terça-feira, 23 de outubro de 2018
O capitalismo e o desenvolvimento do Terceiro Mundo
por Prabhat Patnaik [*]
Aquilo a que hoje chamamos terceiro mundo nem sempre existiu na sua forma
actual. Ele experimentou uma transformação estrutural específica devido à
intrusão do capitalismo metropolitano, devido ao que alguns economistas, a
começar por Andre Gunder Frank, classificam como "o desenvolvimento do
subdesenvolvimento". Na Índia por exemplo os processos de
"des-industrialização" (importações da metrópole deslocando produtores
artesanais internos) e a "drenagem de excedente" (o desvio sem qualquer
contrapartida de uma parte do excedente do país através do sistema de
tributação colonial), provocou um enorme aumento na pressão sobre a terra
por parte da população e engendrou a moderna pobreza em massa.
Uma vez que o "subdesenvolvimento" do terceiro mundo foi o resultado da
maneira pelo qual ele foi integrado na economia capitalista mundial, na
época da descolonização acreditava-se geralmente que os povos desta
região só poderiam progredir sob um regime económico alternativo que os
livrasse de tal integração. E uma vez que o capital metropolitano não iria
tolerar isto, e a burguesia – temerosa quanto à ameaça à sua própria
posição devido à sua chegada tardia ao cenário histórico (razão pela qual
ela também fazia causa comum com os interesse fundiários internos) – era
incapaz de enfrentar o capital metropolitano, tal libertação só poderia
ser efectuada através de um estado baseado numa aliança dos trabalhadores
com o campesinato. Este argumento da esquerda exerceu na época uma
considerável influência intelectual; e estes países eram vistos a
procederem tal libertação por etapas ao longo do tempo rumo ao socialismo.
O desenvolvimento do terceiro mundo não era, portanto, encarado como
ocorrendo através da busca de um caminho capitalista de desenvolvimento;
isso só poderia ocorrer através da busca de uma trajectória alternativa
que o levasse ao socialismo.
Tal entendimento, entretanto, começou a ser desafiado na era neoliberal
com o argumento de que os factores que no passado haviam produzido a
segmentação do mundo não estavam mais operacionais. Subjacente a esta
segmentação, a qual exprimia-se na dicotomia entre países desenvolvidos e
subdesenvolvidos, estava o facto de que o trabalho destes últimos não era
livre para mover-se para os primeiros e o capital destes, através de
movimentos juridicamente livres para os segundos, por variadas razões
relutava em fazê-lo, excepto para capturar o mercado destes últimos ou
apossar-se das matérias-primas dos mesmos. Por outras palavras, apesar de
os salários destes últimos serem muito mais baixos, o capital dos
primeiros não localizava ali fábricas para atender ao mercado global,
incluindo o metropolitano.
Esta situação, de acordo com este novo argumento, mudou sob a
globalização neoliberal. O capital metropolitano estava agora desejoso de
localizar fábricas no terceiro mundo a fim de explorar seus salários mais
baixos para atender à procura global. De facto, a relocalização de várias
actividades manufactureiras e do sector de serviços da metrópole em países
do terceiro mundo, especialmente no Leste, Sudeste e Sul da Ásia, sugeriam
agora que mesmo dentro da estrutura do capitalismo mundial estes países
poderiam ainda assim experimentar desenvolvimento económico rápido.
Tal argumento naturalmente era falho, mesmo no momento em que estava a
ser avançado. A mesma ordem neoliberal sob a qual tal difusão de
actividades estava a ocorrer, da metrópole para o terceiro mundo, também
estava a lançar um feroz ataque à pequena produção e infligia um processo
de acumulação primitiva de capital dentro do terceiro mundo. E, ao mesmo
tempo, estava a gerar empregos tão escassos no terceiro mundo, mesmo
quando as taxas de crescimento do PIB dessas economias eram
impressionantes e sem precedentes, que a pobreza em massa realmente se
agravou, ao invés de ser aliviada, apesar desse crescimento elevado.
Mas agora o capitalismo mundial entrou numa nova fase em que até mesmo
essa difusão, como estava a ocorrer na era neoliberal, está a ser
restringida. Portanto a própria premissa do argumento que via o terceiro
mundo como a desenvolver-se dentro do quadro do capitalismo mundial, ou
seja, mesmo sem desligar-se do quadro do capitalismo mundial através de
controles adequados de comércio e capital, perdeu sua relevância. O
proteccionismo de Trump pretende precisamente restringir tal difusão da
actividade da metrópole para o terceiro mundo, e isto é apenas um
sinalizador do facto de que o regime neoliberal está agora num beco sem
saída.
Trump, deve-se notar, não pretende de modo algum desfazer-se do
neoliberalismo. Ao contrário, ele está a manter o núcleo da organização
neoliberal, a qual é mobilidade global do capital financeiro. Mas ele está
a estabelecer restrições ao capital americano (e a outros capitais
metropolitanos, bem como capitais do terceiro mundo) a que localizem
instalações de produção dentro do terceiro mundo a fim de atender à
procura americana. E ele está a compensar o capital americano que seria
prejudicado por tais restrições através de concessões fiscais em grande
escala sobre lucros corporativos. As medidas de Trump, por outras
palavras, são calculadas de modo a não provocar danos ao capital
americano; mas elas certamente impediriam a difusão de actividades da
metrópole para o terceiro mundo que supostamente são o instrumento para
inaugurar o desenvolvimento do terceiro mundo mesmo dentro da estrutura do
capitalismo mundial.
As medidas de Trump têm de ser entendidas no contexto da crise que
engolfou o capitalismo mundial no período da globalização neoliberal. Na
raiz desta crise está o facto de que a própria relocalização de
actividades das metrópoles para o terceiro mundo tem mantido baixos os
salários reais nas metrópoles. Ao mesmo tempo, isto não elevou os salários
reais no terceiro mundo pois a grandes reservas de trabalho nestes,
criadas no período colonial, longe de ficarem esgotadas, estão a crescer
ainda mais. Se bem que o vector dos salários reais na economia mundial
permaneça assim mais ou menos constante, o vector da produtividade do
trabalho aumentou muitíssimo, resultando em um enorme aumento na fatia de
excedente da produção mundial. Isso cria uma tendência à superprodução na
economia mundial, uma vez que a fatia do consumo do excedente é menor do
que a dos salários. Esta tendência, no entanto, foi mantida sob controle
nos EUA devido a dois booms baseados em "bolhas", primeiro a “bolha das
dot.com” nos anos noventa e depois a “bolha habitacional” no início deste
século.
Com o colapso da bolha habitacional e sem nenhuma nova bolha a
substituí-la, a economia dos EUA, e com ela a economia capitalista
mundial, entrou num período de crise, provocando descontentamento
generalizado em massa e uma ameaça à estabilidade social do sistema. A
classe trabalhadora, já afligida há muito por salários estagnados, agora
tem de enfrentar o fardo agravado do aumento do desemprego.
A solução de Trump para a crise é a busca daquilo a que economistas
chamam a política do "roubo o meu vizinho" ("beggar-my-neighbour"), a
qual equivale a roubar empregos de outros países, especialmente países do
terceiro mundo, a fim de aumentar o emprego nos EUA. A estagnação na
economia mundial, por outras palavras, não está a ser superada. Mas dentro
desta estagnada economia mundial, os EUA estão a tentar melhorar sua
posição a expensas dos outros. Embora isso possa melhorar a posição dos
EUA por algum tempo, até que outros comecem a retaliar, ela não supera a
crise do capitalismo mundial. Ao contrário, quando outros retaliarem, esta
crise será agravada ainda mais, o que só confirma o facto de que o
capitalismo neoliberal chegou a um beco sem saída.
Nesta situação desaparecem claramente quaisquer esperanças de que o
terceiro mundo continuasse a ser o beneficiário da difusão de actividades
da metrópole e dessa forma continuasse a crescer rapidamente dentro do
quadro do capitalismo mundial. Este crescimento, como vimos, foi
acompanhado por um agravamento da pobreza em massa e não do seu alívio.
Mas agora até esta trajectória de desenvolvimento chegou ao fim.
Os países do terceiro mundo terão doravante de adoptar medidas para
desenvolver o seu mercado interno. Daqui em diante, para qualquer
crescimento terão de confiar no mercado interno ao invés do mercado de
exportação, o qual é atingido pela estagnação económica mundial e pelo
proteccionismo dos EUA. Isto exigirá o crescimento da agricultura
camponesa, de maior igualdade de rendimento interno, de um aumento
generalizado nos salários reais, de uma elevação do salário mínimo e de
uma activação da despesa estatal. Uma vez que tais medidas enfrentarão a
oposição da finança globalizada, a qual precipitaria uma fuga de capitais
e portanto uma crise financeira, terão de ser postos em vigor controles de
capitais. E como isto é provável que torne muito mais difícil financiar
défices de transacções correntes das balanças de pagamentos, também terão
de ser instituídos controles de importações.
Contudo, todas estas medidas exigiriam uma mudança na natureza do Estado,
na aliança de classe que o sustenta. Só uma aliança
trabalhadores-campesinato que possa sustentar um estado [poderá] assistir
a uma ultrapassagem da crise e estagnação para a qual o terceiro mundo
está a ser inexoravelmente empurrado nesta nova situação, a qual assinala
o beco sem saída do capitalismo neoliberal. E uma vez que a trajectória de
desenvolvimento anunciada por um estado apoiado por uma tal aliança será
caracterizada por um movimento rumo ao socialismo através de etapas, o
velho argumento de que o desenvolvimento do terceiro mundo pode ocorrer só
através da busca de um caminho que conduza ao socialismo readquire uma
relevância enfática na nova situação.
21/Outubro/2018
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2018/1021_pd/capitalism-and-third-world-development .
Tradução de JF.
In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/patnaik/patnaik_21out18.html
21/10/2018
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