segunda-feira, 9 de junho de 2025

Marx era um defensor do mercado livre – (livre do rentismo parasitário do capital financeiro)

 

Marx era um defensor do mercado livre

– (livre do rentismo parasitário do capital financeiro)

Michael Hudson e Richard Wolff [*]
entrevistados por Nima Alkhorshid

Previsões de PIB da OCDE.

NIMA ALKHORSHID: Olá a todos. Hoje é quinta-feira, 29 de maio de 2025, e os nossos amigos Richard Wolf e Michael Hudson estão de volta connosco. Sejam bem-vindos.

RICHARD WOLFF: É um prazer estar de volta. Muito obrigado.

NIMA ALKHORSHID: Michael, vamos começar por si. Em que medida é que a atual fratura global entre as economias ocidentais e a maioria global é semelhante à revolução capitalista industrial na Europa dos séculos XVIII e XIX?

MICHAEL HUDSON: Bem, antes de explicar isso, devo dar uma pequena nota prévia. Tanto eu como o Richard somos economistas clássicos. Seguimos a teoria do valor que foi desenvolvida por Adam Smith, Ricardo, John Stuart Mill e outros – aqueles cujas análises conduziram a Marx. O problema é que o currículo económico moderno não fala sobre a teoria do valor, a teoria do preço e a teoria da renda que os economistas clássicos desenvolveram. Os únicos que falam disto são os marxistas.

Por isso, é irónico que sejamos ambos economistas clássicos e nos chamem marxistas. Identificamo-nos com os marxistas porque Marx escreveu a primeira história do pensamento económico, as suas Teorias da Mais-Valia, onde fala de como as análises clássicas dos fisiocratas, Smith e outros – a sua teoria do valor e a sua teoria dos preços – conduziram aos problemas que ele discutiu em O Capital. Dedicou o Volume Um aos seus acréscimos às suas teorias, mas o Volume Dois e o Volume Três descrevem a teoria da renda, a teoria financeira e a teoria do imobiliário que conduziram a tudo isto.

Pode surpreender muitos leitores saber que acreditamos no mercado livre clássico. Mas o que os economistas clássicos queriam dizer por mercado livre era algo livre de interesses instalados (vested interests), os quais sacam rendimentos para si próprios que nada têm a ver com o processo de produção e que são barreiras ao êxito do capitalismo industrial.

O papel da economia política clássica era desenvolver a teoria do valor e do preço como instrumento para isolar a renda económica – o rendimento não merecido (unearned income) – o qual era tarefa do capitalismo industrial liquidar a fim fazer da Grã-Bretanha a oficina do mundo e permitir que a França, a Alemanha se tornassem as potências industriais em que se tornaram.

A estratégia industrial clássica baseava-se na economia clássica e na economia política. Foi isso que tornou o próprio capitalismo industrial tão revolucionário, ao eliminar os vestígios do feudalismo. E é isso, de certa forma, que os países BRICS enfrentam atualmente ao tentarem desenvolver o seu próprio plano para os seus próprios mercados. Trata-se de se libertarem do legado do colonialismo e do neoliberalismo centrado nos EUA que tem dominado a política governamental em todo o mundo e é imposto pelo Banco Mundial, pelo Fundo Monetário Internacional e pela corrente económica dominante.

Portanto, a nossa posição é que os países BRICS estão a enfrentar um problema muito semelhante ao enfrentado pelos países capitalistas industriais da Europa no final do século XVIII, tal como foi entendido pelos fisiocratas franceses e por Adam Smith (que foi influenciado por eles) – até ao final do século XIX. A Grã-Bretanha, a França, a Alemanha e outros países tiveram de lidar com os interesses instalados herdados do feudalismo.

Atualmente, os países BRICS têm de enfrentar um legado semelhante – o legado do colonialismo e do investimento estrangeiro e das oligarquias clientes que detêm a propriedade dos seus recursos de matérias-primas, das suas terras e dos seus serviços públicos privatizados. Tudo isto constitui um fardo que os impede de se desenvolverem de uma forma que, por exemplo, permitiu que o crescimento da China fosse tão bem sucedido. Portanto, o que queremos falar é sobre isto, que vai ser a questão política que está a impulsionar os países BRICS nos próximos anos.

Foi preciso um século inteiro para que o capitalismo industrial tentasse eliminar os interesses instalados do sector imobiliário, da banca e dos monopólios. E, no final, falhou. Houve uma reação anti-clássica com a qual ainda hoje convivemos. Queremos descrever como é que os países BRICS podem seguir esta teoria do valor, do preço e da renda para se libertarem do rendimento não merecido, de todas estas classes, investidores estrangeiros e rent seekers nacionais que não têm nada a ver com o processo de produção e que os estão a impedir de dedicar as suas receitas fiscais, as suas receitas governamentais, as suas receitas cambiais e o seu comércio externo à industrialização. Talvez eu deva deixar o Richard dizer algumas coisas aqui.

RICHARD WOLFF: Antes de o fazer, quero tirar o chapéu ao Michael, não por uma questão de celebração mútua, mas porque é muito importante perceber isto. O que os países BRICS e a China estão a fazer agora é análogo, tem muitos paralelos, ao que foi a rutura inicial da Europa Ocidental com o feudalismo. Estão a tentar alcançar para si próprios um avanço comparável, com as melhorias de rendimento, etc., que daí resultaram.

As pessoas que fizeram a revolução nos séculos XVIII e XIX na Europa ocupam agora a posição oposta ou inversa. São os novos senhores feudais contra os quais se revoltaram, mas em que agora se tornaram. E o Sul Global tomou conta do momento historicamente progressista e dinâmico.

Reparem que ainda não estou a falar de socialismo. Essa é outra questão. O socialismo é o reconhecimento de que mesmo o que eles estão a fazer não lhes vai trazer o que eles esperam. Sabem, Marx olhou à sua volta em meados do século XIX e disse:   "Adoro o slogan da Revolução Francesa: “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. E adoro o que a Revolução Americana acrescentou a isso – democracia". E compreendo que os líderes da revolta contra o feudalismo tenham prometido que, a par do fim do senhor e do servo, substituindo-o por patrão e empregado, viria, como um fantástico benefício social, a liberdade, a igualdade, a fraternidade e a democracia.

Mas tenho de vos dizer, disse Marx, escrevendo na Londres de Charles Dickens, que não temos liberdade, igualdade, fraternidade e democracia. O que o capitalismo prometeu, não conseguiu cumprir. E isso tem sido verdade desde então. Assim, o projeto de Marx, se me permitem dizer isto, era responder à pergunta:   “Porque é que o capitalismo não cumpriu a liberdade, a igualdade, a fraternidade e a democracia que prometeu?”

Não se trata de questionar a sinceridade da promessa. Ela era sincera. Robespierre estava a falar a sério. Thomas Jefferson, à sua maneira, também o fez. Mas não o conseguiram fazer. Não o conseguiram. E a resposta de Marx, que o torna tão importante, é que o próprio capitalismo é a barreira para a realização da liberdade, da igualdade, e não procurem noutro lado. Não procurem fora. Está mesmo cá dentro.

Há algo que o capitalismo preserva e que o impede de ultrapassar a autocracia, a escravatura, tudo o resto, da história anterior. E isso é o facto de haver algo assustadoramente semelhante entre o mestre e o escravo, por um lado, o senhor e o servo, por outro lado, e nessa famosa terceira mão, o patrão e o empregado. Mantiveram essa dicotomia. E ao manterem essa dicotomia, uma minoria no topo, uma vasta maioria na base, impediram a liberdade e a democracia. Criámos cem anos ou duzentos anos de pessoas honestas, boas e bem intencionadas a tentar ultrapassar a desigualdade e tudo o resto, incapazes de o conseguir porque não absorveram a lição de Marx.

Se queremos liberdade, igualdade, fraternidade e democracia, temos de nos livrar do capitalismo. Caso contrário, estão condenados. Falharão como nós falhámos. Cada vez que lêem sobre Elon Musk, estão a encarar o fracasso de frente. Está bem? O que o Michael fez foi focar-nos ainda mais além disso. Ajudou-nos a identificar os latifundiários – porque quero falar um pouco sobre isso – latifundiários, monopolistas e banqueiros. Que papel desempenharam eles que teve de ser ultrapassado?

Bem, a resposta é dada pela reação que aconteceu quando a economia clássica atingiu o seu auge. É aquilo a que chamamos a revolução neoclássica, por volta de 1870 e 1880, quando na Europa se dá uma explosão de socialismo que questiona o capitalismo e que usa a versão de Marx da teoria do valor do trabalho para defender que o mundo está dividido entre o proletariado que produz um excedente e os capitalistas que o recebem e o usam para reproduzir essa situação, essa forma de organizar a economia. É por isso que os trabalhadores estão sempre sem recursos e em apuros.

E, sabem, a resposta é sempre que os capitalistas encurralaram o excedente e estão a usá-lo para manter o excedente, o que não surpreende – ou não deveria surpreender ninguém. E uma das formas de o fazer é criando estas classes especiais de pessoas. E é aí que entra a beleza da analogia com o feudalismo. Os senhores da terra!

Marx estava no seu melhor humor quando simplesmente nos ensinou – sabem, a classe trabalhadora sempre compreendeu: Porque é que estamos a pagar uma renda aos landlords? Eles não criaram a terra. Não tiveram nada a ver com a produção da terra. E sabem, se deixássemos de lhes pagar, isso não significaria que a terra desaparecesse. A terra está lá. É disso que precisamos. Não precisamos do latifundiário.

Pagar-lhe simplesmente retira uma parte do valor criado pelos trabalhadores de estar disponível para desenvolver a sua economia e, em vez disso, sustenta um estilo de vida extravagante para pessoas que são efetivamente parasitas do sistema. Os monopolistas estão a fazer a mesma coisa. Estão a receber um pagamento pelo que vendem acima do custo de produção. Não deviam estar a receber esse dinheiro. Esse dinheiro é depois retirado por eles para o que quer que seja que pensam que gostariam de fazer, mas já não está disponível para os trabalhadores e os seus capitalistas industriais que presumivelmente o utilizariam de outra forma. E o mesmo acontece com os banqueiros.

A classe trabalhadora tem sido frequentemente confundida entre o capitalista industrial que lhe retira o excedente e o capitalista monetário que se senta e assiste a todo o processo e recolhe os seus juros. Mas a renda, o preço de monopólio e os juros são deduções de um excedente produzido pelos trabalhadores que poderia ser utilizado de outra forma. E a revolta da economia clássica foi mostrar isso. A contrarrevolução da economia neoclássica foi obliterar esse entendimento, fazer de tudo uma questão de oferta e procura. Se há procura, bem, então deve ser valioso. O capitalista exige trabalhadores. Vê, eles são valiosos. O banqueiro exige juros. Deve ser valioso.

Aqui está. Falsificámos o excedente. Falsificámos tudo o que a teoria do valor do trabalho nos ajudou a ver. E os neoclássicos duplicam o horror porque se orgulham de não prestar atenção à teoria do valor do trabalho. Para eles, isto é um feito de maior precisão teórica. Para nós, é o esforço óbvio de um sistema que já não está a fazer avançar a sociedade de forma dinâmica, mas que está a enraizar elementos parasitários que serão um problema para as nossas sociedades enquanto os deixarmos existir.

MICHAEL HUDSON: Bem, a palavra-chave que Richard usou repetidamente no que acabou de dizer é “valor”. Marx salientou que o que tornou o capitalismo industrial tão revolucionário foi o facto de querer retirar da economia todas as reivindicações de rendimento que não reflectiam o valor, que foi definido como um custo de produção necessário. Segundo Ricardo, o custo da mão-de-obra era a solução final.

Mas o facto é que, se olharmos, digamos, para o que faz a renda monopolista, é o encargo para além do custo necessário de produção que os monopolistas enfrentam. Embora o capitalismo tenha sido revolucionário ao querer livrar-se da classe dos proprietários, reconheceu que a renda iria sempre existir.

Alguns terrenos estão num local mais valioso do que outros. É isso que faz com que as mesmas casas nalguns bairros sejam muito mais caras do que noutros. E isso porque pode haver parques, pode haver proximidade de transportes, pode haver museus, pode haver todas as coisas que a despesa pública acrescenta. Bem, o capitalismo foi revolucionário ao querer livrar-se de todos os custos de produção desnecessários – aquilo a que Marx chamou a “falsa” classe de produção – e da renda económica aos proprietários. A renda vai continuar a existir, mas deve ser a base fiscal. E se a renda é uma base de tributação, então não é preciso tributar o trabalho e a indústria.

Enquanto os proprietários controlassem os governos da Europa, o que acontecia desde o feudalismo, evitariam pagar impostos e obrigariam o trabalho e a indústria a pagar os impostos. Os industriais disseram: “se tivermos de pagar aos nossos assalariados o dinheiro suficiente para que possam pagar a renda económica aos proprietários e a renda de monopólio aos monopolistas e depois endividar-se e pagar juros aos bancos, então não vamos conseguir ser competitivos a nível internacional”. A Grã-Bretanha não pode ser a oficina do mundo enquanto não houver uma reforma política que acabe com o controlo do governo e do sistema fiscal por parte dos proprietários. Tudo isso era revolucionário.

A ideia do capitalismo industrial era racionalizar os custos de produção. E verificou-se que fazer isso era uma condição prévia para que um mercado livre, ou seja, um mercado livre de rendas económicas, começasse a evoluir. E, como Richard acabou de explicar, isso resolveria os objectivos da Revolução Industrial para a classe industrial, mas não resolveria os problemas da grande maioria da população, que era cada vez mais a classe assalariada, juntamente com a classe agrícola.

Marx acreditava que, uma vez libertados os mercados e as economias do domínio dos rent seekers, estes evoluiriam naturalmente para o socialismo. Assim, embora o socialismo fosse além do capitalismo, era o capitalismo que Marx via como evoluindo para o socialismo. Esta evolução, segundo Marx, começaria com o fornecimento pelo governo dos meios de produção para todo o tipo de serviços básicos, como os serviços públicos, as comunicações – todas as coisas que a Europa começou certamente por manter no domínio público – os correios, os transportes, todos estes serviços básicos.

Os europeus, e os americanos que os seguiram, aperceberam-se de que, se deixássemos estes serviços em mãos privadas, os proprietários privados cobrariam rendas de monopólio para além dos lucros. Tornar-se-ão exploradores. Assim, o capitalismo industrial precisava de um papel ativo do governo para substituir os monopólios que haviam sido criados durante o período medieval, em grande parte para fornecer aos governos e aos reis o dinheiro para pagar aos banqueiros as dívidas externas que contraíam a fim de financiar as suas guerras.

O objetivo da banca era, basicamente, organizar o financiamento das guerras e dos governos. A banca não desempenhou qualquer papel no início da Revolução Industrial. Os banqueiros não ajudaram a financiar a máquina a vapor e a mecanização da produção. Isso foi feito pelos capitalistas industriais. Eles queriam o apoio do governo para essa industrialização.

Claro que não queriam ter de aumentar os salários que pagavam, mas perceberam que a mão-de-obra precisava de salários elevados para ser produtiva, para se tornar mão-de-obra industrial. E os salários elevados assumiram a forma, em grande parte, de redução do custo de vida, através da atuação destes governos como receptores da renda da terra, de modo a não terem de tributar o trabalho. Assim, a mão-de-obra não tinha de pagar aos proprietários e não tinha de pagar preços de monopólio.

A ideia era racionalizar os meios de produção. E era isso que os economistas queriam dizer com mercado livre. Bem, o que o Richard acabou de dizer é que houve uma contrarrevolução contra isso e quando pessoas como Frederick Hayek e Margaret Thatcher falaram sobre o mercado livre – com uma coisa chamada Instituto Adam Smith – isso significava um mercado livre de caçadores de rendas, de latifundiários, de monopolistas, livre de qualquer regulamentação governamental para impedir interesses de rendas. E assim o capitalismo industrial no século XX, acelerando nos anos 80, tornou-se a antítese da revolução que o capitalismo industrial procurou criar.

Bem, como é que os BRICS vão lidar com isto? O que eles precisam perceber é que, embora o capitalismo industrial tenha falhado no Ocidente, têm de perguntar como podem proceder de forma a que seja bem sucedido naquilo que estão a fazer? Como é que se libertam? Bem, vejamos a questão da renda da terra, da renda dos recursos naturais. Os investidores estrangeiros desempenham nos países BRICS e no Sul global o mesmo papel que a aristocracia hereditária europeia desempenhou na Europa. Invadiram, assumiram o controlo dos recursos naturais e das receitas. E, embora a Grã-Bretanha, a França e a América fossem a favor da eliminação das rendas económicas nas suas próprias economias, quando estabeleceram colónias e tentaram conquistar economicamente o que se tornou os países do Sul Global – tudo isso foi uma questão de busca de rendas.

Queriam apoderar-se dos recursos naturais e ficar com todas as rendas dos recursos naturais, que eram exatamente como as rendas fundiárias, tal como Ricardo descreveu no capítulo dois do seu On the Principles of Political Economy. Estes princípios foram desenvolvidos logo após o fim das guerras napoleónicas, como um esboço do que a Grã-Bretanha tinha de fazer para se livrar das Leis do Milho (Corn Laws), do protecionismo agrícola, do poder dos proprietários sobre o governo e para conseguir uma reforma parlamentar que apoiasse essencialmente o capitalismo industrial contra estes interesses instalados.

Bem, os economistas clássicos tinham uma solução. Mesmo que os investidores estrangeiros continuem a deter a propriedade estrangeira dos recursos naturais, os governos têm a possibilidade de aplicar um imposto sobre a renda económica, sobre o rendimento não auferido, distinto do rendimento salarial e dos lucros industriais. Marx considerava o lucro industrial um elemento de valor porque os capitalistas industriais desempenhavam de facto um papel na produção.

Os industriais organizaram a produção, desenvolveram mercados, fizeram todo o tipo de coisas para competir com os rivais no estrangeiro e para criar mercados para si próprios em todo o mundo. Mas para continuarem a competir, para se tornarem realmente competitivos, quer fosse contra a sua vontade ou não, o capitalismo industrial tinha de evoluir para o socialismo.

Não só Marx pensava assim, mas toda a gente no final do século XIX pensava que iria assistir ao socialismo, de uma forma ou de outra. Havia, como dissemos nos programas anteriores enquanto Richard estava em França, o socialismo católico, o socialismo cristão, o socialismo não marxista. Havia todas as formas, mas havia uma ideia geral de que era necessária uma economia mista, um sector público governamental cada vez mais ativo, a par da produção privada, para evitar que os monopolistas, os proprietários de terras e os banqueiros procurassem obter rendimentos que impedissem as economias industriais de serem produtivas.

Bem, o mesmo se aplica ao que os países BRICS precisariam. Não mencionei a banca antes, mas os países BRICS precisariam de fazer o que a China fez:   fazer com que a banca criasse dinheiro e crédito. Não apenas para obter lucros através da aquisição de empresas industriais e da criação de monopólios como a mãe dos trusts, e depois apoiando aqueles que se opõem à tributação da terra porque querem que os proprietários ganhem dinheiro suficiente para pagar os juros do governo sobre o crédito hipotecário que permite aos novos compradores da terra.

Bem, a principal medida que a China tomou e que os países BRICS precisam de imitar é manter a banca como um monopólio público, uma criação pública de dinheiro e crédito, para que seja utilizada para financiar investimentos reais em infra-estruturas industriais, agrícolas e governamentais, e não o comportamento predatório dos bancos da Europa.

Bem, esta luta foi travada na Alemanha no século XIX, mas os bancos ripostaram. De qualquer modo, estes conceitos clássicos de valor, preço e renda, e a utilização da teoria do valor para definir a renda económica como rendimento não merecido de que as economias precisam de se livrar, é uma condição prévia, não só para o capitalismo, mas também para o socialismo. É isso que faz com que esta seja essencialmente a tarefa das economias BRICS atualmente, penso eu.

RICHARD WOLFF: E repare, não compreender isto – se me permite acrescentar, Nima – não compreender isto leva-nos ao seguinte enigma. A denúncia da China no Ocidente é precisamente porque os chineses estão a fazer, por exemplo, com o seu sistema de crédito, o que o Michael acabou de descrever. Não estão a permitir que funcione como se fosse de alguma forma equivalente à forma como funciona no capitalismo industrial.

Não vai ser propriedade privada. Não vai ser conduzido por uma definição estreita do que quer que se chame lucro e maximização – nada disso. Vai resolver o problema social, que para eles tem sido, não ser o país mais pobre do mundo, mas tornar-se um país decente, moderno e de rendimento médio, o que conseguiram numa geração. Nunca ninguém o tinha feito antes.

Mas a denúncia é uma dupla ironia. Não percebe o seu êxito e garante o fracasso do Ocidente, porque este não pode fazer isso. O Ocidente não tem forma de mobilizar os seus recursos de uma forma comparativamente centrada no crescimento económico. Por isso, ficará para trás, o que conduzirá a todos os problemas.

Lemos esta manhã na imprensa que o Governo dos Estados Unidos decidiu que há ainda outros tipos de equipamento que não permitirá que as empresas americanas vendam à China. Isso não vai parar o processo. Não compreende a questão estrutural. Será um fracasso tão grande como foi a guerra na Ucrânia, ou a guerra no Vietname, ou a guerra no Iraque.

Não está a pensar com clareza, não porque não seja inteligente, mas porque retirou a teoria do valor do trabalho, que foi desenvolvida – mais uma vez, porque o Michael o disse, e muito poucas pessoas a compreendem – não por Karl Marx, mas por Adam Smith e David Ricardo e houve outros precursores além destes. Marx levou-o numa direção diferente, sem dúvida.

Mas devia-lhes isso, uma dívida que reconheceu nos livros a que o Michael se referiu em The Theories of Surplus Value, onde diz repetidamente que foi um avanço importante quando Smith e Ricardo puseram as mãos nessa teoria do valor do trabalho. E o que o Michael está a dizer é que temos de ler a história da economia de forma diferente, porque é crucial para nos orientarmos no ponto em que estamos hoje.

A minha dívida, um pouco diferente da do Michael, é para com um filósofo francês chamado Louis Althusser, cuja publicação mais importante, praticamente desconhecida nos Estados Unidos, é um livro chamado Lire le Capital, que se traduz em inglês como Reading Capital. E ele referia-se a O Capital, o livro. Ele vem como filósofo e diz:   “O que é que este livro está a fazer?” Qual é o problema que este livro aborda? Qual é o projeto?

Ele diz isso na sua própria linguagem, que é a de um filósofo. Era professor de filosofia. A sua linguagem é diferente. Mas chega a uma conclusão encantadoramente paralela àquela que o Michael nos abriu hoje. Ele diz: "Vejam o que eles estão a tentar fazer. Oh! – e a seguir desvenda. Se lermos estas coisas em Althusser e depois voltarmos atrás e dissermos que tivemos aquele momento Eureka, é disso que trata este livro. Não se trata deste ou daquele pormenor. Trata-se de uma forma diferente de compreender o que se está a passar.

Já agora, se querem saber porque é que O Capital de Marx não é ensinado nos Estados Unidos, é porque é uma forma diferente de compreender o que se está a passar. E é muito importante para este sistema que isso não seja discutido publicamente, explorado publicamente ou criticado. Está tudo bem. Encontrem falhas no sistema. Há muitas. Isto não é um jogo de lealdade. Este é um jogo para dizer que tipo de sociedade permitiria a realização de descobertas científicas que depois enterra. Em que tipo de sociedade bizarra temos de viver para o fazer? Não é algo de que nos possamos orgulhar. É algo que nos faz coçar a cabeça e perguntar porquê.

MICHAEL HUDSON: Bem, Adam Smith seria hoje chamado de marxista, porque insistiu em mudar o sistema fiscal para tributar os proprietários e não o trabalho e o capital. Lembrem-se que ele acusava os homens de negócios de procurarem monopólios. E se quisermos evitar isso, bem, com legislação anti-monopólio, isso é chamado de marxista. Todas as reformas que os economistas clássicos defendiam para libertar os mercados são hoje chamadas de marxistas.

Então, o que é que eu e o Richard podemos fazer? Os únicos estudantes que estão a aprender economia estão a ser ensinados por professores marxistas. Esta é a única exposição que têm quanto ao que Adam Smith, John Stuart Mill, Ricardo e até Thomas Malthus realmente diziam.

Toda a estratégia do capitalismo industrial foi resumida por Marx e é essa a estratégia que temos discutido – e é muito embaraçosa para os que estão em busca de rendas, os quais dizem “não, não, não, não digam que os latifundiários não merecem o seu dinheiro”. É verdade que os latifundiários não se limitam a receber as rendas a dormir, como dizia John Stuart Mill. Eles desempenham um papel ativo. Decidem a quem arrendar. E pagam a lobistas para ajudar o governo a entender que a renda é [algo] produtivo.

É por isso que as nossas contas do PIB e do rendimento nacional consideram a renda como uma contribuição para o produto. Mas não é um produto. Marx é muito claro. Distinguiu a economia de produção, produto e consumo, da economia improdutiva, a economia de circulação. É a mesma coisa que outros economistas que criticavam os monopólios, os reformadores alemães que industrializaram a banca, queriam evitar – que a banca desempenhasse um papel improdutivo.

Mas o que aconteceu depois da Primeira Guerra Mundial foi que, em vez do que Marx esperava e do que descreveu no Volume 3 de O Capital, em vez de a banca ser industrializada, a indústria foi financeirizada. E isso tornou-se uma contrarrevolução, no sentido de ser contra a revolução na teoria do valor, do preço e da renda que tinha guiado o capitalismo industrial. Esse é o modo [deles] de pensar.

Se pensarmos no preço como o excesso desnecessário da renda económica em relação ao valor como o custo necessário da produção, isso leva-nos a eliminar todos os privilégios especiais que os proprietários têm, que os monopolistas têm e que outras pessoas que procuram obter rendas têm. Temos um mercado livre no sentido clássico de Adam Smith, Marx, Richard e eu, e não a teoria de Hayek, segundo a qual, se queremos liberdade, devemos livrar-nos do governo.

O capitalismo industrial conduziu a um governo suficientemente forte para tributar a renda económica, suficientemente forte para levar os monopólios para o domínio público, para produzir necessidades básicas e serviços básicos como serviços públicos a serem subsidiados e fornecidos gratuitamente – como a educação, em vez de ter de cobrar por ela, como os transportes, como os cuidados médicos e a saúde pública. Bem, todas estas eram políticas conservadoras no século XIX. Benjamin Disraeli disse que a saúde, a saúde é tudo. Disraeli e os economistas clássicos não apoiariam o Obamacare e a enorme sobrecarga dos cuidados de saúde nos Estados Unidos.

É isto que realmente distingue o tipo de reforma económica que o industrialismo prometeu mas não conseguiu realizar, porque não conseguiu impedir esta contrarrevolução intelectual que foi patrocinada pela contrarrevolução política dos proprietários de terras, banqueiros e monopolistas que lutaram contra a ideia dos industriais de uma economia de baixo preço e gerida de forma eficiente. Por isso, coube à China socialista racionalizar a situação, e vimos a diferença na prática.

RICHARD WOLFF: Deixem-me mostrar-vos como isto funciona, amigos. O investidor mais bem sucedido dos Estados Unidos no último meio século é um homem chamado Warren Buffett. Reformou-se recentemente. Agora é um senhor idoso, um multimilionário, etc. Ao longo da sua carreira, fizeram-lhe sempre uma pergunta: porque é que é tão bem sucedido? Por que razão, na sua empresa Berkshire Hathaway, reuniu as acções certas na altura certa para se tornar multimilionário, blá, blá, blá.

Ele nunca hesitou em responder. A sua resposta – sim, na linguagem económica a que está habituado – foi a seguinte:   "Concentro sempre o meu investimento da seguinte forma. Procuro uma empresa". E agora – na sua linguagem – que tenha uma posição dominante no seu mercado". Muito bem, é uma forma simpática de dizer “monopolista”, alguém que está em posição de aumentar o preço do que quer que seja que produz muito acima do seu custo, e depois distribuir essa maravilhosa receita por quem quer que a tenha tornado possível.

Foi isso que ele fez. Por isso, investiu, com base na fome de monopólio do capitalismo moderno. E ganhou muito dinheiro porque apostou corretamente que as empresas em posição de dominar um mercado, ou seja, de cobrar mais do que o custo de reprodução do que quer que seja, é onde se quer estar para recolher o dinheiro da forma como este capitalismo funciona. Uau.

É por isso que ele é grande no sector bancário. Ele é grande nos seguros. É grande em todas essas coisas – caminhos-de-ferro que têm um monopólio efetivo sobre o local onde circulam. São com essas as coisas em que ele fez uma tonelada de dinheiro. É uma ilustração do que o Michael está a tentar dizer. E uma sociedade que faz isso está a desviar a riqueza do desenvolvimento económico para sustentar esses grupos especiais. E era isso que Adam Smith e Ricardo odiavam nos senhores feudais. Eles desviaram a riqueza que emergia do feudalismo e que não podia ser usada para desenvolver as economias inglesa ou francesa, porque estava a ser gasta na loucura do consumo frívolo desse período da história francesa.

Acabei de regressar de França. Se viajarmos ao longo do rio Loire, que não fica muito longe de Paris, podemos ver as extraordinárias mansões e castelos que foram construídos com este enorme excedente que foi retirado à produção industrial para produzir um grande palácio atrás do outro. É extraordinário o conhecimento que se obtém com isto.

E depois, mais uma vez, a ironia da China. Ao ser excluída do Ocidente, ao ser-lhe dito que é um país comunista, por isso é o país mais pobre do mundo. Não vos vamos ajudar e vão continuar a ser o país mais pobre do mundo porque não aderem ao sistema de crescimento capitalista. Isto foi-lhes dito literalmente no final dos anos 40 e início dos anos 50.

Serem excluídos foi a melhor coisa que lhes aconteceu. Ao serem obrigados a não depender do Ocidente, conseguiram limitar – não totalmente, aliás, apenas limitar, porque eles também têm os seus problemas – mas conseguiram limitar a perda de toda essa riqueza do trabalho de desenvolvimento económico. Mantiveram-na lá. E isso fez toda a diferença.

Nada vai mudar nesse processo. Continuaremos a ver o PIB da China crescer duas a três vezes mais depressa do que o dos Estados Unidos, o que tem acontecido em todos os últimos 30 anos. Trata-se de um feito espantoso, que qualquer profissional sério em análise económica tornaria o seu objeto principal. Se o grande livro de Adam Smith, A Riqueza das Nações, quisesse explicar por que razão a riqueza de uma nação era muito maior do que a riqueza de outra, essa seria a questão número um. Por que é que a riqueza da China está a explodir em relação à de todos os outros países?

MICHAEL HUDSON: Bem, uma coisa que a China tinha e que as nações industriais da Europa não tinham era um governo suficientemente forte para impedir o desenvolvimento de uma oligarquia independente, uma oligarquia financeira, e a oligarquia de proprietários e monopolistas a ela associada. A razão foi que, quando a China fez uma revolução, livrou-se da classe financeira. A classe financeira e a classe senhorial fugiram todas para Taiwan ou abandonaram o país, ou foram essencialmente socializadas, deixando de existir.

Isso não aconteceu no Ocidente e foi esse o fracasso. As economias ocidentais, no final do século XIX, na altura da escola austríaca, da escola americana e de toda a contrarrevolução de direita contra o governo, disseram:   "Não queremos um governo forte. O governo é o opressor". Bem, o que eles queriam dizer era que o governo bloqueia a classe dos proprietários, a classe dos monopolistas e a classe financeira.

Mas eles convenceram a população. E hoje, a chamada defesa do mercado livre que estamos a ter nos Estados Unidos com Donald Trump, Musk, e os republicanos, a que se juntaram os democratas, é que as burocracias governamentais são menos eficientes do que os monopolistas privados e os capitalistas privados. Bem, eles não são realmente capitalistas no sentido de capitalistas industriais, como era entendido no século XIX. São essencialmente gestores financeiros que tomaram conta da indústria e tomaram conta do governo para o orientar segundo linhas financeirizadas.

Foram os interesses bancários que apoiaram os interesses imobiliários na oposição a um imposto sobre o património imobiliário. E fizeram-no porque sabiam que, muito bem, ainda se paga renda fundiária, mas já não está a ser paga aos proprietários. Está a ser paga aos bancos, no sentido em que quem pede dinheiro emprestado para comprar uma casa tem de pagar a renda fundiária e é para os bancos que vai a maior parte do valor das casas e dos edifícios comerciais.

E se olharmos para baixo, quem são os beneficiários da renda económica hoje em dia? Acontece que é o sector bancário e financeiro. Portanto, estamos numa situação que nem Marx nem outros socialistas antes de Lenine conheceram. Estamos hoje numa sociedade capitalista financeira, não numa sociedade capitalista industrial. Marx esperava que o capitalismo industrial evoluísse para o socialismo, mas foi desviado pelos interesses dos rentistas, transformando-o num capitalismo financeiro.

Foi isso que conduziu à desindustrialização dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. E essa é essencialmente a lição que eu penso que os países BRICS precisam de analisar, para dizer:   o que é que queremos evitar? Queremos evitar que os investidores estrangeiros e os proprietários privados, sejam eles oligarquias nacionais, oligarquias clientes ou investidores estrangeiros, se apropriem da renda dos nossos recursos naturais.

Os recursos naturais são criados pela natureza de forma gratuita. Não há custos de produção e, portanto, não há valor. E tentar beneficiar – se estivermos a explorar uma mina – de mais do que as despesas de capital que estamos a criar ao escavar um poço de petróleo e ao criar a mina, então estamos a receber toda a renda dos recursos naturais. Isso não é natural. Isso pode ser tributado e permitiria aos governos dos BRICS ter dinheiro para construir as suas próprias infraestruturas nacionais, para substituir as infraestruturas privatizadas, para criar uma economia racionalizada e baseada na economia da produção.

Seria utilizado para elevar o nível de vida, aumentar a produtividade, aumentar a educação, baixar o custo de vida e criar o que era a promessa capitalista original. E tornou-se a promessa socialista que foi combatida pela revolução anti-industrial que ocorreu, como disse Richard, no final do século XIX e início do século XX e que, essencialmente, substituiu o capitalismo industrial na sequência da Primeira Guerra Mundial.

RICHARD WOLFF: Poderia concluir esta conversa e voltar a Adam Smith. Ele avisou-nos – e, aliás, Marx repetiu-o mais tarde – que se deixarmos a estrutura capitalista como está, a forma como os capitalistas pensam e funcionam, eles farão a transição que criticámos. Deixarão de ser um capitalismo industrial, centrado na obtenção de lucros através da produção de algo, e passarão a procurar a posição de monopólio em que se pode ganhar dinheiro enquanto se dorme. É muito menos árduo. Em vez de sermos o organismo vivo que produz a riqueza, passamos a ser o parasita que se senta e simplesmente consome a riqueza e perde o interesse por ela.

A garantia final? Eis a ironia: a garantia máxima é o que os primeiros capitalistas imaginavam, um capitalismo movido pela concorrência para obter o máximo de excedentes e voltar a investi-los no negócio para crescer. Mas essa imagem é minada pela relação patrão-empregado. Foi essa a genialidade de Marx. Aquilo a que ele chamava as relações de produção acaba por deixar de ser um meio de fazer crescer a riqueza e passa a ser um grilhão que trava o crescimento da riqueza.

Então, qual seria a garantia de que não se passaria de um apropriador do excedente para um parasita? A resposta é: acabar com a contradição entre o empregador e o empregado, os seus interesses não são os mesmos. É a compreensão que os trabalhadores têm daquilo que Marx lhes ensinou. Se eles se tornarem o seu próprio patrão, podem ter a certeza de que não o levarão nessa direção social perdulária. E o facto de os trabalhadores se tornarem eles próprios patrões é socialismo.

É por isso que Marx não é algum previsor místico do futuro. Marx não acreditava, sabe, em prever o futuro como algo que as pessoas no parque de diversões fazem. Isso não é um negócio sério. Nenhum de nós sabe o que é o futuro. É por isso que lhe chamamos o futuro. Quando Marx falava assim, estava a trabalhar a lógica do sistema.

A garantia do socialismo é que as contradições internas do capitalismo, que ele passou a vida a tentar perceber, impediam não só a concretização da liberdade, da igualdade e da fraternidade, mas também a perpetuação do próprio sistema capitalista. E quando descobriu isso, legou ao resto de nós uma noção não só de como o capitalismo funciona, mas também de como e por que razão deixará de existir, altura em que um dos seus produtos, o marxismo, desaparecerá também.

Quero dizer, quem é que consegue tal visão? Sabem, é isso o que maravilha em Althusser. Vejam isto. Esta é uma análise que pode explicar a passagem do objeto da análise e depois da análise também. É extraordinário. E sublinha realmente o que o Michael e eu dissemos, o problema que ele disse que enfrentamos. Estamos a tentar explicar aos nossos colegas economistas o que é que lhes está a faltar. Mas, tendo a formação que tiveram, não nos conseguem ouvir.

Por isso, estamos a gritar, estamos a falar numa situação em que há frustração por todo o lado. Mas, por outro lado, talvez não nos devêssemos queixar. Porque se aprendo alguma coisa com os meus compatriotas americanos, todos os dias na rua, é que todos nos perguntamos o que raio se está a passar, porque nenhuma das velhas regras parece estar em vigor. Os títulos dos jornais de cada dia são mais bizarros do que os do dia anterior.

De qualquer forma, tenho de ir, por isso peço desculpa. Estou muito contente por estar de volta a esta conversa. Aprendo muito com o que estamos a tentar perceber aqui. Por isso, estou ansioso por voltar a fazê-lo na próxima semana.

MICHAEL HUDSON: Até breve. Obrigado, Richard. Há uma razão para os economistas não nos ouvirem: é que não estamos nos principais meios de comunicação social nem na televisão. Não nos pedem para comentar em companhia educada. Estamos no programa da Nima e muitas vezes noutros. Este é basicamente o nosso veículo. E estamos a voltar ao que o Richard disse. Ele disse que Adam Smith previu o que aconteceria se a esperança industrial de se livrar da classe dos proprietários e da sua renda económica não funcionasse.

Foi Ricardo, que era o porta-voz dos bancos no Parlamento britânico, que fez uma descrição ainda mais dramática, dizendo que, à medida que a população aumentasse e a procura de habitação e de terrenos agrícolas e imóveis aumentasse, cada vez mais o rendimento nacional seria utilizado para pagar aos donos da terra, até que todo o excedente económico, para além da mera subsistência, fosse pago à classe dos donos da terra, o que significaria o fim do capitalismo industrial.

Na próxima semana, posso ler-vos a passagem do que Ricardo disse de forma tão dramática. Mas, de facto, o que Ricardo não criticou, claro, foi a classe financeira, porque ele era um lobista da classe dos banqueiros de Inglaterra. E o que temos discutido neste programa nos últimos seis meses é a forma como cada vez mais do rendimento nacional dos Estados Unidos e da Europa tem sido pago como serviço da dívida ao sector financeiro, cada vez mais alto.

Todas as recuperações desde a Segunda Guerra Mundial começaram a partir de um nível de dívida cada vez mais elevado. E agora quase todo o rendimento, para além da subsistência de um número cada vez maior de assalariados, é pago aos bancos sob a forma de juros, juros de cartões de crédito – sobretudo juros de hipotecas, se tiverem uma casa. Mas, caso contrário, é sob a forma de renda económica que os compradores de imóveis que pediram dinheiro emprestado aos bancos para obterem a renda da terra pagaram essencialmente como juros.

São os juros da sua dívida automóvel, dos seus empréstimos pessoais que tiveram de contrair para se equilibrarem, porque os seus salários não são suficientes para pagar o custo de vida básico. Assim, o destino que Adam Smith e Ricardo avisaram que ocorreria se não se tributasse a renda económica – e eles estavam a pensar nos latifundiários – está agora a ser tomado pelo sector bancário, que desempenha hoje o papel que os latifundiários desempenhavam no século XIX.

Assim, ao lermos a economia de Marx, John Stuart Mill e outros economistas, apercebemo-nos de que, ah, sim, agora são os banqueiros os principais beneficiários. E como principais beneficiários da renda, opõem-se à tributação da renda económica e à sua utilização como base fiscal. Defendem a tributação sobre o trabalho e a indústria, não sobre os interesses imobiliários dos nossos clientes, não sobre os interesses monopolistas dos nossos clientes. E foi isso que essencialmente desindustrializou os Estados Unidos.

A tarefa dos países BRICS é:   como é que evitarmos isto? Como evitar que o poder das instituições financeiras internacionais, o Banco Mundial, o FMI e o National Endowment for Democracy americano se envolvam numa mudança de regime para nos impedir de tomar medidas para alcançar uma economia racionalizada em que o excedente económico seja utilizado para aumentar a produção, aumentar o emprego, construir mais fábricas, melhorar a agricultura e elevar o nível de vida e de trabalho, de modo a que a mão-de-obra mais instruída, mais bem vestida e mais bem alojada possa vender o trabalho a um preço inferior ao dos países pobres.

Os países pobres tornaram-se os Estados Unidos, a Alemanha e a Europa, que deveriam ser os principais países industriais. É a mão-de-obra americana, alemã e europeia que está agora a ser empobrecida pela finança, juntamente com o sector imobiliário e com os interesses monopolistas em busca de rendas. É diferente da China e de outros países asiáticos que estão a tentar reinventar a roda.

O que eu e o Richard tentámos fazer foi fornecer-lhes os conceitos de valor, preço e renda que orientariam a sua política para libertar a sociedade da renda. Isso implica um governo suficientemente forte para o fazer. E o objetivo do capitalismo financeiro é impedir um governo forte capaz de o fazer e capturá-lo para o tornar forte a favor do sector financeiro, a favor dos que procuram a renda – exatamente o que a Grã-Bretanha, a França e outros países europeus passaram um século a tentar reformar.

Tudo isto culminou, de facto, numa crise constitucional em Inglaterra, em 1909, 1910, quando o Parlamento britânico aprovou o imposto predial e a Câmara dos Lordes o rejeitou. A crise durou um ano, e a Grã-Bretanha aprovou uma regra que dizia que nunca mais a Câmara dos Lordes poderia rejeitar uma lei de receitas da Câmara dos Comuns. Bem, na altura em que foi aprovada, o mundo estava a caminho da Primeira Guerra Mundial.

As emergências nacionais e tudo isso anularam toda esta iniciativa de libertar as economias da renda e criar um mercado livre, ao estilo da economia clássica. Foi substituído por um mercado livre no sentido de ser livre para os rentistas impedirem que os governos bloqueassem a sua aquisição e paralisassem as economias. Foram essas as leis do movimento que ocorreram.

Marx, na sua introdução ao Capital, disse:   “O meu trabalho é descrever as leis de movimento do capitalismo”. Bem, as leis de movimento actuais não são as mesmas leis de movimento que Marx descreveu na altura. Ele era demasiado otimista quanto ao que esperava que o capitalismo industrial acabasse por fazer.

Estamos a tentar recentrar a atenção nestas leis de movimento para orientar a política que gostaríamos de ver aplicada pelos países BRICS, porque não vemos grandes perspectivas de que sejam aplicadas nos Estados Unidos e na Europa, onde os neoliberais se apoderaram do governo e o utilizaram exatamente para o fim oposto que os economistas e industriais originais e clássicos da Europa e da América esperavam ver.

NIMA ALKHORSHID: Ótimo, Michael. Vamos continuar estas discussões que são tão importantes, na minha opinião, no que diz respeito aos BRICS e ao futuro dos BRICS e do Sul Global e ao que podem aprender com os Estados Unidos, com a economia ocidental, com o que tem mencionado nas várias sessões em que está a falar, aqui neste podcast. Muito obrigado, Michael.

MICHAEL HUDSON: Bem, temos de vos agradecer por nos patrocinarem e nos darem este espaço para introduzirmos estes conceitos que não conseguimos introduzir no currículo académico destes países.

NIMA ALKHORSHID: Obrigado. Até breve, Michael. Até para a semana.

Em

RESISTIR.INFO

https://resistir.info/m_hudson/mercado_livre_01jun25.html

1/6/2025 

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