sábado, 16 de março de 2013
Marx e a crise: os fantasmas, agora, são eles Marx
por Mauro Luís Iasi [*]
"Marx, hoje, volta a rondar a Europa, os EUA, a Ásia, nossa América
Latina. Não somos mais um mero espectro. Somos cada vez mais de carne,
osso, sangue e sonhos, enquanto eles se transformam a cada dia em
fantasmas."
A atual crise do capitalismo mundial, além das graves consequências que
traz para os trabalhadores, acabou por propiciar um efeito direto no
debate teórico e acadêmico: uma retomada das ideias de Marx. Por que isso
ocorre? Que tipo de previsão foi realizada por Marx que o faz tão maldito,
perseguido e tão renitente em nascer e renascer cada vez que o julgam
morto em definitivo?
Passamos, nós marxistas, pelas décadas de 1980 e 1990 resistindo no
universo acadêmico como se fôssemos dinossauros anacrônicos, insistindo em
teses que desmoronam diante das "evidências" pós-modernas, que afirmavam o
fim da validade da teoria do valor, o fim da centralidade do trabalho, das
classes e, por consequência, das formas organizativas e dos projetos
políticos próprios da classe trabalhadora.
Karl Offe [2] chegou a afirmar que, depois das ideias de Touraine,
Foucault e Gorz, o pensamento marxista não teria mais muita
"respeitabilidade cientítico-social". O próprio Keynes, que alguns se
preparam para resgatar como balsamo benígno contra os males da
desregulação, sobre O Capital de Karl Marx decretou:
"Como posso aceitar uma doutrina que estabelece como bíblia, acima e além
de qualquer crítica, um manual econômico obsoleto que reconheço não só
como científicamente errôneo, mas também sem interesse ou aplicação para o
mundo moderno?" [3]
Logo na sequência do mesmo texto, Keynes confirmará sua postura
"científica" ao declarar preferir a burguesia que "apesar de suas falhas,
representa a prosperidade" e certamente leva as "sementes de todo avanço
humano", criticando aqueles que "preferem a lama ao peixe" e "exaltam o
proletariado rude" contra a burguesia.
Parece que a burguesia continua, em sua incansável rota em direção ao
avanço humano, cometendo "algumas falhas", que ameaçam a humanidade para
garantir o avanço do capital. O proletariado rude, imerso na lama na qual
tem que viver, mais uma vez tenta compreender a natureza da vaga que
ciclicamente o afoga e, mais uma vez, o velho Karl Marx se levanta de seu
descanso no cemitério de Londres para assombrar os respeitáveis senhores
da ciência.
Qual seria o elemento teórico que encontramos em O Capital que permite que
Marx seja ainda tão contemporâneo? Primeiro, poderíamos dizer que Marx
era, de certa forma, mais anacrônico em sua época do que agora. Como pensa
o capital como um conceito, um movimento do real que dialeticamente
transita através de suas formas e, sendo histórico, nasceu, se desenvolveu
e um dia irá ser superado, Marx projeta, pela análise precisa do ser do
capital, aquilo que denomina de modo de produção especificamente
capitalista, ou seja, um mundo subsumido inteiramente ao metabolismo do
capital, no qual reina a subordinação real do trabalho ao capital, no qual
a mercadoria e o dinheiro são realidades universais, subordinando o valor
de uso ao valor de troca.
Ao projetar o capital maduro e completo é que Marx pode avaliar o processo
possível de sua superação. Um procedimento que os antigos, antes que os
pós-modernos convencessem o mundo acadêmico a aderir a um novo
agnosticismo, chamavam de ciência. Ora, este capital maduro estava longe
de corresponder à realidade de meados do século XIX; no entanto, para
desespero da respeitável intelligentsia, o capitalismo contemporâneo se
parece muito mais com a previsão de Marx do que com a projeção mítica
anunciada pelos arautos do liberalismo e da economia política.
Apesar de autores como Boaventura de Souza Santos afirmarem que,
considerando os três gigantes clássicos do pensamento social (Marx,
Durkheim e Weber), Marx teria sido entre eles o que "errou de forma mais
espetacular" [4] . Mas o desfecho do mundo burguês no inicio do século XXI
se caracteriza inequivocamente por uma constatação: o mito liberal morreu!
Qual é a essência do mito liberal e como Marx se contrapôs a ele? O
fundamento do mito liberal pode ser resumido da seguinte maneira: o
capitalismo é um sistema virtuoso, pois permite que cada um, buscando seu
próprio interesse egoísta, contribua para o estabelecimento do bem comum.
Dessa maneira, é o único que pode articular de maneira eficiente os
valores do indivíduo, da liberdade, da propriedade e da igualdade. O
capitalista busca lucro, mas para obtê-lo produz mercadorias e para tanto
gera emprego. O trabalhador quer pagar suas contas e viver e por isso
vende sua força de trabalho. Com seu salário compra as mercadorias
oferecidas pelos capitalistas e assim se fecha o ciclo. O burguês tem seu
lucro, o trabalhador seu salário e a sociedade cada vez mais mercadorias
com que satisfazer suas necessidades.
O sistema capitalista seria, ainda, virtuoso não apenas pelo equilíbrio
entre interesses individuais egoístas e interesse geral, mas por sua
dinâmica: quanto mais o capital produz mercadorias, mais contrataria, mais
salários distribuídos intensificariam o consumo, que levaria a nova
produção, mais contratações e novos salários que induziriam ao aumento do
consumo e assim por diante, da melhor forma possível e no melhor dos
mundos.
Recentemente, o presidente Lula conjurou o mito com todas suas letras ao
afirmar que diante da crise os trabalhadores em vez de pedir aumento
deveriam fazer com que suas empresas produzissem mais, para aquecer o
Mercado, atender as necessidades do mercado consumidor e daí garantir, não
apenas empregos como a possibilidade futura de melhores salários.
Apesar da fé consagrada de muitos ao mito, Marx escreveu O Capital para
comprovar a falácia deste argumento central do pensamento burguês. Podemos
resumir desta forma as principais conclusões do pensador alemão para
contrapor uma visão científica à ideologia liberal: a) quanto mais cresce
a concorrência entre os capitalistas, menor é a livre concorrência e maior
é a tendência ao monopólio; b) nas condições de uma concorrência entre
monopólios, os capitalistas tendem sempre a investir mais em capital
constante (máquinas, instalações, novas matérias primas, etc) para
aumentar a produtividade do trabalho, do que em capital variável (a compra
da força de trabalho) alterando drasticamente a composição orgânica do
capital em favor do trabalho morto; c) o resultado aparentemente paradoxal
desse processo é uma tendência à queda na taxa de lucro, ou seja, quanto
mais o capital cresce, maior é a produtividade do trabalho pela aplicação
consciente da técnica e da ciência ao processo de trabalho, quanto mais o
capital se torna monopolista e mundial, menor é a taxa de lucro.
Na verdade, a tautologia liberal afirma que quanto mais o capital cresce,
mais ele cresce. O que Marx anunciou pela dialética do capital,
compreendido pela minuciosa análise que se nega a permanecer na superfície
aparente dos fenômenos, é que quanto mais o capital cresce, mais ele
produz a crise que é própria à sua natureza, ou seja, de ser valor em
constante processo de valorização, ou seja, uma crise de superacumulação
que se combina de forma explosiva com manifestações de superprodução,
subconsumo e queda tendencial da taxa de lucro.
O fato desconcertante para os adeptos dos planos de aceleração do
crescimento, ou da irracionalidade exuberante como batizou Greenspan
(ex-presidente do Banco Central norte-americano), é que o que causa a
crise não é a carência, mas a abundância, a pletora. Um raciocínio típico
de Marx, isto é, não argumenta com o adversário teórico pela negação de
sua tese, mas pela suposição de sua plena realização. No caso concreto de
nossa análise, afirma que a dinâmica do capital leva à aparente
confirmação do mito liberal, levando a sociedade a uma espiral
irresistível de produção, consumo e reinvestimento; no entanto este
reinvestimento sempre se dá, pela própria concorrência, seja livre ou
monopólica, alterando a composição orgânica em favor do capital constante
e, portanto, alimentando a queda tendencial da taxa de lucro.
No momento agudo deste processo, o capital realizado ao final do ciclo, e
que deveria voltar ao início como novo capital inicial, encontra todo o
metabolismo do capital saturado de investimentos, muitos meios de produção
instalados, muitos trabalhadores empregados, muitas mercadorias
produzidas, e tudo isso com taxas de lucro menores. Em momentos normais, o
capital migra para outra área, seja para produzir outro tipo de
mercadoria, seja para outra região em busca de elementos que possam
baratear seus custos com força de trabalho, matérias primas ou outros
elementos do capital constante. No entanto, nas épocas que antecedem às
crises, considerando o capital total, é como se o capital não encontrasse
onde aportar e começa a parar.
Como o capital é, antes de qualquer coisa, movimento do valor em constante
processo de valorização, sua crise ocorre quando este movimento se
paralisa em algum ponto do ciclo do capital: como dinheiro que não
consegue virar crédito, como capacidade instalada e ociosa, como força de
trabalho contratada e impedida de trabalhar, como mercadoria produzida e
que não encontra o consumo na proporção de sua oferta, ou ainda pior, como
consumo realizado que alimenta a fogueira da superacumulação.
Para que possamos entender o desfecho da crise e, principalmente, os
efeitos sobre a classe trabalhadora, é necessário recorrer a um raciocínio
essencial que Marx desenvolve ao tratar de sua tese sobre a queda
tendencial da taxa de lucro no Livro III de O Capital: as
contratendências.
Marx precisava defender sua tese em um momento no qual o mito liberal
esbanjava saúde. A primeira grande crise do capital, entre os anos 1870 e
1880, ofereceu para o autor os elementos centrais de sua afirmação. No
entanto, o capital estava destinado a sair dessa crise e de outras. É
preciso não confundir a teoria de Marx sobre a crise com qualquer
afirmação messiânica sobre uma crise final catastrófica que levaria por si
mesma ao fim do capitalismo [5] . Para o autor, o capital desenvolveria
elementos contra-tendenciais que fariam da queda na taxa de lucro uma
tendência e das crises uma realidade cíclica, ou seja, em outras palavras,
não se trata de uma linha descendente que culmina no fim do poço, mas de
um movimento de crescimento, auge, crise e retomada até novo ápice que
leva a uma nova crise.
As chamadas contratendências [6] seriam todas as ações empreendidas pelo
capital no sentido de se contrapor à queda na taxa de lucro. Podemos
resumi-las da seguinte maneira: a) aumento do grau de exploração da classe
trabalhadora, seja pelo aumento da jornada de trabalho, seja pela
intensificação do trabalho; b) redução dos salários; c) redução dos preços
dos elementos do capital constante, tais como buscar matérias-primas mais
baratas, máquinas mais eficientes, subsídios para insumos e serviços
essenciais como aço, mineração, energia, armazenamento, transporte e
outros; d) formação de uma superpopulação relativa, ou seja, reunir um
contingente de força de trabalho muito além das necessidades do capital e
mesmo além do exército industrial de reserva como forma de pressionar o
valor da força de trabalho para baixo; e) ampliação e abertura de mercado
externo como forma não apenas de desovar o excedente produzido, como de
encontrar fontes de matéria prima e recursos abundantes, barateando seus
custos; d) o aumento do capital em ações, isto é, buscando compensar a
queda na taxa de lucro com juros oferecidos pelo mercado de papéis
oferecidos por empresas ou por títulos do Estado.
Notem que todas as contratendências escondem um sujeito oculto. Trata-se,
já no final de O Capital, de mais um embate, este decisivo, contra a
ideologia liberal. Quem administra os limites da exploração do trabalho,
seja pelo tamanho da jornada, seja pelas condições gerais da contratação?
Quem determina os limites legais da compra da força de trabalho e seu
valor? Quem pode baratear os elementos do capital constante por meio de
subsídios, créditos facilitados, isenções e outros meios conhecidos? Quem
assume o custo de administração, manutenção e controle sobre uma
superpopulação relativa cujo papel é nunca entrar no mercado e trabalho?
Quem representa os interesses das corporações monopólicas na ampliação,
conquista e manutenção de mercados em disputa com outros monopólios?
Finalmente, quem se presta ao papel de oferecer títulos que remuneram com
taxas de juros generosas sem se preocupar em perder dinheiro ou comprar de
volta títulos podres e sem valor?
Esse sujeito, que mal se oculta, só pode ser o Estado! Eis que se
desmorona a mãe de todos os mitos liberais: o Estado não deve intervir na
livre concorrência entre os indivíduos pela disputa de riquezas e
propriedades, resumido na tese da não intervenção estatal na economia.
Para Marx, o Estado sempre foi um fator determinante no sociometabolismo
do capital, em seu nascimento na acumulação primitiva de capitais, na
garantia das condições gerais chamadas de extraeconômicas (garantia da
propriedade, subordinação legal e institucional da força de trabalho ao
capital, defesa da ordem, etc.) no período de ouro do liberalismo, na
representação dos monopólios na partilha e repartilha do mundo, fazendo
dos interesses das corporações o interesse nacional; e, por fim e mais
importante, nos momentos de crise em que o custo da exuberância
irracional, que levou à apropriação indecente da riqueza socialmente
produzida na forma de acumulação privada, tem que ser socializado por toda
a Nação.
Além do evidente papel do Estado no comando e gerenciamento das
contratendências, fica evidente o caráter de classe destes mecanismos, o
que nos ajuda a entender os efeitos que recairão sobre os trabalhadores. A
intensificação da exploração, que leva ao aumento do desgaste da força de
trabalho e à intensificação dos acidentes e das doenças profissionais; a
redução de salários, assim como a precarização das condições de
contratação, com relativização e perda de direitos; o aumento da
superpopulação relativa, que tem por base a intensificação da expropriação
dos camponeses e de todos que ainda conseguem manter seus meios diretos de
trabalho, e que leva à explosão urbana com todas suas consequências
conhecidas no campo da habitação, dos serviços essenciais como educação e
saúde, mas também no que se refere a questão da violência e da
criminalidade.
Mesmo as ações que aparentemente não se relacionam diretamente com o
agravamento das condições de exploração e a precarização das condições de
vida dos trabalhadores acabam por ter efeitos muito sérios sobre a vida de
quem trabalha. Os subsídios e isenções ao capital, para baratear os
elementos do capital constante ou ajudá-los a manter seus patamares de
venda, só podem sair do fundo comum do Estado e, portanto, à custa de
cortes dramáticos em serviços públicos duramente conquistados. Só em uma
semana, o governo brasileiro gastou R$50 mil milhões para manter o valor
do dólar, enquanto durante todo o ano anterior foram gastos um pouco mais
de R$ 20 mil milhões com a saúde, apenas para ficar em um exemplo. As
fortunas gastas para manter bancos em funcionamento só podem sair do
recurso público numa clara expressão de privatizar a pequena parte da
produção social da riqueza que ficou no espaço publico, sem que em nenhum
momento se questione o volume da riqueza que no ciclo de crescimento
permaneceu na esfera da acumulação privada.
Talvez o mais grave quanto aos efeitos da ação do Estado na gestão das
contratendências para os trabalhadores e a própria humanidade seja um
aspecto para o qual Marx não deu maior atenção: a expansão do mercado
externo. Quando Marx escrevia o último livro de O Capital, a ordem
monopolista mal fazia sua estreia histórica. Para o autor, tratava-se
apenas de encontrar mercados para os produtos e encontrar fontes de
matérias-primas. Ocorre que, com o pleno desenvolvimento dos monopólios,
passa a ser decisivo, como estudou mais tarde Lenin, a exportação de
capitais, e daí a necessidade de controle das áreas de influência, levando
a constante partilha e repartilha do globo, primeiro entre os monopólios e
depois entre as nações que os representam, levando à Guerra.
A fase imperialista e a prática da guerra, que lhe é inseparável, fizeram
desta contratendência quase que a síntese da ação do Estado em defesa do
capital e da manutenção de suas taxas de lucro contra a tendências das
mesmas em cair. Não apenas pela enorme destruição material que a Guerra
causa, abrindo campo para novas inversões em condições de lucratividade
retomada em patamares aceitáveis para o capital, como pelo próprio
estabelecimento de um complexo industrial-militar que vende ao Estado
mercadorias que terão que ser substituídas quer sejam ou não usadas (como
no caso do arsenal nuclear), como teorizou de forma precisa Mészáros.
Podemos resumir, afirmando que, na dinâmica das contratendências, as
vítimas são os trabalhadores, os beneficiários a burguesia monopolista e o
instrumento o Estado, não apenas como aparato técnico
jurídico-adiministrativo, mas também e principalmente pela capacidade que
lhe é própria de apresentar como universal um interesse que é particular.
Nesse campo, o da luta política, a crise é o momento de retirar da gaveta
do arsenal da política burguesa a tese do pacto social.
No momento da crise se reapresentam todas as alternativas em disputa.
Podemos resumi-las em três posições: a) a afirmação de que tudo não passa
de um incidente, mais ou menos grave, mas de qualquer forma um incidente
que não compromete a estrutura do mito, ou seja, basta voltar a crescer
que os empregos voltam, o consumo cresce, e tudo volta ao círculo virtuoso
do capital; b) a retomada da crítica keynesiana, que aparece
simultaneamente como afirmação da ordem do capital com todos os elementos
que lhe são próprios (inclusive a livre concorrência), mas que afirmará a
necessidade de retomar mecanismos de regulação, ou seja, não se trata de
evitar a livre concorrência, mas de regular certos aspectos para que suas
consequências inevitáveis não gerem condições catastróficas que possam
levar ao questionamento do sistema; c) a alternativa socialista, ou seja,
aquela que se fundamenta na afirmação sobre a necessidade da produção
social da riqueza ser gerida também de forma social, levando à acumulação
social da riqueza ser concebida como valor de uso e não mercadoria.
No presente quadro, a primeira, um pouco na defensiva e sem a arrogância
que caracterizou o último ciclo, não desaparecerá. Ela se inscreverá na
afirmação que basta o Estado dar os elementos para que o capital volte a
crescer, sem que interfira na disputa econômica direta, por exemplo,
através das estatizações. A segunda, de corte keynesiana, será a mais
ativa e, portanto, mais enganosa e perigosa para os trabalhadores. Sob o
manto de uma necessidade comprovada de maior regulação, que deverá se
inscrever nos limites do mundo financeiro, pode chegar até a defender,
como aliás já está acontecendo, algumas ações estatizantes. No entanto,
esta opção mal esconde uma enorme luta política que marcou o século XX.
Foi preciso ceder a determinadas demandas dos trabalhadores, por direitos
e condições de vida, frente à ameaça de superação revolucionária da ordem,
representada pelo advento da revolução Russa de 1917.
A solução keynesiana, que não se revestiu no século XX necessariamente com
a forma de um Welfare State social democrata de perfil europeu, nos EUA
prevaleceu com o New Deal, mantendo a base de uma economia de mercado
fundada na livre concorrência, e na América Latina, por exemplo, a
regulação estatal se deu na forma de ditaduras militares mais preocupadas
com o Estado do que com o bem-estar. No quadro conjuntural atual, de
inflexão política, de desmonte e isolamento das tímidas alternativas de
transição socialista iniciadas no século XX, os regulacionistas tendem a
se comportar mais como liberais contidos e responsáveis do que como social
democratas.
Aos trabalhadores cabe uma outra ordem de tarefas. Primeiro: resistir, não
aceitando que o ônus da crise recai sobre o setor que mais se penalizou no
ciclo de crescimento. Não apenas lutando para que nenhum direito lhe seja
retirado, como se recusando a proposta do tipo redução de jornada com
redução de salário ou qualquer precarização de suas já precárias condições
de contrato e de trabalho. Segundo: forçar o Estado para que se recuse a
usar o recurso público para dirimir perdas ou incentivar produtividade de
um setor da economia monopolizada, que lucrou fortunas e as acumulou
privadamente. Enquanto o governo se regojiza com a informação de que os
20% mais pobres passaram de U$1,00 por dia para U$2,00 de maneira que
saíram de uma posição que os colocava abaixo da linha da miséria para uma
condição de dignidade duvidosa na linha da miséria, as 500 maiores
empresas do Brasil, entre 2002 e 2007 viram seus lucros saltarem de R$ 2,9
mil milhões para R$43 mil milhões.
Em terceiro lugar, está na hora de a classe trabalhadora deixar de optar
entre qual é a ortodoxia burguesa que mais lhe convém, se a liberal ou a
keynesiana, e dizer a pleno pulmões que as previsões liberais ou
regulacionistas, que prometiam que o crescimento econômico levaria a uma
paulatina diminuição das desigualdades sociais e a um mundo justo e
equilibrado, naufragaram triunfalmente. Depois os marxistas é que são
acusados de "determinismo econômico"! O que é a tese de que os problemas
sociais só se resolverão com o crescimento econômico de tipo capitalista
senão a mais mecânica afirmação economicista?
O Brasil tinha como modelo os EUA e a Europa. Queríamos, na expressão de
Galeano, ser como eles. Pois bem, já somos. Somos parte integrante do
sistema capitalista mundial, no papel que nos cabe, como área de saque do
imperialismo. Uma área especial que, devido ao grau de investimento
imperialista dos grandes monopólios, constituímos como uma formação social
com um capitalismo moderno e completo que inclusive ensaia seus primeiros
movimentos no sentido do imperialismo tupiniquim, como tem teorizado
Virgínia Fontes, sem, contudo, nunca sair de baixo das asas dos centros
hegemônicos do imperialismo mundial.
Devemos recusar o papel miserável de entrar no debate que busca "como sair
da crise". Devemos pautar o debate, o único que interessa aos
trabalhadores, sobre qual forma de sociabilidade atende os interesses
reais dos trabalhadores e da humanidade e pode, de quebra, evitar que
ciclicamente todo o esforço produtivo seja destruído por uma nova crise
que, para salvar o capital e suas taxas de lucro, destrói produtos,
fábricas e seres humanos em uma escala genocida. Para nós, marxistas,
existe essa alternativa: é necessário e urgente que a produção social da
vida liberte-se das relações sociais de produção de tipo capitalista,
superando a propriedade privada dos meios de produção e desenvolvendo as
forças produtivas materiais como recursos coletivos e patrimônio da
humanidade, e não propriedade dos monopólios burgueses, de maneira que
possamos caminhar para a superação da forma mercadoria e afirmar a
centralidade do valor de uso.
Nossa meta socialista pode ser compreendida por aqueles que nos interessam
que a compreendam? Em grande parte esta é a arte da política, como disse
Bourdieu: a política é a arte de "fazer crer que se pode fazer o que se
diz" [7] . Nós acreditamos que sim e que podemos expressar os fundamentos
de nossa proposta através de três afirmações muito simples: 1) ninguém
pode se apropriar de recursos necessários à produção das condições que
garantem a existência coletiva da humanidade; 2) ninguém pode se apropriar
em caráter privado da força de trabalho humana, pois ela é a principal
força de produção e o principal recurso comum da espécie para garantir sua
existência, não podendo assumir a forma de uma mercadoria; e 3) a riqueza
coletivamente produzida não pode ser acumulada privadamente.
Como dizia Brecht, "uma coisa muito simples, dificílima de ser feita". No
entanto, nesse ponto a crise nos ajuda, Nunca ficou tão didático o caráter
destrutivo da atual forma do capitalismo monopolista e imperialista, nunca
ficou tão evidente a falácia do mito liberal, nunca foi tão urgente dotar
a humanidade de uma alternativa para além da ordem do capital.
Os liberais, velhos, neos e recentes; os pós-modernos, pós-industriais,
pós-socialistas; todos timidamente voltam ao "refugo das livrarias
vermelhas", ao qual Keynes havia condenado a leitura marxista como nada
tendo de aplicabilidade prática para os tempos modernos, para
discretamente voltar a ler Marx e entender o que se passou e o que seus
ideólogos não conseguem lhes explicar. Marx, hoje, volta a rondar a
Europa, os EUA, a Ásia, nossa América Latina. Não somos mais um mero
espectro. Somos cada vez mais de carne, osso, sangue e sonhos, enquanto
eles se transformam a cada dia em fantasmas.
Notas
1 Apresentado inicialmente no Seminário sobre a Crise Econômica Mundial,
promovido pelo PCB São Paulo em novembro de 2008 e modificado para a
publicação.
2 Offe, Claus. Capitalismo desorganizado. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.
195.
3 Keynes, John Maynard. A short view of Rússia [1925]. Apud Meszáros,
Istvan. Para além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2002, p. 16.
4 "Max Weber e Durkheim falharam menos estrondosamente que Marx nas suas
previsões". (Santos, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o
político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1999, p. 34.) Do mesmo
autor podemos citar a seguinte passagem: "Se o marxismo é uma ciência tem
que se submeter à prova dos fatos e os fatos não vão no sentido previsto
por Marx" (idem p. 25)
5 Para uma análise crítica sobre a tese da crise final, ver O encontro da
revolução com a História, de Valério Arcary (São Paulo: Xamã/ Institute
Rosa Sundermann, 2006)
6 Ver o capítulo XIV, do livro III, volume 4 de O Capital de Karl Marx.
7 Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertran Brasil,
1998, p. 185.
[*] Membro do Comitê Central do PCB .
O original encontra-se em pcb.org.br/...
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
16/Mar/13
http://www.resistir.info/crise/marx_crise_mar13.html
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