo o que eles chamam "investigação", sobre o período Stalin da história soviética também é completamente corrupto. Os trotskistas são um verdadeiro culto, como o culto em torno de Jesus Cristo. Aceitam todas as mentiras de Trotsky como verdade. O trotskismo é parasitário da falsidade anticomunista dominante, que eles repetem acriticamente. Eu tenho discutido isto com muitos detalhes em quatro dos meus livros. 

É vital que todos na esquerda reconheçam isto: Leon Trotsky era um fascista. Trotsky começou como socialista e tornou-se comunista quando se juntou ao partido bolchevique no verão de 1917. 

Depois de 1929, Trotsky liderou uma conspiração clandestina a partir do exílio. Através dos seus seguidores na União Soviética, Trotsky colaborou com os  exércitos nazi e japonês. Os trotskistas fizeram espionagem para os nazis e japoneses; conspiraram para assassinar líderes soviéticos; organizaram a sabotagem da economia que matou vários trabalhadores soviéticos; planearam um golpe de estado com outros oposicionistas; planearam uma revolta em Leninegrado com a ajuda do Alto Comando Alemão; e conspiraram com o marechal Mikhail Tukhachevsky e outros líderes militares de alto escalão para abrir a frente aos exércitos nazi e japonês em caso da guerra. 

Nos seus escritos na década de 1930, Trotsky mentiu sobre Stalin e sobre a sua própria atividade - mentiu numa extensão quase inacreditável! Eu escrevi acerca das suas mentiras prováveis em quatro dos meus livros e num capítulo de A Fraude do 'Testamento de Lenin'. 

Não devemos esquivar-nos a perceber que Trotsky era um fascista. Se alguém mais fizesse o mesmo, não hesitaríamos em aplicar-lhe esse termo. 

Desde o "Discurso Secreto" de Nikita Khrushchev no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética em 25 de fevereiro de 1956, alegações de crimes contra Joseph Stalin sem nenhumas provas dominaram a historiografia académica. 

Comecei a descobrir isto há quase 50 anos, quando decidi verificar as acusações contra Stalin no famoso livro de Robert Conquest, O Grande Terror – As Purgas de Stalin dos Anos Trinta. Em meados da década de 1970, fui muitas vezes à Biblioteca Pública de Nova York, onde verifiquei todas as notas de rodapé no livro de Conquest. Descobri que Conquest não tinha nenhuma prova para apoiar as acusações que ele fez contra Stalin. Conquest apenas citou outros livros que faziam as mesmas acusações. 

Em 1999, Vladimir L. Bobrov, um historiador a trabalhar em Moscovo, entrou em contacto comigo sobre um artigo meu na minha página da web. De Vladimir aprendi que, desde o fim da União Soviética, muitos documentos estavam a ser libertados de arquivos soviéticos anteriormente fechados. Com a ajuda dele, comecei a localizá-los, a obtê-los e a estudá-los. Logo percebi que  incluíam provas de fontes primárias que refutavam muitas acusações contra Stalin. 

Em 2005-2007, investiguei e escrevi Khrushchev Lied [Khrushchev mentiu] . Nele eu mostro que todas as acusações de crimes que Khrushchev fez naquele "Discurso Secreto" contra Stalin e Lavrentii Beria são falsos. Muito bem traduzido em russo por Vladimir, Khrushchev Lied foi publicado em Moscovo em dezembro 2007 e em inglês em fevereiro de 2011. 

Desde então, escrevi mais de uma dúzia de livros em que examino as acusações contra Stalin à luz das provas das fontes primárias de antigos arquivos soviéticos. Em mais de 20 anos de estudo ainda me falta identificar uma única acusação de um crime de Stalin que possa ser apoiada por provas! 

Continuam a ser publicados documentos de antigos arquivos soviéticos. Um exemplo recente é uma carta de I.N. Smirnov  para a sua filha Olga, após o recurso de Smirnov da sentença de morte proferida contra ele  num julgamento em agosto de 1936. Smirnov era o líder da clandestinidade trotskista na União Soviética. Ele ainda é considerado um "mártir" pelos trotskistas e anticomunistas. 

Smirnov escreveu à filha o seguinte: 

Na minha última palavra, eu disse isto a todos os trotskistas vacilantes. Nós devemos desarmar-nos de forma decisiva e rápida ... Tenham em mente que os homens da Gestapo que estiveram no julgamento não eram testas-de-ferro, mas reais, fascistas inteligentes. Quer Trotsky queira ou não, as suas linhas entrelaçam-se com a Gestapo. 

Aqui Smirnov diz à filha que ele não foi "incriminado" por Stalin e que o movimento de Trotsky estava ligado à Gestapo nazi – algo que todos os anticomunistas e, claro, todos os trotskistas – sempre negaram. 

Começamos a Conspiração de Trotsky na Comintern  estudando a afirmação do filho de Osip Pyatnitsky, Vladimir, de que o seu pai era "incriminado" por Stalin por se opor a ele. Demonstramos, com provas, que isso é completamente falso. Pyatnitsky não foi incriminado. Ele era culpado - tão culpado como o próprio Trotsky! 

Nos dois primeiros capítulos, examinamos criticamente o relato do destino de Pyatnitsky pelo historiador Boris Starkov. Provamos que é totalmente fraudulento. Isto é significativo porque o relato de Starkov foi publicado em 1994 em Estudos Europa-Ásia, o principal jornal de história soviética no mundo. Este prestigioso jornal deveria ter visto que o artigo de Starkov era uma fraude. Mas eles estavam cegos pelo seu preconceito anti-Stalin ou viram e publicaram-no à mesma. 

Estudamos a conspiração na Comintern, na qual Pyatnitsky desempenhou um papel de liderança dentro da União Soviética em conluio com Leon Trotsky, que chefiou a conspiração do exílio. Os conspiradores planearam assassinatos de líderes soviéticos, sabotagem da economia soviética, uma revolta contra o governo em caso de invasão por um poder fascista, desvio da Comintern de fundos para Trotsky e colaboração e espionagem para a Alemanha nazi. 

Examinamos as provas dos arquivos de investigação do NKVD1 de vários líderes da Comintern, incluindo Bela Kun, Lajos Magyar, Wilhelm Knorin, Heinz Neumann, Nikolai Bukharin e o próprio Pyatnitsky. Os capítulos finais traduzem e examinam a acusação, o julgamento, a sentença de morte e a falsa"reabilitação" de Pyatnitsky pelos homens de Khrushchev. 

O nosso livro termina com uma tradução para o inglês de todas as declarações de confissão de Pyatnitsky. 

* * * * * 

As nossas provas são baseadas em documentos meticulosamente copiados por Vladimir do arquivo anteriormente secreto do NKVD em Moscovo. 

* Essas provas refutam a alegação de que Osip Pyatnitsky desafiou Stalin no Plenário do Comité Central de junho de 1937. 

* Denunciamos como fraudulenta a "reabilitação" de Pyatnitsky na era Khrushchev, um dos muitos relatórios de "reabilitação" sobre pessoas condenadas durante a década de 1930. Essas condenações ainda são rotineiramente consideradas como resultado da paranoia ou brutalidade de Stalin. Mostramos que é completamente falso. 

* Refutamos a alegação - praticamente unânime entre historiadores – de que o partido soviético, ou seja, Stalin, "controlava" a Comintern. 

* Discutimos algumas das volumosas provas de que Leon Trotsky e seus seguidores clandestinos dentro da União Soviética colaboraram com os nazis, sabotaram a economia e conspiraram para assassinar líderes soviéticos. 

* * * * * 

No seu livro de referência de 1999 sobre o Partido Bolchevique durante a década de 1930, Arch Getty e Oleg V. Naumov escreveram: 

... ali, aparentemente havia pouca diferença entre os pensamentos privados dos líderes estalinistas e as suas posições públicas. Parece que eles realmente acreditavam na existência de uma conspiração vinda de fora. (455) 

Em 1999, era quase inédito para um estudioso do campo da história soviética afirmar que Stalin, longe de "incriminar" pessoas inocentes , acreditava sinceramente que as conspirações eram genuínas. 

Mas Getty não deu o passo lógico seguinte. Ele não perguntou:  Quais são as provas da alegada conspiração? Existe alguma prova de que era fictícia, uma invenção talvez de Nikolai Yezhov e dos seus lacaios no NKVD? Ou há provas de que a conspiração era genuína e que os condenados por participar dela eram culpados? 

Uma dúzia de anos depois, V.N. Khaustov, outro historiador anticomunista "mainstream" do período de Stalin, concluiu que Stalin acreditou nos relatórios que o NKVD lhe enviou.   

O mais assustador é que Stalin tomou as suas decisões na base de confissões que foram o resultado das invenções de certos funcionários dos órgãos de segurança do Estado. A reação de Stalin [a esses confissões] é testemunho de que ele tomou essas confissões completamente a sério. 

Tal como Getty e Naumov, Khaustov conclui que Stalin acreditou nas informações sobre as conspirações que lhe foram dadas por Yezhov, chefe (Comissário) do NKVD. Todos concordam que Stalin não "incriminou" ninguém. Mas Khaustov também não estava disposto a admitir nem mesmo a possibilidade de que essa conspiração fosse real. 

Porquê? Porque aceitar a possibilidade de que as conspirações fossem genuínas desmantelariam a historiografia sobre o período estalinista que foi construída desde Khrushchev e, de facto, desde os escritos de Trotsky da década de 1930. Isso minaria a falsa representação de Stalin como um ditador assassino que matou milhares de comunistas leais. Isso contradiria o trabalho de gerações de historiadores que abraçaram a versão da história de Khrushchev / Gorbachev / Trotsky   sobre Stalin e a história soviética. 

O paradigma anti-Stalin 

Chamei esse fenómeno "paradigma anti-Stalin " No estudo profissional da história soviética, há uma regra não escrita de que Stalin deve ser considerado culpado de muitos assassinatos e outros crimes. 

Além disso, uma vez que Stalin foi acusado de um crime, é considerado de mau gosto, se não mesmo um "tabu", investigar as provas e concluir que Stalin era de facto inocente. A culpa de Stalin é assumida de antemão, apesar da falta de provas. 

Qualquer historiador que se atreva a concluir que na realidade existiam conspirações com as quais Stalin e a liderança soviética estavam a lidar, ameaças mortais genuínas ao Estado soviético, simplesmente não serão divulgadas em publicações históricas convencionais ou por editores academicamente respeitáveis. E que o historiador perderia o emprego, porque a publicação é essencial para a propriedade intelectual e a divulgação. 

A verdade - óbvia para qualquer um que estude as fontes primárias num espírito de objetividade - é que essas graves conspirações foram reais. Há uma enorme quantidade de provas de antigos arquivos soviéticos para provar isso. Estudámos e analisámos muitas dessas provas em livros anteriores. 

Osip Pyatnitsky e a Conspiração na Comintern 

Em 1955, Pyatnitsky foi declarado "reabilitado" e considerado vítima de uma maquinação de Stalin. Logo depois, a conspiração trotskista de direita dentro da Comintern foi declarada como invenção. Desde então, todos os condenados em todos os três julgamentos públicos de Moscovo foram "reabilitados". 

No  nosso livro, examinamos o  relatório de "reabilitação" de Pyatnitsky de 1955 e sobre o próprio conceito de "reabilitação". Notamos que todas as "reabilitações" de pessoas da era Khrushchev e Gorbachev condenadas por participação em conspirações antissoviéticas - todas, isto é, aquelas a que temos acesso hoje - são fraudulentas. Nenhuma delas contém qualquer prova de que a pessoa condenada era de facto inocente. 

Apresentamos o texto de alguns dos relatórios enviados para Stalin que incluem a referência a Pyatnitsky . Tal como Getty / Naumov e Khaustov concordam, Stalin aceitou esses relatórios como genuínos. Stalin acreditava que estava a tomar medidas decisivas contra conspirações antissoviéticas que de facto representavam uma séria ameaça à segurança da URSS. As provas disponíveis para nós, hoje, provam que Stalin estava correto. 

Confissões como prova 

Muitas pessoas, incluindo historiadores que deveriam saber melhor, assumem que as confissões são duvidosas ou mesmo inválidas como prova porque elas podem ter sido obtidas por violência ou ameaças contra o prisioneiro ou os seus familiares. Essas pessoas descartam as provas contidas nas confissões. O raciocínio deles é mais ou menos assim: 

Como muitas vezes não há provas "materiais" – por exemplo, documentos onde os conspiradores descrevem a sua conspiração, talvez até mesmo com  a caligrafia dos conspiradores, encontradas nas suas casas, contendo as suas assinaturas, etc. – isso significa que não há provas contra o acusado exceto para confissões do acusado ou acusações nas confissões de outros prisioneiros. Mas as confissões podem ser falsificadas, e nós sabemos que muitas foram falsificados pelo NKVD. Consequentemente, o acusado deve ser considerado inocente e o julgamento uma farsa. 

De facto, os anticomunistas frequentemente usam a palavra "farsa" para rejeitar, por exemplo, os três julgamentos de Moscovo de 1936, 1937 e 1938. Aqueles que usam a palavra "farsa" evidentemente não sabem que estão a admitir, talvez inconscientemente, que não têm provas de que o julgamentos eram invenções. Eles apenas assumem que eram. 

Esse raciocínio é, obviamente, defeituoso. Todas as provas - documentos, objetos materiais, como livros e fotografias, testemunhos de qualquer tipo - podem ser falsificadas. É pelo menos tão difícil - talvez até mais difícil - convencer revolucionários experientes a confessar falsamente do que fabricar documentos, completos, com caligrafia e assinaturas falsificadas, ou criar  fotografias falsas. Qualquer estado moderno, tanto na década de 1930 como hoje, possui os meios técnicos para criar qualquer tipo de prova falsa que só possa ser denunciada como falsa - se for o caso - apenas através de exames destrutivos, que nunca são autorizados. 

As confissões não estão mais ou menos sujeitas a falsificação do que qualquer outro tipo de prova. O que o historiador deve fazer no caso de confissões, como acontece com qualquer tipo de prova, é estudá-lo cuidadosamente e compará-las com as outras provas existentes, a fim de procurar semelhanças e diferenças, contradições e consistências. 

O ministério público soviético forneceu provas "materiais" no Segundo e Terceiro Julgamentos de Moscovo. Mas anticomunistas e trotskistas ignoram-nas simplesmente. Eles sabem que muito poucas pessoas lerão as 600 e 800 páginas das transcrições desses julgamentos e descobrir que, sim, de facto houve "provas materiais" contra os réus 

Então, como podemos saber se um réu foi falsamente condenado? A resposta é: precisamos de localizar e estudar a PROVA que o ministério público soviético teve no julgamento do réu. 

Obtivemos e estudámos muitos relatórios de "reabilitação" da era Khrushchev e    Gorbachev. Nunca encontrámos um único que tivesse fornecido provas. No entanto, eles são tomados como "prova de inocência" pelos anticomunistas e pelos trotskistas. 

Quando se trata de provas históricas, não existe algo como "credibilidade". Todas as provas devem ser submetidas a dúvidas e cuidadosamente estudadas. 

A necessidade de objetividade e a sua ausência 

Toda a gente tem preconceitos. Mas todo a gente pode aprender a ser objetivo no estudo de qualquer assunto, seja física ou história. As técnicas são basicamente semelhantes. 

A objetividade como método científico é uma prática de "desconfiança de si mesmo".   Aprende-se a ser objetivo treinando-nos para estarmos alerta para nós mesmos, articular e, em seguida, questionar os nossos próprios preconceitos. Devemos  suspeitar reflexivamente de provas que tendem a confirmar as nossas próprias ideias preconcebidas, preconceitos e preferências. Devemos aprender a fazer um leitura especialmente generosa de quaisquer provas e argumentos que contradigam as nossas próprias ideias preconcebidas. 

Isso é simplesmente saber o que qualquer detetive burguês faz em cada história policial. Como disse Sherlock Holmes, em "A study in scarlet": 

É um erro  capital teorizar antes de ter todos as provas. Isso distorce o julgamento. 

Resumindo: obtenha-se os factos antes de formular as suas hipóteses. Esteja-se pronto para abandonar uma hipótese que não explique os factos estabelecidos. Especialmente se essa hipótese estiver de acordo com um ideia preconcebida da nossa autoria! 

Se não começarmos a nossa investigação com uma tentativa muito determinada de sermos objetivos, acompanhada de estratégias definidas para minimizar os nossos próprios preconceitos, então não podemos e não vamos descobrir a verdade. Para colocar a questão sem rodeios: se não começarmos a procurar a verdade, não tropeçaremos nela por acaso e o que  encontrarmos não será a verdade. 

Este princípio é bem conhecido. Portanto, o real objetivo da maioria das investigações sobre a história soviética não é descobrir o verdade. Em vez disso, é preferir "falsidades convenientes" a "factos desconfortáveis" – chegar a conclusões politicamente aceitáveis e ignorar as provas quando essa prova não alinha com essas conclusões politicamente aceitáveis. 

Porque é que essa falácia lógica é tão comum na história  Soviética do período de Stalin? Acredito que isso se deva ao poder do "paradigma anti-Stalin". Stalin foi tão difamado, por tantos "especialistas" e por tanto tempo, que muitas pessoas acreditam "onde há fumo, há fogo" - "deve haver alguma coisa com isto." 

Isto está tudo errado. Não há substituto para a prova. Nos nossos livros, examinamos as provas e tiramos conclusões apenas das provas. Esta é a única maneira racionalmente defensável de proceder em história como em qualquer outro campo de investigação científica.

Em

Pelo socialismo

https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/a-conspiracao-de-trotsky-na-comintern-333157#cutid1

2/12/2024

domingo, 1 de dezembro de 2024

Definição de socialismo

 


Prabhat Patnaik [*]

'O vale de lágrimas', Gustave Doré, 1883.

Ao ouvir uma petição, em 22 de novembro, para retirar o termo “socialismo” do Preâmbulo da Constituição indiana, o Presidente do Supremo Tribunal da Índia (Chief Justice of India, CIJ) fez duas observações importantes:   em primeiro lugar, o termo “socialismo” no Preâmbulo da Constituição não é utilizado num sentido doutrinário, mas refere-se antes a um Estado social que assegura a igualdade de oportunidades a todos os cidadãos; e, em segundo lugar, o “socialismo”, neste sentido, faz parte da estrutura básica da Constituição; não é apenas um aditamento ao Preâmbulo, mas sim algo que permeia a própria essência do que queremos que seja a república indiana.

O TJI absteve-se de atribuir ao “socialismo” um carácter institucional. Em todo o mundo, o termo “socialismo” tem sido entendido como a propriedade social dos meios de produção, pelo menos dos principais meios de produção; mas o TJI, ao definir o “socialismo” em termos de resultados e não da instituição da propriedade, sugeriu que a empresa privada não era incompatível com o “socialismo”; o que realmente importava era a criação de um Estado social que garantisse a igualdade de oportunidades para todos os cidadãos.

A definição institucional de socialismo, em termos de propriedade dos meios de produção, é utilizada de forma generalizada porque a propriedade social é considerada uma condição necessária para garantir um Estado social com igualdade de oportunidades. No entanto, o TJI sugeriu que este resultado poderia ser obtido mesmo sem a instituição da propriedade social. É certo que o socialismo não se preocupa apenas com a criação de um Estado-providência com igualdade de oportunidades; o seu objetivo é mais abrangente, nomeadamente criar uma nova comunidade, transcendendo o estado de fragmentação em indivíduos atomizados que o capitalismo traz a uma sociedade. Mas a nova comunidade também deve ser caracterizada por um Estado social com igualdade de oportunidades; a questão é saber se esse Estado social com igualdade de oportunidades pode ser alcançado mesmo sem a propriedade social dos meios de produção.

Acreditamos que não; mas não vamos, para além de citar alguns exemplos óbvios de contradição entre a empresa privada e a igualdade de oportunidades, entrar aqui neste debate. Em vez disso, gostaríamos de instar o Supremo Tribunal a aderir ao compromisso do CJI com a igualdade de oportunidades e a examinar como deve ser uma sociedade caracterizada pela igualdade de oportunidades. Isto torna-se importante porque ninguém pode argumentar que a atual sociedade indiana, com a sua crescente concentração de riqueza, por um lado, e com o aumento do desemprego e da pobreza nutricional, por outro, está a evoluir no sentido de garantir a igualdade de oportunidades; mas então surge a questão:   quais são os marcadores dessa evolução para a igualdade de oportunidades?

É evidente que não pode haver igualdade de oportunidades num mundo onde existe desemprego, ou aquilo a que Marx chamou um exército de reserva de mão-de-obra. Os rendimentos dos desempregados são muito inferiores aos dos empregados, mesmo que os primeiros recebam um subsídio de desemprego; os filhos dos desempregados sofreriam, portanto, privações de vária ordem que tornariam impossível a igualdade de oportunidades entre eles e os filhos dos outros.

Para além da desigualdade económica decorrente do desemprego, há ainda o estigma do desemprego, a perda de autoestima do desempregado, que necessariamente provoca uma infância traumatizada para os filhos dos desempregados. Este trauma só pode ser eliminado, o que é indispensável para a igualdade de oportunidades, se o próprio desemprego for eliminado.

Uma forma de superar a privação económica resultante do desemprego seria fazer com que os desempregados ganhassem o mesmo salário que os empregados, ou seja, fazer com que o subsídio de desemprego fosse igual ao salário; mas isso não é possível numa economia com empresas privadas. A existência do desemprego funciona como um dispositivo disciplinador dos trabalhadores, não apenas no capitalismo, mas em qualquer economia em que exista um sector privado significativo; por isso, o facto de os desempregados ganharem o mesmo salário que os empregados, ou, por outras palavras, de o subsídio de desemprego ser igual ao salário, seria inaceitável numa economia desse tipo, pois eliminaria esse dispositivo disciplinador. O “despedimento” perderia toda a sua força punitiva, como aconteceria também em caso de pleno emprego efetivo.

A primeira contradição entre a igualdade de oportunidades, por um lado, e a iniciativa privada, por outro, surge, portanto, na questão do desemprego. Mas, quer o TJI concorde ou não, deve reconhecer, pelo menos, que a existência de desemprego constitui um obstáculo à igualdade de oportunidades.

O segundo requisito óbvio da igualdade de oportunidades é a eliminação total, ou pelo menos uma redução muito substancial, da possibilidade de herdar riqueza. Não se pode dizer que o filho de um multimilionário e o filho de um trabalhador tenham igualdade de oportunidades se o primeiro herdar os milhares de milhões do pai. De facto, mesmo a economia burguesa, que atribui os lucros dos capitalistas e, portanto, a riqueza, ao facto de terem alguma qualidade especial que os outros não têm, não pode defender a herança, porque vai contra este mesmo argumento da “riqueza devido a alguma qualidade especial”. É por isso que a maior parte dos países capitalistas tributam fortemente as heranças, sendo a taxa no Japão de 55% e noutros países importantes de cerca de 40%. Na Índia, surpreendentemente, não há impostos sobre as heranças, o que é contrário à igualdade de oportunidades.

O terceiro requisito da igualdade de oportunidades é que, para além de a herança ser proibida, as próprias diferenças de riqueza devem ser minimizadas. A riqueza traz poder, incluindo o poder político e social, e não se pode dizer que uma sociedade onde o poder é distribuído de forma desigual ofereça igualdade de oportunidades a todos. Por conseguinte, para além do facto de não se dever permitir que a riqueza seja transmitida aos filhos, há que evitar os efeitos da riqueza sob a forma de proporcionar uma vantagem indevida aos filhos durante a vida dos pais, pelo que as diferenças de riqueza devem ser minimizadas. O mesmo se aplica às diferenças de rendimento, que também devem ser minimizadas se se quiser garantir a igualdade de oportunidades.

O quarto requisito óbvio é que a desigualdade económica não deve afetar a qualificação educacional ou o nível de aquisição de competências da descendência. Isto exige, por sua vez, que o acesso à educação e à aquisição de competências seja igual para todos, através de um sistema de ensino público que proporcione uma formação da mais elevada qualidade, gratuita ou a um preço extremamente baixo, acessível a todos. Longe da privatização que tem vindo a ocorrer na esfera da educação no nosso país e noutros lugares sob o neoliberalismo, que ridiculariza a igualdade de oportunidades ao excluir do seu âmbito um grande número de estudantes, deveria haver uma universalização da educação pública de alta qualidade e totalmente acessível. De facto, mesmo quando existe esse sistema de ensino público, enquanto existirem instituições privadas dispendiosas, pode haver um falso prestígio associado a elas que subverte a igualdade de oportunidades ao favorecer o recrutamento nessas instituições; isto tem de ser contrariado garantindo que as instituições privadas, se existirem, não cobram propinas mais elevadas do que as públicas. Em suma, só podem ser instituições de caridade.

O quinto requisito diz respeito aos cuidados de saúde, onde se aplicam exatamente as mesmas considerações. A prestação de cuidados de saúde universais de elevada qualidade, através de um Serviço Nacional de Saúde sob a égide do governo, que seja totalmente gratuito ou exija um preço nominal acessível a todos, é uma condição essencial para a igualdade de oportunidades.

Estes são alguns requisitos absolutamente óbvios, mas mínimos, para garantir a igualdade de oportunidades. O facto de a social-democracia do pós-guerra, que criou um Estado-providência nos países capitalistas avançados e utilizou a gestão keynesiana da procura para manter o desemprego num nível mínimo (cerca de 2% na Grã-Bretanha no início da década de 1960), não ter conseguido alcançar uma verdadeira igualdade de oportunidades, nem ter podido provar ser uma conquista duradoura (entrou em colapso devido à crise inflacionista do final da década de 1960 e início da década de 1970), é significativo:   mostra a impossibilidade de alcançar a igualdade de oportunidades numa sociedade que continua a estar dividida segundo linhas de classe.

A crise inflacionista que consumiu o Estado-Providência foi o resultado da elevada taxa de emprego e também da perda do controlo total sobre os produtores de produtos primários em terras distantes, que tinha sido proporcionado anteriormente à metrópole durante o colonialismo; estes desenvolvimentos intensificaram o conflito de classes e a inflação foi o resultado. Só numa sociedade onde os antagonismos de classe não existam, porque os meios de produção são propriedade social, é que pode haver uma verdadeira igualdade de oportunidades.

Mas não vamos discutir sobre esta questão. Que o Supremo Tribunal continue empenhado na criação de um Estado-providência com igualdade de oportunidades. Quaisquer passos nessa direção, ainda que aquém do socialismo, devem ser bem-vindos a todos os socialistas.

01/Dezembro/2024

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2024/1201_pd/defining-socialism

Em

RESISTIR.INFO

https://resistir.info/patnaik/patnaik_01dez24.html

1/12/2024