Gaza foi o anúncio, a Ucrânia o teste, o Irã a escalada, mas a Rússia e a China são a gota d'água e o objetivo final...AUnião Europeia continua afirmando "o direito de Israel de se defender", enquanto o líder de sua principal potência confessa que "Israel está fazendo o trabalho sujo para todos nós".
Há duas perspectivas sobre o que está acontecendo. O otimista argumenta que os conflitos que estamos testemunhando — o massacre de Gaza, a guerra na Ucrânia e a guerra contra o Irã — são conflitos separados e independentes, cada um com sua própria lógica e motivação: "segurança europeia", os envolvimentos no Oriente Médio, o colonialismo israelense...
Infelizmente, a realidade sugere o contrário: os três confrontos estão relacionados e fazem parte do mesmo processo. Esta é uma guerra contra os adversários do Ocidente: contra todos aqueles que se opõem ao seu domínio global decrescente e representam a possibilidade de uma administração planetária colegiada e plural entre as potências. Não é uma ordem ideal, mas é distinta da hegemonia e respeitadora das diferentes civilizações.
Nas relações internacionais, a linha divisória não é entre democracia e autocracia, mas entre hegemonia e pluralismo multipolar. A alternativa entre hegemonia e multipolaridade é, nas relações internacionais, a mesma que a alternativa entre ditadura de partido único e pluralismo e a divisão de poderes em um regime nacional.
Os maiores ditadores estão no que costumava ser chamado de "mundo livre". A realidade é que os adversários do Ocidente e seus regimes odiados — a teocracia iraniana, o regime russo com seus aspectos liberais e tradicionalismo eslavo, ou a benevolente "ditadura" chinesa com sua boa governança — são muito mais responsáveis e prudentes em seu comportamento externo.
E, ao contrário dos dias do Movimento dos Países Não Alinhados (MNA) em Bandung (1955), a atração gravitacional do poder econômico da China agora torna essa alternativa uma questão séria, atraindo a maior parte do mundo e permitindo que ela forme um grande polo, o que no Ocidente é percebido como uma ameaça. Diante dessa ameaça, o império está preparado para queimar o mundo para salvar seu trono, nas palavras do comentarista vietnamita Sony Thang. Gaza foi o anúncio, a Ucrânia o teste, o Irã a escalada, mas a Rússia e a China são a gota d'água e o objetivo final.
Vemos exemplos da unidade político-militar do bloco ocidental nas duas guerras por procuração contra a Rússia e o Irã, via Ucrânia e Israel. Os mesmos drones que atacaram bases estratégicas russas em 1º de junho foram usados na sexta-feira, 13, no Irã, para eliminar vinte líderes político-militares de alto escalão, bem como cientistas nucleares.
Em ambos os casos, o apoio militar e financeiro da OTAN (Estados Unidos e União Europeia), juntamente com sua cobertura política, é evidente. A "agressão russa não provocada" e o "direito de Israel de se defender" fazem parte da mesma narrativa. O mesmo pode ser dito da farsa orquestrada. OTimes of Israelexplicou no dia 13 que, ao fingir estar negociando, os Estados Unidos ajudaram o Irã a baixar a guarda para que Israel pudesse realizar seu ataque surpresa.
Essa farsa é da mesma natureza do "processo de Minsk", que Angela Merkel e François Hollande admitiram ser apenas uma comédia para entreter a Rússia e ganhar tempo enquanto a OTAN fortalecia o exército ucraniano. "Permitir que Netanyahu atacasse o Irã enquanto enviados americanos negociavam com Teerã coloca a presidência americana no mesmo nível de credibilidade que Al Capone", afirma David Hearst, editordo Mideast Eye. Quem voltará a confiar nas negociações com os Estados Unidos?
Todos os impérios recorrem à violência quando enfrentam o declínio, mas os Estados Unidos são um caso especial. Não se lembram de guerras em seu próprio território — sua guerra civil já passou —, apenas têm experiência de guerras distantes e fáceis, de rifles contra lanças ou de alta tecnologia contra a escória pré-digital.
Onde não venceram — na Coreia, no Vietnã e nos desastres da guerra contínua dos últimos trinta anos — a catástrofe nunca os atingiu. Esse fato biográfico sobre os Estados Unidos torna seu declínio particularmente perigoso. Assim como Boris Yeltsin na URSS, o presidente americano Donald Trump é um acelerador do declínio do poder ocidental.
Declínio Romano Tardio
Quando testemunhamos o colapso dramático da União Soviética na década de 1990, ocorreu-nos a ideia de que somente o colapso do império ocidental poderia igualar sua intensidade. Estamos no meio disso. Nos Estados Unidos, estamos testemunhando o que parece ser o início de um espetáculo grandioso e perigoso. Diante de nós está um quadro completo da decadência romana tardia. À frente do império, vimos um presidente senil, Joe Biden, auxiliado por assessores de nível interno (os Secretários de Estado e Segurança Interna, Blinken e Sullivan), que foi substituído por um sociopata narcisista.
Poucos meses depois de assumir o cargo, seu colaborador próximo, o homem mais rico do mundo, acusou-o de fazer parte de uma rede de pedofilia cujo organizador — Jeffrey Epstein, com histórico de chantagista do Mossad — cometeusuicídiona prisão. Seu governo está dividido sobre contra quem travar a guerra, os responsáveis estão sendo demitidos e o Secretário de Estado Marco Rubio está assumindo o Conselho de Segurança Nacional, um vasto aparato decapitado cuja liderança é desconhecida.
O presidente defendeu um projeto imobiliário genocida para Gaza. Um dia ele diz uma coisa e no outro, o oposto. Seus maus-tratos comerciais a parceiros e adversários anunciam sérios danos à economia popular de seu país. Sua política de imigração e excessos autocráticos provocam revoltas "contra o rei".
Trump, que se gabava de desafiar o "Estado profundo", sofreu dois atentados durante sua campanha eleitoral e não parece mais capaz de cumprir sua promessa de campanha de não arrastar seu país para novas guerras, o que está destruindo sua base popular. Esse tipo de Nero fez um discurso em Riad, Arábia Saudita, em maio, anunciando uma virada pacífica e não intervencionista no Oriente Médio e, um mês depois, conclama os mais de dez milhões de habitantes de Teerã a evacuarem a cidade e seus líderes à "rendição incondicional"... Ele não sabia nada sobre a Ucrânia quando prometeu acabar com a guerra em 24 horas e agora confirma que não tem ideia do que seja o Irã.
Ignorando o relatório de suas agências de segurança que confirmou em março que o Irã "não está construindo uma arma nuclear e que seu líder supremo não autorizou tal programa, que foi suspenso em 2003", Trump se rendeu à teoria israelense, defendida desde a década de 1990, de que Teerã está "prestes" a adquirir a bomba.
O padrão usado com o Iraque em 2003 está se repetindo. O Irã, que não atacou ninguém e defende há décadas a criação de uma zona desnuclearizada no Oriente Médio, está sendo apresentado como o grande perigo regional com a falsidade das armas de destruição em massa por Israel, o único detentor de arsenais nucleares, químicos e biológicos na região, que atacou todos os seus vizinhos sem exceção e que na mesma semana em que iniciou seu ataque ao Irã, com a colaboração dos Estados Unidos e das potências europeias, tome nota: massacrava moradores de Gaza famintos em pontos de distribuição de alimentos a uma taxa de várias dezenas por dia, bombardeava a Síria e o Líbano, atacava o porto de Hodeidah no Iêmen e sequestrava o barco de Greta Thunberg em águas internacionais quando ela tentava chegar a Gaza.
A Agência Internacional de Energia Atômica, controlada por potências ocidentais hostis e que se recusou a dizer quem estava bombardeando a usina nuclear ucraniana ocupada pela Rússia em Zaporizhia, desempenhou o mesmo papel no Irã, espionando instalações iranianas, assim como os inspetores da ONU fizeram no Iraque em nome dos serviços de inteligência ocidentais.
O império quer fazer com o Irã o que fez com o Iraque, a Síria e a Líbia, de acordo com o conhecido roteiro neocon de setembro de 2001, revelado pelo General Wesley Clark em 2011: destruir sete países em cinco anos: Iraque, Líbano, Síria, Somália, Líbia, Sudão e Irã. Tudo se repete e, ao mesmo tempo, é muito diferente.
A mídia ocidental e oestablishmentpolítico assistiram com simpatia ao "Pearl Harbor" do Irã, sem perceber que ele terminou com a derrota do agressor, como se a agressão contra um país em meio a negociações fosse normal, com a eliminação de todo um alto escalão, incluindo o principal negociador do Irã, Ali Shamkhani, matando dezenas de civis no processo.
Diante de tudo isso, o presidente francês Emmanuel Macron condena o "programa nuclear iraniano" e reafirma "o direito de Israel de se defender e garantir sua segurança". O ministro das Relações Exteriores alemão, Johann Wadephul, foi além, "condenando veementemente" o Irã por "atacar indiscriminadamente o território israelense", antes mesmo de Teerã lançar seus primeiros mísseis de retaliação, até então sem grande impacto.
Por sua vez, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, reiterou "o direito de Israel de se defender", apelando à moderação "de ambos os lados". Mas foi um terceiro alemão, o chanceler Friedrich Merz, quem fez a declaração mais precisa e vergonhosa: "Israel está fazendo o trabalho sujo para todos nós".
O que vai acontecer
O que acontecerá de agora em diante no Irã depende de cinco perguntas para as quais não temos respostas.
Desde que Donald Trump matou o principal comandante militar do Irã, o general Ghazem Soleimani, em janeiro de 2020, a contenção iraniana tem sido extraordinária. Em abril de 2024, Israel lançou um ataque massivo contra a embaixada iraniana em Damasco. O Irã respondeu com um ataque simbólico. Em 19 de maio, Israel matou o presidente iraniano Ebrahim Raisi e seu ministro das Relações Exteriores, Amir Abdallahian. O Irã preferiu encobrir o ataque e apresentá-lo como um acidente de helicóptero.
Nos últimos dois dias de julho de 2024, Israel assassinou o chefe militar do Hezbollah, Fuad Shukr, e o líder do Hamas, Haniyeh, enquanto este último estava hospedado em Teerã. Respostas foram anunciadas, mas o Irã acabou aceitando a oferta do governo Biden, prometendo um cessar-fogo permanente em Gaza se não houvesse retaliação.
Não houve cessar-fogo. Em setembro, Israel começou a bombardear Beirute, declarou uma "linha vermelha" e, nos dias 17 e 18 daquele mês, decapitou a liderança do Hezbollah no Líbano, explodindo dispositivosde buscapessoal . Não houve resposta, então, no dia 27, o líder do Hezbollah, Nasrallah, foi assassinado.
A resposta foi a OperaçãoPromessa Verdadeira 2, que causou danos em Israel, mas nem de longe os danos causados pelo desmantelamento prático do "eixo da resistência". Essa prudente contenção é certamente o que alimentou o atual ataque direto ao Irã. Portanto, a primeira pergunta, cuja resposta desconhecemos, é:
Quantos mísseis o Irã possui?Após os ataques dos últimos seis dias, ele mantém a capacidade ofensiva necessária para causar danos significativos a Israel e tornar sua dissuasão crível? O Irã está disparando cada vez menos mísseis contra o Irã com o passar dos dias. É verdade que quanto mais as defesas antimísseis de Israel se deterioram, mais poderosos os iranianos disparam mísseis? Eles têm mísseis de reserva em caso de envolvimento militar dos EUA?
Segundo:China e Rússia ajudarão o Irã?O Irã ajudou a Rússia na Ucrânia. Agora, a Rússia se beneficiaria da diversificação de ações militares do Ocidente para fora da Ucrânia. A Rússia tem uma relação ambígua com Israel, onde vivem mais de um milhão de ex-cidadãos da URSS. A Rússia enviará baterias antiaéreas de última geração, que o Kremlin até agora negou e das quais Moscou precisa em seu próprio território, especialmente dada a possibilidade de uma segunda frente contra os países da OTAN no Báltico e no norte da Rússia? Quanto à China, ela é a principal receptora do petróleo iraniano. O Irã é um elemento essencial na grande estratégia chinesa de integração eurasiana sob a Nova Rota da Seda. Todos os três países mantêm alianças assinadas. Farão alguma coisa? Se não o fizerem, que respeito merecerão sua aliança, a Organização de Segurança e Cooperação de Xangai, os BRICS, etc.?
Terceiro:O "eixo da resistência" ainda tem força, no Líbano, Iraque e Iêmen,para atacar Israel,por exemplo, com ações do sul do Líbano, aumento do assédio à navegação no Mar Vermelho e possíveis ataques às bases americanas no Golfo?
Quarto:Os Estados Unidos participarão da guerra?Obviamente, já o fazem, mas o farão direta e abertamente, usando suas forças armadas? Em caso afirmativo, como e com que intensidade?
Quinto:Os países do Golfo permitirão que os Estados Unidos usem suas basespara atacar o Irã, sabendo que o Irã os atacará?
Seja como for, é óbvio que o Irã não é o Iraque. O envolvimento direto dos EUA causará um desastre de proporções gigantescas, comparado ao qual o Iraque será brincadeira de criança. O eventual fechamento do Estreito de Ormuz terá sérias repercussões para a economia global e os preços do petróleo. A longo prazo, o suicídio de Israel é uma certeza, mas o suicídio de um Estado colonial e genocida, que também é uma potência nuclear, é extremamente perturbador. Não há nada mais perigoso do que um suicídio fanático.
247 –Em entrevista ao jornalista Leonardo Attuch na TV 247, o economista e administrador Leonardo Loureiro Nunes apresentou os principais argumentos de seu recém-lançado livroDilma contra os donos do PIB(Editora Contracorrente, com prefácio de Luiz Gonzaga Belluzzo), que investiga o papel dos grandes grupos econômicos no golpe parlamentar que resultou no impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016.
Nunes sustenta que a ruptura institucional não se deu por colapso econômico, mas sim pela insatisfação da elite empresarial com políticas públicas que reduziram suas margens de lucro. "Houve uma queda generalizada da taxa de lucro da economia, e é isso que explica a rejeição ao governo Dilma", afirmou. Segundo ele, Dilma foi “derrubada pelos donos do PIB” — os setores oligopolizados da economia que, ao verem seus lucros comprimidos, se aliaram para romper a institucionalidade democrática.A tese central: lucros sob ataque
De acordo com o autor, a explicação para o impeachment deve ser buscada menos nas narrativas de crise ou corrupção, e mais na perda de rentabilidade de setores estratégicos da economia. “O que causou a insatisfação foi a queda nas taxas de lucro. Dilma tentou controlar preços estratégicos — como energia, combustíveis, juros e tarifas de concessões — e isso desagradou profundamente os grandes grupos econômicos”, explica.
Nunes argumenta que esses grupos, que ele chama de “donos do PIB”, não se confundem com a base industrial tradicional representada por federações como a Fiesp. São conglomerados atuando em setores como energia, logística, mineração e bancos, com forte interpenetração entre capital produtivo, rentista e internacional. “Hoje não há mais distinção entre capital nacional e internacional. Tudo está entrelaçado.”
Políticas que desagradam o topo
Entre as iniciativas que teriam despertado a ira do mercado financeiro, Nunes lista:
MP do Setor Elétrico, que visava baixar os preços da energia renovando concessões amortizadas com tarifas menores. “Muitos fundos de investimento têm posição em empresas de energia. Isso afetou diretamente sua rentabilidade.”
Redução dos spreads bancários, por meio do Banco do Brasil e da Caixa, pressionando a margem de lucro do setor financeiro.
Política de modicidade tarifáriaem concessões de infraestrutura, como no PIL (Programa de Investimento em Logística), estabelecendo que vencia o leilão quem oferecesse a menor tarifa.
Controle nos preços dos combustíveise desonerações fiscais, que foram capturadas pelas empresas sem se traduzirem em aumento de investimento ou produção.
Todas essas medidas, segundo o economista, foram tentativas de elevar a competitividade da indústria brasileira, mas acabaram minando o apoio da elite empresarial.
Um projeto burguês sem a burguesia
Para Nunes, há um equívoco histórico recorrente na esquerda brasileira: a crença na existência de uma burguesia nacional desenvolvimentista. “Sou cético em relação à existência de uma burguesia nacional. O Brasil é um país periférico e essa classe empresarial olha apenas para seus interesses imediatos”, afirmou. “O PT tentou fazer um projeto reformista burguês à revelia da burguesia.”
Essa crítica remete à tradição de intelectuais como Florestan Fernandes e Celso Furtado, que analisaram a formação das classes médias e das elites brasileiras como profundamente conservadoras e avessas à mobilidade social ascendente das classes populares.
A classe média e o ressentimento social
Nunes também oferece uma explicação sociológica para o papel da classe média no processo de desestabilização do governo Dilma. “A classe média baixa foi uma das grandes bases do bolsonarismo. O andar de baixo subiu, e ela ficou estagnada. As pessoas são comparativas. E isso gerou ressentimento”, disse. “Programas sociais como o Bolsa Família criaram incômodos em setores que não se viam contemplados por políticas específicas.”
Essa frustração, combinada com o discurso anticorrupção promovido pela mídia e pelo Judiciário, criou um terreno fértil para manifestações e adesão a um projeto autoritário de ruptura institucional.
O legado do golpe e o desafio de Lula
Segundo o autor, o governo de Michel Temer — que sucedeu Dilma após o impeachment — recompôs as taxas de lucro da elite empresarial com medidas regressivas, como a reforma trabalhista, previdenciária e privatizações. “Mesmo com uma economia menos dinâmica, o governo Temer ampliou as margens de lucro.”
Já o presidente Lula, no terceiro mandato, enfrenta restrições herdadas desse processo. “Muito do que foi feito no pós-Dilma foi bem amarrado e impõe limites. A política de preços da Petrobras, por exemplo, engessou a capacidade do governo de atuar”, aponta.
Além disso, Nunes lembra que o Brasil de hoje é outro: polarizado, com instituições abaladas e sob a constante ameaça da extrema direita. “Não dá para esperar os mesmos índices de aprovação de 2010. O governo tenta normalizar a democracia após uma tentativa de golpe de Estado.”
Socialismo na periferia: limites e dilemas
Ao ser questionado sobre uma eventual ruptura socialista, Nunes expressou ceticismo quanto à viabilidade de experiências radicais nos países periféricos. “Não acredito em soluções de ruptura pela periferia do capitalismo. O centro — EUA e Europa — é que teria condições de promover mudanças estruturais.”
Para ele, o desafio da esquerda é formular respostas concretas aos problemas do trabalho, da renda e da desigualdade, sem cair nas armadilhas retóricas da extrema direita, que aponta inimigos fictícios (como imigrantes ou programas sociais), enquanto protege o capital.
Uma obra fundamental
Dilma contra os donos do PIBé resultado de uma tese de doutorado defendida na Universidade Paris 1 – Panthéon-Sorbonne. O livro reúne entrevistas com nomes como Nelson Barbosa, Esther Dweck, Arno Augustin, Luciano Coutinho e outros formuladores da política econômica dos governos do PT. Nunes também ouviu empresários e dirigentes da Fiesp, alguns sob anonimato, que revelaram perplexidade com as consequências políticas do golpe de 2016.
A obra é um marco na análise econômica e política do impeachment, conectando os interesses do topo da pirâmide econômica com a erosão da democracia brasileira. Como disse o próprio autor: “O vice-presidente transformou o impeachment numa eleição indireta para presidente. Se isso não é golpe, não sei o que é.”
Disponível pela Editora Contracorrente, o livro se impõe como leitura essencial para compreender o passado recente e os desafios presentes da democracia no Brasil
Artigo revela como o capitalismo do século XXI se esconde por trás de interfaces suaves — e como planeja dominar o futuro sem que se perceba.
O Código do Capital: a arquitetura invisível da dominação algorítmica global
por Reynaldo Aragon
Por trás do discurso da inovação e das promessas da inteligência artificial, um pequeno grupo de gestoras financeiras decide silenciosamente o destino das plataformas, dos algoritmos, da política e da própria democracia. Este artigo revela como o capitalismo do século XXI se esconde por trás de interfaces suaves — e como ele planeja dominar o futuro sem que você perceba.
A política das sombras.
No centro do debate contemporâneo sobre o poder das plataformas digitais, os holofotes se voltam quase sempre para nomes como Elon Musk, Mark Zuckerberg ou Sundar Pichai. Mas o que permanece nas sombras — e justamente por isso mais poderoso — é a arquitetura invisível que os sustenta. A pergunta que deveria guiar qualquer análise séria sobre o presente não é apenas quem comanda as Big Techs?, mas sim: quem financia, dirige e condiciona estruturalmente o que elas podem ou não fazer?
As respostas conduzem a um núcleo silencioso, transnacional, discreto e tecnicamente preciso: as grandes gestoras de ativos financeiros. Empresas como BlackRock, Vanguard, State Street, Fidelity e Amundi não apenas detêm participações significativas nas maiores plataformas tecnológicas do planeta. Elas impõem diretrizes, definem limites e orientam o desenvolvimento técnico, cultural e político de uma nova ordem mundial gerida por algoritmos e guiada por interesses financeiros.
Essa elite atua por meio do que Peter Phillips chamou de “Titãs do Capital”: um grupo de 117 diretores executivos que controlam mais de 50 trilhões de dólares em ativos globais, distribuídos em todos os setores estratégicos da economia, do armamento à vigilância digital, da indústria petrolífera à infraestrutura de inteligência artificial. Eles são, no sentido mais concreto da palavra, os donos do mundo. Mas não ocupam palácios nem cargos de governo. Preferem as salas de conselho, os comitês de auditoria, os fóruns técnicos internacionais e os canais silenciosos do lobbying financeiro.
Este artigo parte de uma premissa simples e radical: o atual estágio do capitalismo não é apenas uma fase avançada da financeirização, mas uma mutação estrutural do poder global. Trata-se de um tecnocapitalismo algorítmico, no qual os códigos que regem o comportamento das plataformas são subordinados à lógica dos ativos financeiros, e não à ética pública, ao interesse coletivo ou à soberania dos povos. O algoritmo, neste novo regime, não é apenas uma ferramenta: é um operador político a serviço do capital.
A seguir, desvendaremos como as gestoras de ativos se infiltraram no núcleo estratégico das Big Techs e como moldam, desde a base, os rumos do mundo digital. Vamos demonstrar como operam na técnica, na política, na cultura e na ideologia. E, por fim, defenderemos que qualquer projeto progressista do século XXI precisa enfrentar esse poder difuso, opaco e quase invisível, sob pena de lutar contra um inimigo que já modulou até os termos da resistência.
Quem são os “Titãs do Capital”?
Por trás da fachada pública das grandes corporações digitais, existe uma camada subterrânea de poder cuja existência ainda é ignorada pela maioria da população, e muitas vezes, até por analistas experientes. Peter Phillips, no livro Titans of Capital, nomeia esse poder: 117 executivos de elite que comandam as 10 maiores empresas de gestão de ativos do planeta. Eles são o centro da engrenagem do capitalismo global contemporâneo, os curadores invisíveis do presente e arquitetos do futuro.
Essas gestoras (BlackRock, Vanguard, State Street, Fidelity, JPMorgan, Capital Group, UBS, Amundi, Allianz e PIMCO) operam como concentradoras de capital pulverizado, reunindo bilhões de dólares de fundos de pensão, governos, bancos, fundos soberanos e indivíduos, e canalizando esses recursos para os setores que definem os rumos da humanidade. Elas não produzem chips, não desenvolvem redes sociais, não criam ferramentas de IA. Mas decidem quem fará isso, como fará e sob quais condições.
Juntas, essas dez entidades controlam mais de US$ 50 trilhões em ativos, o equivalente a quase metade do PIB mundial. Isso lhes confere o poder de decidir o destino de empresas inteiras, de vetar fusões, forçar mudanças em conselhos, reorientar investimentos e bloquear iniciativas que ameacem sua rentabilidade. O controle não é exercido por decreto, mas por “governança corporativa”: o voto por procuração em assembleias, a imposição de diretrizes ESG adaptadas ao capital, a pressão por maximização de dividendos, a seleção de executivos alinhados aos interesses dos fundos.
O mais impressionante é a conexão cruzada entre esses executivos. Eles se sentam simultaneamente em conselhos de grandes corporações, bancos, universidades, think tanks e instituições estatais, formando uma rede global de influência silenciosa e extremamente eficaz. Estão no Council on Foreign Relations, no Fórum Econômico Mundial, no Trilateral Commission, nos comitês de política monetária e nos bastidores da regulamentação internacional. São o “Estado-maior” do capital, não eleitos por ninguém, mas com poder para fazer ou desfazer governos inteiros, como se viu no colapso da Grécia, no impeachment de Dilma Rousseff ou nas políticas fiscais da América Latina nos anos 2000 e 2010.
Importa compreender que essas gestoras não são neutras nem passivas. Elas agem, deliberadamente, para preservar uma ordem de acumulação baseada na financeirização, na desregulação dos fluxos de capital e na naturalização de um mundo governado por algoritmos e plataformas corporativas. A cada voto emitido em nome de milhares de acionistas pulverizados, reforçam sua legitimidade técnica enquanto perpetuam a subordinação estrutural dos povos ao rentismo global. Esses são os Titãs do Capital. Não precisam dar entrevistas nem vencer eleições. Eles já venceram quando ninguém percebeu que eles existiam.
A captura das Big Techs pelas gestoras.
Se o século XX foi marcado por guerras geopolíticas travadas entre Estados-nação, o século XXI assiste à consolidação de outro tipo de guerra silenciosa, invisível e profundamente eficaz: a captura privada das infraestruturas digitais que organizam a vida social, econômica, política e afetiva do planeta. No centro desse processo estão as gestoras de ativos que, longe de serem meras investidoras, se tornaram operadoras centrais do novo regime de governança algorítmica global.
A dinâmica é simples e brutal: as gestoras adquirem participações acionárias significativas nas maiores empresas de tecnologia do planeta, Google (Alphabet), Microsoft, Apple, Amazon, Meta, Nvidia, Oracle, Palantir, entre outras. Não se trata de pequenas fatias especulativas. Em 2024, por exemplo, a BlackRock era o maior ou segundo maior acionista das cinco maiores Big Techs do mundo. Juntas, BlackRock, Vanguard e State Street controlavam cerca de 20% a 30% das ações em circulação das empresas do S&P 500, o que lhes conferia poder efetivo de veto, influência estratégica em conselhos e capacidade de definir prioridades internas.
Isso significa que, ainda que Mark Zuckerberg ou Elon Musk sejam as faces públicas de suas plataformas, as decisões centrais sobre algoritmos, moderação de conteúdo, inovação tecnológica e investimentos em inteligência artificial passam, em última instância, pelo crivo dessas gestoras. São elas que decidem se a IA da Microsoft deve priorizar aplicações civis ou militares, se a Meta deve continuar investindo em realidades imersivas, ou se a Alphabet deve seguir adquirindo startups de biotecnologia e automação da linguagem.
Um exemplo ilustrativo é o da aliança estratégica entre a Microsoft e a OpenAI, cujo financiamento inicial e reestruturações foram aprovados com o beneplácito dos fundos institucionais que participam do board corporativo da Microsoft, entre eles, Vanguard e BlackRock. As decisões sobre o rumo da IA generativa, os modelos de linguagem como o ChatGPT, a forma como eles são treinados, auditados (ou não) e implementados, estão subordinadas ao cálculo de retorno sobre investimento definido por essas entidades.
A captura vai além da posse acionária. As gestoras exercem governança ativa, o que significa que:
participam das assembleias com poder de voto relevante;
pressionam publicamente por mudanças de estratégia quando os lucros estão em risco;
impõem critérios de compliance “aceitáveis ao mercado”, mesmo quando isso entra em choque com valores éticos ou direitos fundamentais.
Elas se posicionam inclusive em temas sensíveis como moderação de discurso de ódio, políticas de desinformação, contratos com agências de defesa e uso de dados pessoais. Sua lógica não é a da transparência democrática ou do interesse público — mas sim a da maximização de valor para os acionistas institucionais. Assim, a infraestrutura algorítmica da sociedade passa a ser moldada não pela cidadania, mas pela engenharia financeira.
As Big Techs, nesse contexto, são mais do que empresas: são plataformas-operadoras de um projeto de dominação técnica, cognitiva e econômica, cujo back-end de comando está em Nova York, Londres e Frankfurt, não em Brasília, Buenos Aires ou Johannesburgo.
A governança da vida digital, portanto, não é um produto do Estado de Direito. É uma extensão da vontade do capital sob forma algorítmica, cujo núcleo decisório atende pelo nome de “asset under management”.
O lobby das gestoras contra a regulação.
Se as grandes gestoras de ativos já ocupam os conselhos de administração das maiores empresas de tecnologia do mundo, é no plano da política pública que elas revelam sua estratégia mais refinada: impedir que qualquer forma de regulação democrática ameace seus interesses estruturais. O lobby não é feito apenas por CEOs de Big Techs ou por associações empresariais do setor digital. Ele é articulado por uma elite financeira global que atua nos bastidores da política institucional, moldando marcos legais, vetando legislações e promovendo um arcabouço normativo funcional ao capital.
Na União Europeia, por exemplo, a tramitação da Digital Markets Act (DMA) e da AI Act foi alvo de intensa pressão por parte de fundos de investimento e conglomerados financeiros. A Associação de Mercados Financeiros da Europa (AFME), financiada por bancos e gestoras, atuou diretamente para suavizar os termos da legislação que buscava limitar o monopólio algorítmico das plataformas. Na prática, as gestoras financiam tanto as Big Techs quanto os lobistas que operam para manter as plataformas sob seu domínio irrestrito.
Nos Estados Unidos, o cenário é ainda mais grave. A SEC (Securities and Exchange Commission), agência reguladora do mercado financeiro, vem sendo constantemente pressionada por representantes de Wall Street, entre eles, BlackRock e Vanguard, para bloquear qualquer medida que exija transparência nos algoritmos de IA utilizados em decisões de crédito, vigilância, ou moderação de conteúdo. Ao mesmo tempo, as mesmas empresas apoiam iniciativas como o Center for AI and Digital Policy, cujo discurso aparente é ético, mas cuja agenda prática é garantir um modelo de autorregulação centrado no interesse das corporações.
Na América Latina, esse processo assume formas ainda mais brutais. As gestoras atuam em consórcios de consultoria e advocacia, pressionando parlamentos e governos para flexibilizar leis de proteção de dados, impedir a criação de instâncias públicas de auditoria algorítmica e influenciar os termos dos projetos de lei sobre regulação de IA, como vem ocorrendo no Brasil. O caso mais visível foi a reação coordenada contra o PL das Fake News, que tentava responsabilizar plataformas por conteúdos nocivos e impulsionamentos ilegais. A campanha contra o PL foi financiada indiretamente por redes de fundações e escritórios com vínculos diretos com fundos de investimento e plataformas digitais.
O modelo de autorregulação que essas gestoras defendem não passa de um eufemismo técnico para a blindagem da sua autoridade privada sobre a arquitetura digital global. Seu discurso é higienizado com palavras como “inovação”, “liberdade de expressão”, “livre mercado” e “eficiência técnica”, mas sua prática é de sabotagem ativa de qualquer tentativa de colocar a IA e os algoritmos sob controle público e democrático.
Essa lógica não opera apenas na política institucional. Ela invade universidades, laboratórios de pesquisa, editorias de jornalismo, redes de think tanks e consultorias estratégicas. Com isso, as gestoras não apenas dominam o capital e a tecnologia — dominam também o discurso sobre o que é aceitável pensar, propor ou implementar. Trata-se de um regime de hegemonia tecnocapitalista, onde o futuro é desenhado por cálculos de rentabilidade, e não por projetos de justiça social, redistribuição ou sustentabilidade real.
Enquanto isso, estados são rebaixados a entes regulados, e as democracias, ao invés de controlar o capital, passam a ser controladas por ele — com o verniz da inovação e a aura da inevitabilidade tecnológica como escudo ideológico.
A nova arquitetura da dominação: técnica, política, cultura e ideologia.
A hegemonia das gestoras de ativos sobre as plataformas digitais não é apenas uma questão de governança empresarial. Ela representa uma mutação estrutural na forma como o poder opera no século XXI. Trata-se da consolidação de uma arquitetura de dominação sistêmica, que atravessa a técnica, a política, a cultura e a ideologia. Não estamos apenas diante de uma disputa por mercados, mas da instauração de um regime de comando algorítmico-financeiro global, onde a dominação se exerce de forma difusa, automatizada e profundamente naturalizada.
Técnica: a codificação do capital
A técnica, outrora campo da emancipação humana e do progresso coletivo, tornou-se instrumento de rentabilização automatizada do mundo. Os algoritmos que organizam os fluxos de informação, consumo, interação e desejo são construídos sob parâmetros definidos pelas gestoras: eficiência, escalabilidade, vigilância preditiva e retorno de investimento. Cada linha de código é, nesse contexto, uma expressão cifrada da lógica do capital.
O que deveria ser infraestrutura pública — como os sistemas de IA, os grandes modelos de linguagem, os buscadores, as redes sociais — tornou-se propriedade privada submetida à lógica dos ativos financeiros. A técnica, hoje, não é neutra nem autônoma. Ela é curada, modelada e distribuída sob os critérios impostos por gestores financeiros que sequer compreendem sua complexidade tecnológica, mas sabem perfeitamente onde ela deve chegar: no lucro trimestral e na manutenção da ordem global vigente.
Política: o rebaixamento do Estado.
A consequência inevitável dessa captura técnica é o rebaixamento do Estado a um agente regulado, e não mais regulador. O poder público, limitado por amarras fiscais, dívidas impagáveis e chantagens de investidores, é progressivamente excluído das decisões sobre o futuro digital de seus próprios cidadãos. Projetos de IA pública, de plataformas soberanas, de educação algorítmica crítica — todos naufragam sob o peso da “responsabilidade fiscal” e do “realismo de mercado”.
As decisões que afetam diretamente a democracia — como o que é permitido circular nas redes, o que será impulsionado, o que será ocultado — passam a ser tomadas por conselhos privados, alinhados com os interesses dos grandes fundos. O poder político, nesse modelo, é substituído por um governamentalismo corporativo descentralizado, onde o algoritmo se torna norma e o compliance se torna Constituição.
Cultura: a modulação da subjetividade.
No plano da cultura, a dominação não se dá pela repressão, mas pela modulação de afetos, desejos e percepções. As plataformas, sob controle dos fundos, operam como máquinas de curadoria da experiência. Elas organizam o que vemos, como vemos, o que sentimos, com quem nos conectamos, o que lemos, quem ouvimos. As estruturas algorítmicas, formatadas para gerar engajamento e lucro, precarizam o tempo, colonizam a atenção e capturam a linguagem.
O resultado é uma cultura marcada pela ansiedade, pelo imediatismo, pela dopamina da recompensa digital, pela tribalização afetiva e pelo isolamento cognitivo. A nova ideologia não precisa convencer — ela basta. O algoritmo faz o trabalho ideológico sem precisar apelar à coerência. Ele oferece conforto, confirmação e pertencimento, enquanto reforça narrativas compatíveis com os valores do mercado.
Ideologia: o escudo moral da financeirização.
Para sustentar essa nova ordem, o sistema constrói um vocabulário de verniz moral: ESG, inovação, empreendedorismo, liberdade de expressão, transformação digital. São expressões que operam como significantes vazios, preenchidos conforme a necessidade do capital. A financeirização se disfarça de modernidade; a captura se apresenta como parceria público-privada; a dominação aparece como liberdade.
A tecnocracia do capital financeiro não se impõe pela violência direta, mas pela naturalização de sua inevitabilidade. Não há alternativas — apenas soluções “técnicas”. A política é substituída pela gestão. A democracia vira uma questão de design institucional. A dominação não precisa mais se justificar: ela se automatiza, se oculta no código, se dissolve na interface.
Com isso, estabelecemos que estamos diante de um novo tipo de poder — não apenas mais concentrado, mas mais opaco, mais inteligente, mais aderente à vida cotidiana. Um poder que atua no nível da infraestrutura, do código, da norma e do afeto. Um poder que não domina apenas corpos e territórios, mas mentes e futuros.
Sociedade 4.0 como campo de experimentação e alienação.
O mundo sob domínio das gestoras de ativos e das Big Techs não é apenas um sistema eficiente de administração de lucros. Ele é, sobretudo, um laboratório global de experimentação sobre a vida humana, onde o social é convertido em dado, o comportamento em métrica, o desejo em padrão previsível — e o sujeito, em consumidor perpétuo. A chamada Sociedade 4.0, que muitos celebram como a era da disrupção tecnológica, é, na prática, o campo de teste do tecnocapitalismo financeiro em sua forma mais avançada.
A subjetividade como infraestrutura explorável.
Nas redes sociais, em apps de entrega, em plataformas de streaming, no metaverso e nos modelos de IA generativa, a vida cotidiana é transformada em fluxo contínuo de dados. Tudo é registrado, analisado, interpretado e reconfigurado para retroalimentar os sistemas que, por sua vez, nos modulam de volta. Trata-se de uma alienação de novo tipo: não mais aquela em que o trabalhador se separa do produto de seu trabalho, como no século XIX, mas aquela em que o sujeito se separa de si mesmo — e se vê apenas como estatística, perfil ou KPI.
O trabalhador da economia de plataforma não apenas vende sua força de trabalho. Ele vende sua disponibilidade constante, sua atenção, sua localização, seu tempo morto, sua linguagem e sua imagem. O usuário, por sua vez, ao aceitar os termos de uso, consente com a extração daquilo que tem de mais íntimo: padrões de pensamento, ritmo de sono, preferências inconscientes, conexões emocionais. A subjetividade se torna infraestrutura explorável, e a alienação se torna natural, divertida e interativa.
O capitalismo como sistema de captura cognitiva.
Não se trata apenas de controle — trata-se de captura cognitiva e emocional em tempo real. As ferramentas de recomendação, personalização, ranqueamento e predição reorganizam o que podemos pensar, desejar e imaginar. Essa captura não é violenta, mas sedutora. Não é imposta, mas consentida. E não depende mais de ideologia tradicional: ela opera por design, por arquitetura informacional, por UX/UI, por gamificação da vida.
Como resultado, o mundo aparece aos sujeitos não como estrutura histórica, mas como interface — fluida, responsiva, moldável. A crítica se torna ruído, e o conflito se torna bug. A política é substituída por engajamento. O debate vira polêmica. O dissenso vira dissonância cognitiva. A forma social do capitalismo digital é a forma do like.
O experimento invisível: corpos, algoritmos e controle.
O que está em curso é um experimento civilizacional conduzido por conglomerados privados, com chancela das gestoras. Não há consentimento informado, nem garantias democráticas. O campo de testes somos nós. Cada scroll, cada clique, cada hesitação é contabilizada. Cada emoção, monitorada. Cada comportamento, modelado.
Em países do Sul Global — como o Brasil — essa experimentação adquire contornos ainda mais perversos. Plataformas são testadas em contextos de desigualdade estrutural, racismo algorítmico, ausência de regulação e hiperprecarização do trabalho. O que se naturaliza aqui vira padrão global amanhã. Somos a zona cinzenta da inovação, o corpo-território da dominação inteligente.
A financeirização das plataformas, nesse cenário, não é apenas um problema econômico. É uma questão de soberania ontológica. O que está em disputa é o que somos, o que podemos ser, o que nos constitui como humanos num mundo de dados, metas e interfaces.
No laboratório do capital algorítmico, a alienação não é a exceção — é o método. A dominação não é percebida — é incorporada. E a resistência, para ser possível, precisará começar com a reconquista da consciência sobre o que está sendo feito conosco, sem que saibamos, enquanto clicamos, deslizamos e reagimos.
A crítica como ato de soberania.
Diante de um sistema tão sofisticado de dominação — onde o poder financeiro captura a técnica, governa a política, modula a cultura e silencia a ideologia — resta perguntar: como resistir a algo que já pensa por nós, que já fala por nós, que já sonha por nós? A resposta, ainda que árdua, começa com o que Antonio Gramsci chamou de “pessimismo da razão e otimismo da vontade”: é preciso recuperar a crítica como ferramenta de soberania.
A crítica aqui não é um exercício acadêmico ou retórico. Ela é um ato radical de desnaturalização, de desmontagem do discurso técnico que se vende como neutro, do algoritmo que se apresenta como inevitável, da inovação que se mascara como destino. Como ensinou Lukács, a alienação só se desfaz quando o sujeito se reconhece como sujeito histórico, capaz de compreender a totalidade das relações que o constituem.
E nesse esforço, é indispensável politizar a técnica. A IA não é neutra. A arquitetura de uma plataforma não é neutra. Os filtros, os sistemas de recomendação, os parâmetros de moderação, os contratos de trabalho, as APIs, os datasets — tudo é político. Cada decisão técnica carrega uma disputa de classe, uma correlação de forças, uma concepção de mundo.
Por isso, propor uma regulação das plataformas e da IA que seja apenas “ética” ou “responsável” não basta. Precisamos de um projeto político de soberania digital, baseado em:
transparência radical dos algoritmos e das cadeias de comando corporativas;
auditoria pública, com participação cidadã e supervisão acadêmica;
plataformas públicas interoperáveis, sem fins lucrativos;
ruptura com a financeirização das infraestruturas informacionais;
leis antitruste e tributação real dos conglomerados tecnológicos e fundos de investimento;
investimento massivo em educação crítica, ciência pública e infraestrutura estatal de dados e inteligência.
Trata-se, portanto, de recuperar o poder político sobre o que hoje é comandado pelo capital financeiro sem rosto. De reverter o atual quadro onde a democracia é apenas uma casca institucional, enquanto a realidade é governada por interfaces controladas por quem jamais foi eleito — os mesmos que, como bem lembrou Peter Phillips, sentam-se nos conselhos da Amazon, da Raytheon e do Fórum Econômico Mundial ao mesmo tempo.
Romper com a hegemonia das gestoras de ativos sobre a técnica, a linguagem e o desejo não é um detalhe — é a condição para qualquer projeto emancipatório no século XXI.
Não haverá justiça social se não houver justiça algorítmica. Não haverá democracia se os códigos que nos governam forem escritos por e para a rentabilidade dos fundos. Essa crítica é, pois, um ato inaugural de insubmissão. É ela que abre o caminho para a reconstrução do comum. É ela que desafia a crença na inevitabilidade tecnológica. É ela que nos devolve o direito de hesitar — e, com isso, o direito de lutar.
Conclusão – Desmascarar os donos do algoritmo.
Vivemos sob o domínio de um poder sem rosto, que não envia tanques às ruas nem censura jornais, mas comanda o mundo por meio de planilhas, algoritmos, decisões de concelho e relatórios trimestrais. Este poder não veste farda nem ocupa tribunas — ele veste terno, fala em nome da racionalidade dos mercados e opera por trás dos códigos que definem o que é possível ver, dizer, sentir e pensar. Seu nome, muitas vezes ignorado, é gestora de ativos.
Enquanto nos distraímos com os delírios messiânicos de bilionários digitais ou com as batalhas teatrais da política institucional, as gestoras como BlackRock, Vanguard, State Street e seus pares constroem, silenciosamente, as fundações do que será o mundo nos próximos cinquenta anos. E o fazem a partir de um projeto de dominação técnica, política e afetiva que, para além de explorar, busca reorganizar o próprio tecido da realidade em nome da acumulação de capital.
Desmascarar esse poder é o primeiro passo para enfrentá-lo. É preciso nomear os donos do algoritmo, os engenheiros da alienação, os gestores da desigualdade digital. É preciso romper com a fantasia de neutralidade técnica e com a farsa da autorregulação, e reconhecer que a disputa pelo futuro é, antes de tudo, uma disputa pelo comando da técnica e pela soberania do comum.
Num mundo onde a política é hackeada por modelos de linguagem, onde a cultura é modulada por métricas de engajamento, e onde o trabalho é precarizado por plataformas que respondem a fundos de investimento, a resistência começa com a recusa em aceitar o algoritmo como destino.
A democracia que se quer viva no século XXI terá que enfrentar não apenas o autoritarismo tradicional, mas o totalitarismo financeiro codificado, o domínio das infraestruturas por agentes invisíveis, a colonialidade do dado, a engenharia do comportamento e a naturalização da alienação. A tarefa é imensa — mas não há emancipação possível que não a enfrente.
Porque no fim, a liberdade não será um produto da inteligência artificial. Será sempre o resultado da consciência crítica organizada contra a dominação. E para que essa consciência se torne prática histórica, o primeiro passo é esse: revelar quem são, onde estão e como operam os verdadeiros donos do mundo digital.
Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global.