quinta-feira, 11 de outubro de 2018

O futuro da democracia ocidental está em jogo no Brasil



       por Pepe Escobar [*]


       No Brasil está em jogo nada menos do que o futuro da política de todo o
      Ocidente – e do Sul global.
       Despojadas até à sua essência, as eleições presidenciais brasileiras
      representaram um choque direto entre a democracia e um neofascismo do
      início do século XXI, entre a civilização e a barbárie.
       As repercussões geopolíticas e económicas mundiais serão enormes. O
      dilema brasileiro ilumina todas as contradições que rodeiam a ofensiva
      populista de direita do Ocidente, justapondo-se ao inexorável colapso da
      esquerda. Os riscos não podem ser maiores.
       Jair Bolsonaro, apoiante ferrenho das ditaduras militares brasileiras do
       século passado, que tem sido apresentado simpaticamente como o "candidato
      de extrema-direita", ganhou a primeira volta das eleições presidenciais no
      domingo com mais de 49 milhões de votos. Foram 46% do total, a pouca
      distância da maioria necessária para uma vitória imediata. Isto, só por
      si, já é um desenvolvimento incrível.
       O seu opositor, Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT), só
       recebeu 31 milhões de votos, ou seja, 29% do total. Vai agora enfrentar
       Bolsonaro numa segunda volta em 28 de outubro. Uma tarefa digna de Sísifo
      aguarda Haddad: para igualar Bolsonaro, precisa de cada um dos votos dos
      que apoiaram os candidatos situados em terceiro e quarto lugares, mais uma
      substancial parte de quase 20% dos votos brancos e nulos.
       Entretanto, nada menos de 69% dos brasileiros, segundo as últimas
       sondagens, manifestam apoio à democracia. Ou seja, há 31% que não a
      apoiam.
       Um Trump tropical? Não. 
       A Distopia Central nem sequer o qualifica. Os brasileiros progressistas
       sentem-se aterrorizados com a ideia de enfrentar um deserto intelectual
       mutante, como no filme "Brazil" ou Mad Max, devastado por fanáticos
      evangélicos, capitalistas gananciosos do casino neoliberal e militares
      raivosos inclinados a recriar uma ditadura 2.0.
       Bolsonaro, um antigo paraquedista, tem sido retratado pelos media
      ocidentais dominantes como o Trump Tropical. Os factos são muito mais
       complexos.
       Bolsonaro, um membro medíocre do Congresso durante 27 anos, sem nada que
       se destaque no seu currículo, demoniza indiscriminadamente negros, a
       comunidade LGBT, a esquerda no seu todo, a "fraude" ambiental e,
       sobretudo, os pobres. Confessou abertamente ser a favor da tortura.
       Apresenta-se como um Messias – um avatar fatalista que aparece para
       "salvar" o Brasil de todos os "pecados" atrás referidos.
       A Deusa do Mercado, previsivelmente, abre-lhe os braços. Os
       "investidores" – essas entidades semidivinas – consideram-no bom para "o
      mercado", com a sua ofensiva de última hora nas sondagens, refletidas numa 
      recuperação do real brasileiro e do mercado de ações de São Paulo.
       Bolsonaro pode ser o "salvador" clássico de extrema-direita, segundo o
      molde nazi. Pode encarnar o populismo de direita até ao âmago. Mas não é,
      de modo algum, um "soberanista" – o lema de eleição no debate político em
      todo o Ocidente. O seu Brasil "soberano" será governado mais como uma
       ditadura retro-militar, totalmente subordinada aos caprichos de
      Washington.
       O vice-presidente proposto por Bolsonaro é um general reformado,
       escassamente letrado, um homem que se envergonha da sua origem mista e é
       abertamente a favor da eugenia. O general António Hamilton Mourão até já 
      ressuscitou a ideia de um golpe militar.
       Por detrás desta equipa, encontramos enormes interesses económicos,
      ligados a recursos minerais, agroindústrias e a quase todos os "Cinturões
      Bíblicos" brasileiros. Acompanham-nos os esquadrões da morte contra os
      brasileiros nativos, os camponeses sem terra e as comunidades
      afro-americanas. É um paraíso para a indústria do armamento. Chamem-lhe a
      apoteose do cristão-sionismo tropical neopentecostalista.
       Louvado seja o Senhor 
       O Brasil tem 42 milhões de evangélicos – e mais de 200 representantes nos
      dois ramos do Parlamento. Não se metam com os seus jihadistas. Eles sabem
      como exercer uma influência maciça entre os mendigos do banquete
      neoliberal. A esquerda de  Lula não sabia como os seduzir.
       Assim, mesmo imitando Mike Pence, Bolsonaro só é o Trump brasileiro até
      um certo ponto: as suas técnicas de comunicação – falar duro, de forma
      simplista — são uma linguagem que até um miúdo de sete anos percebe. Os
      italianos instruídos comparam-no a Matteo Salvini, o líder do partido
      Lega, hoje ministro do Interior. Mas também não é exatamente esse o caso.
       Bolsonaro é um sintoma de uma doença muito maior. Só atingiu este nível,
      um frente a frente na segunda volta contra Haddad, candidato de Lula, por
      causa duma Guerra Híbrida judicial/congressional/industrial/media,
       refinada e contínua, desencadeada contra o Brasil.
       Bastante mais complexa do que qualquer revolução colorida, a Guerra
      Híbrida no Brasil caracteriza-se por um golpe  lawfare sob a cobertura da
      investigação anticorrupção da  Lava Jato que levou ao impeachment da
      presidente Dilma Rousseff e à prisão de Lula, com acusações de corrupção
      sem quaisquer provas.
       Em todas as sondagens Lula ganharia estas eleições. Os conspiradores
      conseguiram metê-lo na prisão e impedi-lo de se candidatar. O direito de
      Lula a candidatar-se foi defendido por toda a gente, desde o Papa
      Francisco ao Conselho dos Direitos Humanos da ONU, assim como por Noam
      Chomsky. No entanto, numa deliciosa reviravolta histórica, o cenário dos
      conspiradores rebentou-lhes na cara quando o primeiro candidato a governar
      o país não é nenhum deles, mas um neofascista.
       "Um deles" seria idealmente um burocrata sem rosto, um apaniguado dos
       antigos sociais-democratas, o PSDB – Partido da Social Democracia
       Brasileira –, neoliberais radicais viciados em colocar-se no
       centro-esquerda, quando são "aceitáveis" perante os neoliberais da
      direita. Chamem-lhes Tony Blairs brasileiros. As contradições específicas
      brasileiras, mais o avanço do populismo de direita no Ocidente, levaram à
      sua queda.
       Até a Wall Street e a City de Londres (que apoiaram a Guerra Híbrida no
      Brasil, depois de ela ter sido desencadeada pela NSA, que  espionou a
      gigantesca petrolífera Petrobrás) começaram a mudar de opinião quanto ao
      apoio a Bolsonaro para presidente duma nação BRICS, que é líder do Sul
      Global, e que, até há poucos anos, estava em vias de ser a quinta maior
      economia do mundo.
       Tudo depende do mecanismo da "transferência de votos" de Lula para Haddad
      e na criação de uma Frente Democrática Progressiva séria e multipartidária
      na segunda volta para derrotar o crescente neofascismo. Têm menos de três
      semanas para o realizar.
       O efeito Bannon 
       Não é segredo nenhum que Steve Bannon é conselheiro da campanha de
      Bolsonaro no Brasil. Um dos filhos de Bolsonaro, Eduardo, encontrou-se com
      Bannon em Nova Iorque dois meses depois de o campo de Bolsonaro ter
      decidido aproveitar a supostamente inigualável visão de engenharia social
      de Bannon.
       O filho de Bolsonaro escreveu num  tweet  , nessa altura: "Estamos em
      contacto para reunir forças, especialmente contra o marxismo cultural".
      Isto foi seguido por um exército de  bots,  que vomitaram uma avalanche de
      notícias falsas até ao dia das eleições.
       Um espectro assombra a Europa. Chama-se Steve Bannon. Este espectro
      mudou-se para os trópicos.
       Na Europa, Bannon está agora apostado em intervir como um anjo da
       perdição num quadro de Tintoretto, anunciando a criação duma coligação
      populista União Europeia-toda a direita.
       Bannon recebe publicamente os maiores elogios do ministro do Interior
      italiano, Salvini; do primeiro-ministro húngaro Viktor Orban; do
      nacionalista holandês Geert Wilders; e do flagelo do establishment de
      Paris, Marine Le Pen.
       No mês passado, Bannon fundou O Movimento; à primeira vista apenas uma
       start-up  política em Bruxelas, com uma pequena equipa. Mas falamos em
       ambição sem limites: o seu objetivo é nada menos do que virar as eleições
      parlamentares europeias em maio de 2019 de pernas para o ar.
       O Parlamento Europeu em Estrasburgo – um bastião de ineficácia burocrata
      – não é exatamente um nome familiar na União Europeia. O parlamento está
      impedido de propor legislação. As leis e os orçamentos só podem ser
       bloqueados através de uma maioria de votos.
       Bannon pretende captar pelo menos um terço dos assentos em Estrasburgo.
       Está apostado em aplicar métodos ao estilo americano, já testados, tais
      com sondagens intensivas, análise de dados e intensivas campanhas sociais
      nos media – tal como no caso de Bolsonaro. Mas, claro, não há garantias de
      que vá funcionar.
       A pedra basilar de O Movimento, segundo tudo leva a crer, foi colocada em
      duas importantes reuniões no início de setembro, organizadas por Bannon e
      pelo seu braço direito, Mischael Modrikamen, presidente do pequenino
      Partido Popular Belga (PP). A primeira reunião realizou-se em Roma com
      Salvini e a segunda em Belgrado com Orban.
       Modrikamen define o conceito como um "clube" que vai "angariar fundos de
      doadores, na América e na Europa, para assegurar que as ideias
       'populistas' sejam ouvidas pelos cidadãos da Europa que se apercebem cada
      vez mais que a Europa já não é uma democracia".
       Modrikamen insiste: "Somos todos soberanistas". O Movimento vai martelar
      quatro temas que parecem formar consenso em partidos políticos diferentes,
      de toda a União Europeia: contra uma "imigração descontrolada"; contra o
       "islamismo"; a favor da "segurança" na União Europeia; e em apoio a "uma
      Europa de nações soberanas, orgulhosas da sua identidade".
       O Movimento deverá ganhar velocidade depois das intercalares do próximo
      mês nos EUA. Em teoria, poderá congregar diversos partidos da mesma nação
      à sua sombra. Poderá ser uma ordem muito alta, ainda mais alta do que o
      facto de os principais atores políticos já terem programas divergentes.
       Wilders quer rebentar com a União Europeia. Salvini e Orban querem uma
       União Europeia fraca, mas não querem ver-se livres das suas instituições,
      Le Pen quer uma reforma da União Europeia seguida por um referendo
      "Frexit".
       Os únicos temas que unem este saco de gatos de populismos de direita são
      o nacionalismo, um confuso impulso anti-establishment e — muito popular —
      o desencanto com a pesada máquina burocrática da União Europeia.
       Encontramos aqui terreno comum com Bolsonaro, que se apresenta como
       nacionalista e contra o sistema político brasileiro – apesar de estar no
      Parlamento há séculos.
       Não há uma explicação racional para o avanço de última hora de Bolsonaro
      nas duas secções do eleitorado brasileiro que o desprezam profundamente:
      as mulheres e a região nordeste, que sempre foi discriminada pelo sul e
      pelo sudeste, mais ricos.
       Tal como a Analítica de Cambridge nas eleições norte-americanas de 2016,
      a campanha de Bolsonaro visou eleitores indecisos nos estados do nordeste,
      assim como as mulheres, com uma barragem de notícias falsas, denegrindo
      Haddad e o Partido dos Trabalhadores. Funcionou como mágica.
       A ação italiana 
       Estive no norte de Itália para ver até que ponto Salvini é popular.
      Salvini define as eleições para o Parlamento Europeu em maio de 2019 como
      "a última hipótese para a Europa". O ministro italiano dos Estrangeiros,
      Enzo Moavero, considera-as as primeiras "verdadeiras eleições para o
      futuro da Europa". Bannon também acha que o futuro da Europa está em jogo
      na Itália.
       É espantoso apreender a energia conflituosa no ar em Milão, onde o
      partido Lega de Salvini é muito popular enquanto, simultaneamente, Milão é
      uma cidade globalizada, a abarrotar de bolsõess ultraprogressistas.
       Num debate político sobre um livro publicado pelo Instituto Bruno Leoni,
       acerca da saída do euro, Roberto Maroni, antigo governador da poderosa
       região da Lombardia, observou: "A Italexit está fora do programa formal
      do governo, do Lega e do centro-direita". Maroni lá sabe, afinal de
      contas, ele foi um dos fundadores do Lega,
       Mas deu a entender que há no horizonte importantes mudanças. "Para formar
      um grupo no Parlamento Europeu, os números são importantes. Este é o
      momento para aparecer com um único símbolo dos partidos de muitas nações".
       Não são só Bannon e Modrikamen de O Movimento. Salvini, Le Pen e Orban
      estão convencidos de que podem ganhar as eleições de 2019 – com a União
      Europeia transformada numa "União das Nações Europeias". Isso incluirá não
      só algumas das grandes cidades onde se passa toda a ação, com o resto
      reduzido a um estatuto de observadores. O populismo de direita argumenta
      que a França, a Itália, a Espanha e a Grécia já não são nações – apenas
      meras províncias.
       O populismo de direita sente-se imensamente satisfeito por o seu
      principal inimigo ser o auto-intitulado Macron "Júpiter" – ridicularizado
      por alguns em França como "o pequeno Rei-Sol". O presidente Emmanuel
      Macron deve andar aterrorizado por Salvini surgir como a "luz principal"
      dos nacionalistas europeus.
       É para isto que a Europa parece estar a caminhar: um destruidor desafio
       de Salvini contra Macron.
       A luta entre Salvini e Macron, na Europa, pode ser uma repetição da luta
      entre Bolsonaro e Haddad, no Brasil. Alguns espíritos agudos brasileiros
      estão convencidos de que Haddad é o Macron brasileiro.
       Na minha opinião, não é. Tem formação em filosofia e foi um competente
      prefeito de São Paulo, uma das mais complexas metrópoles do planeta.
      Macron é um banqueiro Rothschild de fusões e aquisições. Ao contrário de
      Macron, que foi engendrado pela instituição francesa como o perfeito lobo
       "progressivo" a ser largado entre as ovelhas, Haddad encarna o que resta
      da esquerda realmente progressista.
       Para mais – ao contrário de todo o espectro político brasileiro – Haddad
      não é corrupto. Terá que oferecer a exigida porção de carne aos suspeitos
      habituais, se ganhar a corrida. Mas não será uma marioneta nas mãos deles.
       Comparem o trumpismo de Bolsonaro, evidente na sua mensagem de última
       hora, antes do dia das eleições: "Tornem o Brasil Grande de Novo!", com o
      trumpismo de Trump.
       Os instrumentos de Bolsonaro são o elogio persistente da Pátria Mãe, das
      forças armadas e da bandeira.
       Mas Bolsonaro não está interessado em defender a indústria, os empregos e
      a cultura do Brasil. Pelo contrário. Um exemplo gráfico é o que aconteceu
      num restaurante brasileiro, em Deerfield Beach, na Flórida, há um ano:
      Bolsonaro saudou a bandeira americana e entoou "USA! USA!"
       Isso é puro MAGA (Make America Great Again) – e sem a letra "B".
       Jason Stanley, professor de Filosofia em Yale e autor de How Fascism
      Works , leva-nos  mais longe . Stanley sublinha como "a ideia no fascismo
      é destruir a política económica… Os empresários alinham com os políticos
      que usam táticas fascistas porque tentam desviar a atenção das pessoas das
      forças reais que causam a genuína ansiedade que elas sentem".
       Bolsonaro domina estas táticas de diversão. É excelente em denegrir o
      alegado marxismo cultural. Bolsonaro encaixa na descrição de Stanley, tal
      como é aplicado aos EUA:

      "O liberalismo e o marxismo cultural destruíram a nossa supremacia e
      destruíram esse maravilhoso passado em que governávamos e as nossas
      tradições culturais eram as que dominavam. Depois, militariza o sentimento
      de nostalgia. Toda a ansiedade e perda que as pessoas sentem na sua vida,
      digamos por causa da perda do serviço de saúde, da perda das suas
      reformas, da perda da sua estabilidade, é enraizada numa sensação de que o
      verdadeiro inimigo é o liberalismo, que levou à perda do seu passado
       mítico".
    No caso brasileiro, o inimigo não é o liberalismo, mas o Partido dos
    Trabalhadores, ridicularizado por Bolsonaro como "um monte de comunistas".
    Ao celebrar a sua espantosa vitória da primeira volta, disse que o Brasil
    estava à beira de um "abismo" comunista corrupto e podia escolher entre uma
    via de "prosperidade, liberdade, família" ou "a via da Venezuela".
     A investigação Lava Jato consagrou o mito de que o Partido dos
     Trabalhadores e toda a esquerda é corrupta (mas a direita não). Bolsonaro
    ainda ampliou mais o mito: todas as minorias e classe social é um alvo – na
    sua cabeça são "comunistas" e "terroristas".
     Faz-nos recordar Goebbels – no seu texto fundamental  "A Radicalização do
    Socialismo",  em que ele sublinha a necessidade de retratar o
    centro-esquerda como marxistas e socialistas porque, como Stanley assinala,
    "a classe média vê no marxismo não tanto a subversão da vontade nacional,
     mas sobretudo o ladrão da sua propriedade".
     Isto está no centro da estratégia de Bolsonaro de denegrir o Partido dos
    Trabalhadores – e a esquerda em geral. A estratégia é encharcada em notícias
    falsas – mais uma vez refletindo o que Stanley escreve sobre a história dos
    EUA: "Todo o conceito de império baseia-se em notícias falsas. Toda a
     colonização baseia-se em notícias falsas".
     A direita contra o populismo? Como já escrevi  num artigo anterior , a
    esquerda no Ocidente é como um encadeado encadeado por faróis, quando se
    trata de combater o populismo de direita.
     Espíritos atentos, de Slavoj Zizek a Chantal Mouffe estão a tentar
    conceptualizar uma alternativa – sem conseguir arranjar o neologismo
    definitivo. Populismo de esquerda? Popularismo? Idealmente, devia ser
    "socialismo democrático" – mas ninguém, num ambiente pós-ideologia,
    pós-verdade, se atreveria a usar a palavra temida.
     A ascensão do populismo de direita é uma consequência direta do
    aparecimento de uma profunda crise de representação política em todo o
    Ocidente; a política de identidade erigida como um novo mantra; e o
    esmagador poder das redes sociais, que permitem – na definição inigualável
    de Umberto Eco – a ascensão do "idiota da aldeia à condição de oráculo".
     Como já vimos, o lema central do populismo de direita na Europa é contra a
    imigração – uma variante mal disfarçada do ódio contra o Outro. No Brasil, o
    tema principal, realçado por Bolsonaro, é a insegurança urbana. Pode ser o
    Rodrigo Duterte brasileiro – ou Harry Duterte: "Atreve-te, idiota".
     Ele intitula-se o Legítimo Defensor contra uma elite corrupta (apesar de
     fazer parte dessa elite); e o seu ódio de todas as coisas politicamente
     corretas, do feminismo, da homossexualidade, do multiculturalismo – tudo
     isso são crimes imperdoáveis contra os "valores da família". Um 
    historiador brasileiro afirma que a única forma de nos opormos é "traduzir"
     para cada setor da sociedade brasileira como a posição de Bolsonaro os
    afeta: "o armamento alargado, a discriminação, os empregos, (e) os
    impostos". E isso tem que ser feito em menos de três semanas.
     Penso que o melhor livro que explica o fracasso da esquerda por toda a
    parte para lidar com esta situação tóxica é o livro de Jean-Claude Michea, 
    Le loup dans la Bergerie (O lobo no curral)  publicado em França há uns
    dias.
     Michea mostra, concisamente, como as profundas contradições do liberalismo,
    desde o século XVIII – políticas, económicas e culturais – o levaram a
    VIRAR-SE CONTRA SI MESMO e a separar-se do espírito inicial de tolerância
    (Adam Smith, David Hume, Montesquieu). É por isso que estamos mergulhados
    profundamente no capitalismo pós-democrático.
     Chamadas eufemisticamente "a comunidade internacional" pelos "media"
    dominantes ocidentais, as elites, que têm sido confrontadas desde 2008 com
    "as dificuldades crescentes que o processo da acumulação globalizada do
    capital enfrenta", parecem agora dispostas a fazer tudo para manter os seus
    privilégios.
     Michea tem razão quando diz que o mais perigoso inimigo da civilização – e
    até da vida na Terra – é a dinâmica cega da acumulação infindável do
    capital. Sabemos para onde este bravo Mundo Novo neoliberal nos está a
    levar.
     O único obstáculo é um movimento autónomo, popular "que não esteja
    submetido à hegemonia ideológica e cultural de movimentos 'progressistas'
    que, durante mais de 30 anos, defendem apenas os interesses culturais das
    novas classes médias em todo o mundo", diz Michea.
     Por agora, um tal movimento mantém-se no reino da utopia. O que resta é
    tentar remediar uma distopia iminente – como o apoio a uma verdadeira Frente
    Democrática Progressista – para bloquear um Brasil Bolsonaro.
     Um dos pontos altos da minha estadia em Itália foi uma reunião com Rolf
    Petri, professor de História Contemporânea na Universidade Ca' Foscari, em
    Veneza, e autor do livro absolutamente essencial A Short History of Western
    Ideology: A Critical Account .
     Passando da religião, da etnia e do colonialismo, para o projeto iluminista
    de "civilização", Petri tece uma tapeçaria devastadora de como "a geografia
    imaginada de um 'continente' que nem sequer era um continente, oferecia uma
    plataforma para a afirmação da superioridade europeia e da missão
     civilizadora da Europa".
     Durante um longo jantar numa pequena  trattoria  veneziana longe das hordas
    galopantes de  selfies,  Petrie observou como Salvini – um pequeno
    empresário da classe média – descobriu astuciosamente como canalizar uma
    profunda saudade inconsciente de uma harmoniosa Europa mítica que nunca
     voltará, tal como o pequeno-burguês Bolsonaro evoca um regresso mítico ao
    "milagre brasileiro" durante a ditadura militar de 1964-1985.
     Todos os seres conscientes sabem que os EUA mergulharam numa desigualdade
     extrema "supervisionada" por uma plutocracia implacável. Os trabalhadores
    norte-americanos continuarão a ser lixados, tal como os trabalhadores
    franceses com o "liberal" Macron. O mesmo acontecerá aos trabalhadores
    brasileiros com Bolsonaro. Como dizia Yeats, que besta imunda, nesta hora
    tão negra, se lança à liberdade de nascer?

    09/Outubro/2018
    [*] Jornalista, brasileiro, correspondente do  Asia Times.  O seu último
    livro é 2030 .
     O original encontra-se em  consortiumnews.com/... . Tradução de Margarida
    Ferreira.

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/brasil/escobar_09out18_p.html
11/10/2018

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