sábado, 10 de dezembro de 2016
O ano em que o globalismo estourou
por Pål Steigan [*]
Pontos de viragem históricos são muitas vezes difíceis de verificar no
momento em que acontecem. Normalmente somos capazes de vê-los mais
claramente em retrospetiva. Não obstante, atrevo-me a argumentar que 2016
foi o ano em que o globalismo estourou. Até agora, tanto apoiantes como
opositores viam o projeto globalista como algo que avançava
inexoravelmente ao longo de seu percurso predeterminado, deixando toda a
oposição de lado. Mas o globalismo não é apenas uma orientação política.
Primeiro e acima de tudo, é a natureza do capitalismo atual. É global. As
transnacionais conquistam o mundo, submetendo as nações e os povos sob a
sua engrenagem poderosa como um rolo compressor.
Não há nenhum bom funcionamento
Como sempre no passado, o facto de a história nunca ocorrer de forma
suave e regular está novamente a ser confirmado. A tentativa do
capitalismo de subjugar o mundo inteiro é uma tendência objetiva.
Corresponde à necessidade inerente ao capital para uma acumulação sem
limites. E como Karl Marx e Friedrich Engels escreveram no Manifesto
Comunista: "os preços baixos tornam-se a artilharia pesada que destrói
todas as muralhas da China".
Neste sentido, é irresistível. Como Marx e Engels também escreviam, a
burguesia é uma reminiscência do "feiticeiro que já não é capaz de
controlar os poderes ocultos que evoca. Desde há décadas, a história da
indústria e do comércio tem sido a história da rebelião das forças de
produção da era moderna contra as condições de produção da era moderna."
Assim, o globalismo enfrenta os conflitos criados pelo próprio
capitalismo, e que não é capaz de resolver, levando às crises e ao caos.
A repressão, fortalecendo a luta de classes, é uma das consequências. Mas
o próprio capitalismo não evolui estavelmente. Alguns Estados capitalistas
mantêm-se de pé, enquanto outros se afundam, e os seus mútuos conflitos já
levaram a duas guerras mundiais e inúmeras outras guerras e conflitos.
Particularmente agora, quando vários dos principais países capitalistas
entraram numa recessão duradoura, até mesmo depressão, conflitos violentos
irão necessariamente a ocorrer. Quando os tempos estão difíceis, mesmo o
melhor dos amigos pode tornar-se inimigo. Esses conflitos são questões de
vida e morte, nada menos. Não passou muito tempo desde que Barack Obama
em 2014 fez um discurso onde falou sobre uma futura nova ordem mundial :
"(…) parte da preocupação das pessoas é apenas no sentido de que o mundo
não está suportando a velha ordem e ainda que não estejamos seguros de
para onde necessitamos ir em termos de uma nova ordem baseada num
diferente conjunto de princípios, como um senso de humanidade comum,
baseado em economias que funcionem para todas as pessoas."
Os EUA quase tiveram êxito
Após o colapso da União Soviética, os EUA têm sido de facto o único poder
supremo e esta posição tem sido explorada nas suas tentativas de dominar o
resto do mundo. Isso tem sido feito através de acordos de comércio
assimétricos, favorecendo os grandes grupos capitalistas dos EUA. E, não
menos importante, tem sido feito através de guerras, golpes de Estado,
assassinatos, ameaças e subornos. Também usaram o seu sobrevalorizado dólar,
como um martelo pilão contra todos os outros. A artilharia ligeira nesta
batalha tem sido os media dominados pelos EUA e o seu objetivo altamente bem
sucedido de controlar a mentalidade dos povos e as formas de atuação dos
políticos.
Os EUA levaram guerras ao Afeganistão, Jugoslávia, Somália, Iraque, Iêmen,
Líbia e Síria, desencadearam um golpe de Estado na Ucrânia e asseguraram
mudanças de regime, em muitos outros países. Na África, os Estados Unidos
realizam dezenas de operações militares todos os anos garantindo o controlo
para os seus principais grupos capitalistas. Os EUA deram um passo gigante
na destruição e pilhagem da Rússia durante a presidência de Boris Yeltsin.
Os EUA também subjugaram quase completamente a Europa reduzindo as antigas
potências coloniais do velho mundo, como Alemanha, França e Reino Unido, à
condição de vassalos.
Batendo contra a parede
Sem oficialmente tornar esta questão um grande problema, a China aproveitou
os benefícios da globalização para a construir uma indústria que se tornou a
fábrica do mundo e sistematicamente desenvolver as suas infraestruturas, a
investigação, a ciência e tecnologia para garantir que a China não
permanecesse uma nação exportadora de segunda classe. Isso aconteceu
parcialmente com elevados investimentos das empresas dos EUA. As relações
de comércio assimétrico entre os EUA e a China têm surgido devido à
necessidade inerente ao capital dos EUA de bens baratos, mas criou um
sistema econômico que implacavelmente reforça a China à custa dos EUA.
Os EUA aprenderam dolorosamente que a competição global não é um jogo para
apenas um único ganhar. O lema de Donald Trump "fazer de novo a América
grande" ("Make America Great Again") é uma desesperada admissão que os EUA
perderam o seu próprio jogo.
Além disto, os EUA fracassaram em todas as suas guerras. A guerra do
Afeganistão, para a qual ainda não se vê um fim, é a mais prolongada na
história dos EUA. E o custo é tremendo. Linda Bilmes, antiga CFO (Chief
Financial Officer) do Departamento de Comercio dos EUA estimou que os custos
diretos e indiretos totais das guerras no Iraque e no Afeganistão acabarão
na faixa dos 4 a 6 milhões de milhões de dólares . Este cálculo foi
publicado em Harvard.
Os EUA têm sido capazes de financiar a sua poderosa máquina de guerra com
vendas de títulos do governo à China. Mas esta fonte agora seca rapidamente,
à medida que a China se encontrar suficientemente forte e pronta para
"desdolarizar" a economia global.
A guerra do Iraque foi um desastre que continua a produzir miséria. Com a
Noruega a apoiar, os EUA destruíram a Líbia, mas a catástrofe deste país vai
continuar a afectar grandemente a Europa, No final do verão de 2015, parecia
que os exércitos de jihadistas dos EUA ganhariam a guerra na Síria, mas a
Rússia interveio e os mais brilhantes estrategas dos EUA agora encaram a
derrota.
Annus horribilis
Em 2015, os cinco presidentes da UE apresentaram um plano para abolir as
democracias nacionais nos Estados-membros da UE em 2025 . Se pudessem seguir
a via que traçaram, a partir de 2025 os parlamentos nacionais dos Estados
membros já não poderiam decidir sobre seus próprios orçamentos. Os cinco
presidentes são o líder da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker, o
presidente da Cimeira da UE Donald Tusk , o Presidente do Eurogrupo
Jeroen Dijsselbloem , o Presidente do Banco Central Europeu Mario Draghi
e presidente do Parlamento Europeu Martin Schulz . Nenhum destes
cavalheiros tem um mandato democrático, mas eles emitem diretivas e
regulamentos para 500 milhões de pessoas que então têm de respeitá-los.
Porém, 18 meses depois podemos indiscutivelmente determinar, que isso não
vai ser assim. Como sabemos a UE já não existe. A UE não é uma " união cada
vez mais unida" , citando a formulação otimista de tratados. É antes o que
afirma um sarcástico comentário do The Economist, "uma união sempre mais
distante" .
E assim os acontecimentos ocorrem uns após outros. Alguns países
revoltam-se contra a política migratória da UE, uma política que não tem o
apoio da maioria dos eleitores em nenhum país, tendendo assim a estourar
mais cedo ou mais tarde.
A mudança mais crucial ocorreu com o Brexit. A resolução britânica de
retirada da UE abriu a válvula de escape para a saída da UE. Se adicionarmos
a derrota do TPP (Parceria Transpacífica) e TTIP (Parceria de Comércio e de
Investimento Transatlântica), temos a extensão dos problemas que os
globalistas enfrentam justamente em 2016.
Outras tensões sobre a coesão da União têm sido as políticas de guerra e as
sanções contra a Rússia. São políticas em grande medida contrárias aos
interesses objectivos dos Estados europeus, mas são mantidas apesar de forte
resistência interna devido às imposições dos EUA.
O primeiro-ministro italiano Matteo Renzi não foi eleito por ninguém.
Alcançou a liderança do seu próprio partido e ocupa o cargo de
primeiro-ministro, porque fez um acordo com Berlusconi: " eu coço as suas
costas se você coçar as minhas ". Mas ele decidiu assemelhar-se a Cameron,
propondo ao seu próprio povo um voto de confiança para obter a maioria
através de emendas constitucionais. Contudo, colocou-se em risco de se
tornar ainda mais parecido com Cameron do que gostaria de ser. O povo
italiano não quer estas alterações e Renzi está em perigo de ter que engolir
um grande murro no estômago ao pequeno-almoço – um murro que o fará ver
cinco estrelas, pois Beppe Grillo e o seu movimento Cinco Estrelas estão à
espera desta oportunidade.
Além disto, ao que parece as eleições presidenciais francesas vão ser entre
dois candidatos ambos defensores da détente e cooperação com a Rússia. Um
desafio completo à doutrina da NATO.
Perdendo na Síria e na Ucrânia
Os EUA, o Ocidente, a Turquia e os Estados ditatoriais do petróleo
financiam uma guerra de mercenários da Jihad para destruir a Síria. (o
papel da Noruega tem sido financiar a componente mais ou menos civil da
guerra e empenhar-se numa economia de guerra contra a Síria). A guerra
esteve perto de sucesso visado pela NATO em 2015, mas agora verifica-se que
os jihadistas e o Ocidente vão perder. Este é verdadeiramente um grande
revés para os imperialistas neoconservadores e estabelece uma bifurcação de
importância decisiva nas vias da política internacional.
Desde o verão de 2014 que os neocons dos EUA, tentaram fomentar uma guerra
na Ucrânia. Em fevereiro de 2014, desencadearam o golpe da praça Maidan em
Kiev, prometendo à população riqueza e sucesso. O que conseguiram foi
guerra, pobreza, fascismo e um Estado falido. Mesmo que oficialmente
responsáveis da NATO não se atrevam ainda a dize-lo, eles sabem que também
esta guerra está perdida. E a bancarrota da Ucrânia será passada para os
contribuintes da UE (e da Noruega).
Hillary Clinton e a derrota do Partido Democrático da guerra
Donald Trump foi o candidato opositor que a campanha de Clinton desejava
para ter certeza de eleger o seu próprio candidato impopular. Todos os
grandes bancos e financeiros estavam na equipa de Clinton, Wall Street, a
indústria de armamento, todos os meios de comunicação importantes. E todos
eles estavam expectantes sobre Hillary Clinton para uma escalada da guerra
na Síria e talvez atacar aí as forças armadas russas. Mas então eles
perderam. Donald Trump é um demagogo de direita, reacionário, capitalista,
mas aparentemente percebeu que a era dos EUA como "A nação indispensável"
acabou.
Isto também é um golpe à lealdade dentro da NATO. Responsáveis europeus da
NATO temem as consequências da perdar da proteção dos EUA. Envolveram-se
pessoalmente em crimes de guerra, assegurando-se confiadamente que os EUA
sempre os protegeriam e os manteriam longe dos tribunais internacionais.
Agora já não podem ter tanta certeza disso. Se nada mais sair desta eleição
nos Estados Unidos, pelo menos temos a hipótese de ver que espécie de
patéticos vassalos são realmente os líderes europeus.
E a Turquia, que mantém o segundo maior exército da NATO, constituindo o
vulnerável flanco sul da NATO, namora a ideia de aderir à Aliança da Eurásia
na Organização de Cooperação de Xangai, em estreita ligação com a China e a
Rússia.
A fábrica chinesa continua a girar sem ser ultrapassada
Deng Xiaoping aconselhou os líderes do seu país a não serem visíveis na
política internacional, para evitar atenção indesejada. Eles na realidade
têm seguido este conselho. A economia da China é atualmente a fonte mais
importante de crescimento que ainda existe no mundo, o país estabeleceu seu
próprio banco de desenvolvimento, pretende construir uma nova "estrada da
seda" (One Belt, One Road) e aí investir centenas de milhares de milhões
de dólares. Se nenhuma grande guerra eclodir, a economia da China será maior
do que a economia dos EUA em valores absolutos daqui até 2020. Nessa altura,
a China também terá ultrapassado largamente os Estados Unidos como uma nação
de pesquisa e desenvolvimento. A China é já o maior parceiro comercial e o
maior investidor em grande número de países que têm sido tradicionalmente
aliados da América.
Bem antes dos destaques deste ano, podemos já estabelecer 2016 como um ano
memorável. Para os globalistas, é o seu "Annus horribilis". Podemos
constatar como isto terá um significado histórico em todo o mundo. De que
forma permanece ainda desconhecido. Os EUA conduziram desde há muito uma
guerra indireta contra seus "aliados", agora esses conflitos finalmente
poderão romper à superfície e expor-se à plena luz do dia. Pode até haver
uma situação de "todos contra todos". Velhas alianças irão desfazer-se e
novas surgirão. Estas coisas raramente ocorrem de forma pacífica. Mas tempos
de caos são também tempos de oportunidades. É mais fácil para os povos
oprimidos lutar contra inimigos que estão divididos, do que com inimigos que
permanecem unidos.
[*] Escritor, norueguês.
O original encontra-se em steigan.no e a versão em inglês em
www.informationclearinghouse.info/article45968.htm . Tradução de DVC.
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/crise/globalismo_estourou.html
10/12/2016
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