terça-feira, 6 de novembro de 2018
A perda da supremacia militar e a miopia do planeamento estratégico dos EUA (II)
– Um livro de Andrei Martyanov
por Daniel Vaz de Carvalho
"Para Samuel Huntington (autor de "The clash of Civilisations"), a
universalidade da cultura ocidental sofre de três problemas: é
falsa, é imoral e é perigosa. A imposição destes três parâmetros na
Rússia mostra a falácia do pensamento doutrinário dos EUA em pensar
que o mundo pode ser levado a um sistema global capitalista sob
domínio do Ocidente".
Andrei Martyanov [1]
1 - O erro de subestimar o adversário
Um dos mais graves erros estratégicos consiste em menosprezar o
adversário. Porém os EUA parecem preferir ilusões agradáveis a verdades
duras.
A economia russa é grosseiramente subavaliada em comparação com a
grotesca sobre-avaliação da economia dos EUA, muita da qual não tem nada
que ver com o que realmente define o poder de uma nação. (40)
A Rússia é sistematicamente comparada desfavoravelmente, por exemplo, à
Alemanha, mas a Alemanha não tem indústria espacial nem é capaz de
projetar um avião militar de tecnologia avançada, tal como relativamente à
indústria microeletrónica em que nenhum país pode comparar-se
consistentemente com a Rússia, à exceção dos EUA e da China, ou produzir
aviões SU-35 ou SU-57 invisíveis aos radares, nem construir estações
espaciais ou dispor da única alternativa global ao GPS, o sistema Glonass.
(39)
As sanções ocidentais à Rússia revelaram-se um fracasso, bem como a
tentativa do seu desmembramento a partir da guerra da Chechénia [2] . A
Rússia, país remanescente da supostamente derrotada União Soviética,
esteve sujeita a "especialistas" ocidentais que consideraram a destruição
da capacidade de combate das Forças Armadas russas uma "reforma" viável".
(135)
Em 2017, V. Putin em resposta a um jornalista alemão afirmou: o nosso
maior erro foi acreditarmos demasiado em vocês. Interpretaram-no como uma
fraqueza e exploraram isso. (137)
A única maneira de a Rússia poder ter um diálogo racional com os EUA e
por consequência na Europa, foi voltar a ser um superpoder. Ao mesmo tempo
era inevitável uma aproximação à China. (159) Foi isso que aconteceu.
2 - As capacidades militares atuais
Atualmente, a capacidade industrial, científica e tecnológica russa é de
primeira classe a nível mundial. (185)
Após a apresentação de V. Putin em março deste ano, a impressão é que em
termos de mísseis existe atualmente um abismo entre os EUA e a Rússia. A
Rússia baseada na tecnologia soviética que herdou, desenvolveu mísseis
capazes de trajetórias que desafiam quaisquer sistemas ABM. (219,220)
A conceção das armas russas foi feita para funcionar, pois disso depende
a sobrevivência de um país, que teve de lutar constantemente contra
inimigos externos. (181)
Já nos anos 70 a aviação soviética dispunha de misseis AS-6 capazes de
Mach- 3. A marinha soviética havia desenvolvido sistemas avançados de
misseis contra navios (ASM) não permitindo que um inimigo projetasse o seu
poder naval sobre o país.
As munições guiadas de alta precisão (PGM) foram desenvolvidas pela União
Soviética. O seu nível atual ficou patente na Chechénia e na Síria, mas
tal escapou aos "especialistas". (167)
Atualmente a Rússia dispõe de misseis de cruzeiro com alcance superior a
5 500 km. A marinha russa pode disparar misseis 3M14 com alcance superior
a mais de 2 500 km de qualquer parte do Mediterrâneo oriental ou do mar
Cáspio. O segredo está no grau de precisão com que foram disparados de
fora das fronteiras Sírias. E neste campo os EUA não têm a liderança.
(174)
O desenvolvimento das capacidade em "electronic counter-counter mesures"
(ECCM) ficou cabalmente demonstrado na passagem de um SU-24 junto ao USS
Donald Cook, em abril de 2016, paralisando os seus sistemas eletrónicos
(tema da capa do livro).
O avanço russo no processamento de sinais eletrónicos, pode ser também
evidenciado pelo facto de ter conseguido manipular o GPS e apoderar-se do
controlo das nuvens de drones que atacavam duas bases russas na Síria.
(192)
Na tecnologia submarina foi desenvolvido um sistema de propulsão não
nuclear extremamente silencioso, de "ar independente", com vantagens sobre
os nucleares. (186),
Os novos submarinos SSK dispararam 6 Kalibur 3M14 com intervalos de 6
segundos entre cada um sobre alvos na Síria em 5 de outubro de 2017. O
êxito foi o facto de se pensar tal não ser possível em submarinos daquela
classe. (185)
A Rússia dispõe de uma Força Aérea moderna e complexa, mas também
sistemas avançados de defesa aérea tornando a FA do adversário muito menos
eficaz. Mísseis X-32 podem ser disparados dos bombardeiros TU-22 M3 com um
alcance de 1 000 km e velocidade Mach 4.2. (175)
Esta situação impõe sérias limitações ao poder naval tornando
determinados espaços fechados a qualquer adversário. O aparecimento do
3M22 Zirkon (ASM Mach 8, alcance 1 000 km) mudou completamente o
equilíbrio do poder naval. São tecnologias para as quais a marinha dos EUA
não está preparada e o seu SM-6 não pode ser considerado um bom sistema
antimissil. (187)
Com o projeto 885 Severodviinsk de submarinos a energia nuclear armados
com modernos misseis de longo alcance é muito difícil conceber como podem
os EUA defender-se de um ataque massivo de misseis. (189)
Os modernos S-400 e os revolucionários S-500 de defesa aérea fecham o
espaço aéreo russo e de seus aliados a quaisquer ataques aéreos ou mesmo
balísticos. (205)
3 - Experiência em guerras
Os cinco dias em que as tropas da Geórgia treinadas, armadas e apoiadas
por "conselheiros" dos EUA, foram derrotadas por tropas russas
fronteiriças em igualdade de efetivos, mostraram a sua capacidade de
combate em ações combinadas das diversas armas. Na Ucrânia as formações
do Donbass produziram resultados que destroçaram completamente as
conceções militares de há 20 anos. Apesar de numericamente superiores as
forças de Kiev sofreram sucessivas derrotas que culminaram com dois cercos
catastróficos em Ilovaisk e Debaltsevo. (167, 168)
As capacidades eletrónicas utilizadas pela Rússia para apoiar as forças
do Donbass foram descritas pelo gen. Ben Hodges como "de fazer chorar": "o
nosso maior problema é que nunca lutámos num ambiente de comunicações
degradado e não sabemos como o fazer". Ou seja lutar num ambiente de
completa cegueira eletrónica e redes de computador suprimidas. (168, 170).
Em 2015, pequenos navios lança misseis no mar Cáspio lançaram sobre
posições do ISIS, misseis PGM 3M14 e bombardeiros estratégicos lançaram
misseis X101, tornando evidente um mundo multipolar e a dura realidade da
perda de supremacia militar dos EUA, (169)
Com um pequeno contingente na Síria, a Rússia foi capaz de ditar as
condições no terreno e na área de operações. Estes factos fizeram aumentar
a histeria anti-russa desde que o resultado da guerra se tornou evidente.
(176) Recordemos que em 2013 ministros ocidentais davam seis meses para a
"mudança de regime" na Síria.
Os EUA não podem comemorar marchas de vitória depois de terem destruído o
Iraque, o Afeganistão ou a Líbia. Os EUA não têm nada mais para comemorar
senão morte e destruição e veteranos que regressam a casa com traumas
psicológicos e envenenamento por radiações, que são ignoradas pelo seu
governo. (142)
A maioria dos conflitos em que os EUA se envolveram desde a Guerra da
Correia levaram a sangrentos resultados ou foram perdidos. (170) Afinal,
uma nação tão orgulhosa dos seus sucesso militares nunca ganhou nenhuma
guerra nos últimos 70 anos se excetuarmos o "tiro aos perus" da 1ª Guerra
do Golfo. (203) Podemos acrescentar, a "gloriosa" (vergonhosa) invasão da
pequena Granada para derrubar um governo progressista.
4 - Fragilidades geoestratégicas dos EUA
A marinha dos EUA não tem sistema de defesa contra o ataque de uma salva
de misseis hipersónicos. Isto deve-se a que os EUA continuam aplicar
rígidas e ultrapassadas doutrinas agressivas. (148)
Os EUA não têm meios contra o SU-35C russo, ou o novo SU-57, planeado
para 2019. O radar do SU-35C pode detetar aviões ditos invisíveis ao radar
a 100 km, dispondo de uma inultrapassável capacidade de manobra. A nova
tecnologia radiofotónica torna os aviões "invisíveis" (onde os EUA
gastaram milhares de milhões de dólares) obsoletos. (179)
Um ataque vindo do Polo Sul é uma contingência que os EUA têm agora que
encarar (220) Além dos Mach 8 já revolucionários, dos Mach 10 + altamente
manobráveis com alcance de 2 000 km transportados por MiG 31, estão em
produção os Avangard "deslizantes" capazes de Mach 20 (transportados até
próximo dos alvos por RS-28 Sarmat heavy ICBM ). A NATO não tem
atualmente nenhum sistema de defesa ou em perspetiva para intercetar um
único míssil com estas características. Uma salva de cinco ou seis pode
destruir qualquer grupo de batalha naval – tudo sem usar munições
nucleares. (220,222)
Os porta-aviões, principal força de ataque naval dos EUA, além de
proibitivamente caros, são alvos vulneráveis levantando sérias dúvidas
acerca do conceito estratégico naval centrado nestes meios. (145,146) A
destruição de um porta-aviões teria um impacto psicológico correspondente
aos milhares de efetivos e custo astronómico do navio e da aviação
transportada. (142)
Os porta-aviões constituem excelentes alvos para os atuais ASM
supersónicos que podem ser lançados imersos. São uma realidade para a
qual a marinha dos EUA não está preparada. Um porta-aviões pode ficar
destruído com uma salva de misseis ou ficar com a pista incapacitada por
um ataque de drones. (43)
Os EUA têm necessidade de atualizar os seu dispositivos militares. O mais
novo submarino (classe Ohio) tem 20 anos. A classe Colômbia entrará em
produção em 2021 com um custo estimado de 97 mil milhões de dólares, cerca
de 8,1 mil milhões cada, mais que o custo total do programa dissuasor
russo de 8 submarinos. (41,42)
Um simples submarino da classe Virgínia custa 2,5 mil milhões de dólares,
um custo astronómico quando comparado com os SSK russos, mais indetetáveis
particularmente no litoral do que qualquer submarino dos EUA. (188)
A defesa do país simplesmente não faz parte da História dos EUA, dado
nunca terem tido uma credível ameaça continental que os invadisse e
procedesse à aniquilação da população civil (ao contrário da Rússia).
Cerca de 70% do orçamento militar dos EUA é para combater no estrangeiro.
As armas dos EUA são itens comerciais, a sua idiossincrasia militar usa o
termo "sofisticado" em vez de "eficaz". O F-35 é muito "sofisticado" mas é
"eficaz"? Na realidade a tecnologia militar dos EUA está atrasada não
apenas em relação à Rússia mas também em relação a alguns meios aéreos do
Reino Unido e França. (179)
Somas astronómicas foram entregues ao Pentágono e seus fornecedores,
porém nenhuma tecnologia militar de classe mundial foi produzida pelo
elogiado complexo militar-industrial. Podem continuar a "investir"
prosseguindo na pesquisa de exóticas armas espaciais financiadas pela
gigantesca dívida (21,6 milhões de milhões de dólares) mas isso não vai
alterar o resultado. (191)
Ao contrário da Rússia que dispõe de um sistema profundamente escalonado
de defesa aérea e antimissil, o litoral dos EUA está praticamente sem
defesa. Os Patriot e o sistema AEGIS não são garantia contra um ataque
convencional ou mesmo nuclear de retaliação em caso de conflito em grande
escala.
Em geral, a tecnologia militar convencional dos EUA, já não falando em
conceitos operacionais desligados da realidade, é boa na sua maior parte
para lutar contra adversários fracos e subdesenvolvidos. (191) Mas se os
EUA não têm uma indiscutível superioridade convencional sobre pelo menos
dois dos maiores poderes militares - a Rússia e num menor grau a China -
qual é então a real extensão do seu domínio?
Os perigos da insanidade
A expansão da NATO para as fronteiras da Rússia, apesar das garantias
dadas em 1990, tornou evidente que o objetivo do Ocidente era ver a Rússia
removida de qualquer papel geopolítico significativo. (154) Dado que para
os EUA a existência de um nação com paridade militar é algo inaceitável.
(192) Neste sentido Hillary Clinton comparou Putin a Hitler. (96)
Os EUA permanecem no geral e militarmente uma primeira força geopolítica,
porém crescentemente têm de confrontar-se com o facto da curta era de
proclamada superioridade na guerra moderna terminou. (188)
A sua visão do mundo é baseada no poder militar. Mas esta visão está
completamente desligada do entendimento das consequências da guerra e dos
recursos necessários. (157) Contudo, não podemos pôr de parte a hipótese
de um cenário suicida dos EUA, tentando comprometer a China e a Rússia
numa guerra que se convenceriam ser um cenário convencional. (172) O
perigo reside na iliteracia militar dos neoconservadores e a sua total
alienação da realidade estratégica. (175)
A sua postura militar acabou por contribuir para a bancarrota moral e
económica da nação. Através de uma série de mal concebidas e largamente
falseadas aventuras militares, os EUA expressaram dramaticamente os
limites da sua capacidade. Excetuando uma guerra nuclear os EUA não podem
derrotar a Rússia ou a China nas suas vizinhanças geográficas. Além de que
devido à evolução da tecnologia militar, deixou de ser impossível levar os
cenários de guerra para os próprio território dos EUA. (207)
Se os EUA tivessem superioridade militar convencional não recorreriam à
opção nuclear, com o abandono do tratado IRNF (Intermediate Range Nuclear
Forces), encetando uma perigosíssima corrida às armas.
Uma escalada militar descontrolada pode levar a um muito perigoso ponto
de partida nuclear para os EUA salvarem a sua própria reputação, cada vez
mais reduzida. Isto poderia acontecer em caso de guerra com o Irão, se um
porta-aviões dos EUA fosse atingido ou os EUA tivessem de enfrentar outra
humilhação como na Síria, ou mesmo em relação à Ucrânia ou à Coreia do
Norte. (211)
A mais importante tarefa atual é portanto evitar por todos os meios
qualquer possibilidade desta autoproclamada ilusão de "nação excecional",
levar o mundo à destruição global pela frustração com que a sua própria
fraqueza fosse subitamente exposta. (213)
Ver também:
1ª parte deste artigo
A supremacia militar perdida dos EUA
O gato e o cozinheiro
The Pentagon Realised What It Has Done – the Chinese Put the US Army on
Its Knees
[1] Losing American Supremacy. The Myopia of American Strategic Planning
, Ed. Clarity Press, 2018, 308 p., ISBN 0998694754. Entre parêntesis os
números das páginas a que se referem transcrições e comentários ao texto
de AM.
[2] Sobre este tema ver "Do fim da URSS à atual russofobia – Notas de
Dimitri Rogozin, um embaixador russo junto da NATO",
resistir.info/v_carvalho/rogozin_resenha_1.html e
resistir.info/v_carvalho/rogozin_resenha_2.html
In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/v_carvalho/martyanov_resenha_2.html
6/11/2018
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário