sábado, 16 de fevereiro de 2019
Quem é o golpista Juan Guaidó
por Max Blumenthal [*] e Dan Cohen [**]
Antes do fatídico dia 22 de Janeiro, menos de um em cada cinco
venezuelanos tinha ouvido falar de Juan Guaidó. Há apenas alguns meses,
este homem com 35 anos era um personagem obscuro de um grupo de
extrema-direita politicamente marginal e associado a tenebrosos actos de
violência nas ruas. Mesmo no seu próprio partido, Guaidó não passara de
uma figura de nível médio na Assembleia Nacional dominada pela oposição e
que agora age como um órgão que despreza a Constituição da Venezuela.
Porém, após um único telefonema do vice-presidente dos Estados Unidos da
América , Michael Pence, Guaidó proclamou-se presidente da Venezuela.
Ungido em Washington como dirigente máximo do seu país, um personagem
político anteriormente desconhecido foi colocado nos palcos
internacionais como chefe de uma nação que possui as maiores reservas
petrolíferas do mundo.
Ecoando o consenso existente em Washington, o New York Times saudou
Guaidó como "um rival credível" para Maduro, com "um estilo refrescante e
uma visão capaz de levar o país em frente". O Conselho Editorial da
Blooomberg aplaudiu-o por procurar a "restauração da democracia" e o Wall
Street Journal declarou-o "um novo líder democrático". Enquanto isso, o
Canadá, numerosos países europeus, o Parlamento Europeu, Israel e o bloco
de países latino-americanos de direita conhecido como Grupo de Lima
reconheceram Guaidó como dirigente legítimo da Venezuela.
Mais de uma década de preparação
Guaidó, entretanto, parece ter-se materializado do nada; ele é, no
entanto, o produto de mais de uma década de preparação a cargo das
fábricas de mudanças de regimes geridas pelo governo dos Estados Unidos.
Juntamente com um grupo de activistas estudantis de direita, Juan Guaidó
foi treinado para minar o governo de orientação socialista da Venezuela,
desestabilizar o poder e, um dia, tomar o poder. Embora tenha sido uma
figura menor na política venezuelana, passou anos mostrando-se nos salões
de poder em Washington.
"Juan Guaidó é um personagem criado para esta circunstância", afirmou
Marco Teruggi, um sociólogo argentino e cronista da política da
venezuelana, à publicação The Grayzone. "É o produto de uma lógica de
laboratório: Guaidó é como uma mistura de vários elementos que dão forma
a um personagem que, com toda a honestidade, oscila entre o ridículo e o
preocupante".
Diego Sequera, jornalista e editor venezuelano da publicação de
investigação Misión Verdad, concordou: "Guaidó é mais popular fora do que
dentro da Venezuela, especialmente nos círculos de elite da Ivy League [1]
e Washington", disse. "É uma figura conhecida nesses meios,
previsivelmente de direita e leal às opiniões e tendências que aí se
manifestam".
Embora Juan Guaidó seja vendido como o rosto da "restauração
democrática", passou a sua carreira interna dentro da facção mais violenta
da oposição mais radical da Venezuela, colocando-se na vanguarda das
campanhas de desestabilização, uma após outra. O seu partido tornou-se
amplamente desacreditado na Venezuela e é parcialmente responsável por
fragmentar uma oposição enfraquecida.
"Esses dirigentes radicais não têm mais que 20% nas sondagens de
opinião", escreveu Luís Vicente León, principal investigador nessa área.
Segundo León, o partido de Guaidó continua isolado, porque a maioria da
população "não quer guerra, o que pretende é uma solução".
Não é democracia, é colapso
É precisamente por isso, porém, que Guaidó foi escolhido por Washington:
não se espera que instaure a democracia na Venezuela mas provoque o
colapso de um país que, nas últimas duas décadas, tem sido um baluarte da
resistência à hegemonia dos Estados Unidos. A sua ascensão significa o
culminar de um projecto de duas décadas para destruir uma forte
experiência socialista.
Desde a eleição de Hugo Chávez, em 1998, os Estados Unidos lutaram para
restabelecer o controlo sobre a Venezuela e as suas vastas reservas de
petróleo. Os programas socialistas de Chávez podem ter redistribuído a
riqueza do país e ajudado a tirar milhões da pobreza, mas tornaram-no um
alvo a abater.
Em 2002, a oposição de direita conseguiu derrubar Chávez com apoio e
reconhecimento dos Estados Unidos, mas só até que as forças armadas tenham
restabelecido a sua presidência, após uma mobilização popular de massas.
Durante as administrações norte-americanas de George W. Bush e Barack
Obama, Chávez sobreviveu a vários planos para o assassinarem, antes de
sucumbir de cancro em 2013. O seu sucessor, Nicolás Maduro, sobreviveu a
três tentativas de assassínio.
A administração Trump elevou imediatamente a Venezuela até ao topo da
lista de alvos da mudança de regime a conseguir por Washington,
qualificando o país como o principal da "troika da tirania". No ano
passado, a equipa de segurança ao serviço de Trump tentou recrutar
militares para montar uma junta ditatorial, mas o esforço falhou.
De acordo com o governo venezuelano, os Estados Unidos também estiveram
envolvidos numa conspiração com o nome de código "Operação Constituição"
para capturar Maduro no palácio presidencial de Miraflores; e numa outra
acção, designada Operação Armagedão, para o assassinar em Julho de 2017,
durante uma parada militar. Pouco mais de um ano depois, chefes da
oposição exilados tentaram matar Maduro com bombas instaladas num drone
numa parada militar em Caracas.
Experiência no "açougue dos Balcãs"
Mais de uma década antes destes acontecimentos, um grupo de estudantes da
oposição de direita foi selecionado e preparado ao pormenor por uma
academia de treino de mudanças de regime, financiada pelos Estados Unidos
para derrubar o governo da Venezuela e restaurar a ordem neoliberal.
Tratou-se de um processo de treino inserido no quadro de "exportação da
revolução" e que semeou várias "revoluções coloridas".
Em 5 de Outubro de 2005, com a popularidade de Hugo Chávez no auge e o
seu governo concretizando programas socialistas, cinco dirigentes
estudantis venezuelanos chegaram a Belgrado, Sérvia, onde começaram a ser
treinados para uma insurreição.
Os estudantes viajaram por cortesia do Centro de Acção e Estratégias
Não-Violentas Aplicadas ou CANVAS na sigla anglo-saxónica. Esta
organização é financiada em grande parte pelo National Endowment for
Democracy (NED), uma instância da CIA que funciona como o principal braço
do governo dos Estados Unidos para promover mudanças de regime;
cofinanciam-na também o Instituto Internacional Republicano e o Instituto
Nacional Democrata para Assuntos Internacionais, organizações dos dois
partidos-Estado norte-americanos. De acordo com e-mails internos dados a
conhecer pela Stratfor, uma empresa de inteligência conhecida como "a
sombra da CIA", o CANVAS "também pode ter recebido financiamento e treino
da CIA durante a luta anti-Milosevic em 1999/2000".
O CANVAS é um ramo do Otpor, um grupo insurrecional sérvio fundado por
Srdja Popovic em 1998 na Universidade de Belgrado. Otpor significa
"resistência" em servo-croata e ganhou fama internacional – e promoção ao
nível de Hollywood – ao mobilizar os movimentos que conduziram à queda de
Slobodan Milosevic.
Esta célula de especialistas em mudanças de regime opera de acordo com as
teorias do falecido Gene Sharp [2] , o chamado "Clausewitz da luta
não-violenta". Sharp trabalhou com um ex-analista dos serviços de
espionagem militares norte-americanos, o coronel Robert Helvey, para
conceber um projecto estratégico que transforma os protestos numa forma de
guerra híbrida, projecto esse para aplicar nos Estados que não se acomodam
ao domínio unipolar de Washington.
O Otpor foi apoiado pelo National Endowment for Democracy, a USAID e o
Instituto Albert Einstein de Gene Sharp. Sinisa Jikman, um dos principais
"formadores" do Otpor, revelou uma vez que o grupo chegou a receber
financiamento directo da CIA.
De acordo com um dos e-mails que um funcionário da Stratfor deu a
conhecer, depois de contribuírem para derrubar Milosevic "os jovens que
geriam o Otpor cresceram, passaram a vestir fato e gravata e projectaram o
CANVAS… Ou, por outras palavras, um grupo de 'exportação da revolução'
que lançou as sementes para várias revoluções coloridas. Ainda recebem
financiamento dos Estados Unidos e, basicamente, percorrem o mundo
tentando derrubar ditadores e governos autocráticos (aqueles dos quais os
Estados Unidos não gostam)".
A Stratfor revelou que o CANVAS "voltou a sua atenção para a Venezuela"
em 2005, depois de treinar movimentos de oposição que lideraram operações
de mudanças de regime favoráveis à NATO em toda a Europa Oriental.
A Stratfor estudou o programa de treino do CANVAS e descreveu a sua
agenda insurrecional numa linguagem surpreendentemente contundente:
"O êxito não está de forma alguma garantido e os movimentos estudantis
são apenas o começo do que poderá ser um esforço de anos para desencadear
uma revolução na Venezuela; mas os formadores são pessoas que adquiriram
experiência no 'Açougueiro dos Balcãs'. Têm aptidões fora do comum.
Quando virem cinco estudantes em cinco universidades venezuelanas
realizando manifestações simultâneas é sinal de que o treino acabou e o
trabalho real começou".
Passagem ao "trabalho real"
O "trabalho real" começou dois anos depois, em 2007, quando Guaidó se
licenciou na Universidade Católica Andrés Bello de Caracas. Mudou-se para
Washington e inscreveu-se no Programa de Governança e Gestão Política da
Universidade George Washington, sob tutela do venezuelano Luís Enrique
Berrizbeitia, um dos principais economistas neoliberais da América Latina.
Berrizbeitia é ex-director executivo do Fundo Monetário Internacional
(FMI) e passou mais de uma década trabalhando no sector energético
venezuelano sob o regime oligárquico que foi derrubado por Chávez.
Nesse ano, Guaidó contribuiu para promover comícios contra o governo
depois de este não ter renovado a licença da Radio Caracas Televisión
(RCTV). Esta estação privada desempenhou um papel de liderança no golpe de
2002 contra Hugo Chávez. A RCTV mobilizou manifestações
anti-governamentais, falsificou informações atribuindo a apoiantes do
governo a responsabilidade por actos de violência praticados por membros
da oposição e proibiu reportagens favoráveis ao executivo durante o golpe.
O papel da RCTV e de outras estações pertencentes a oligarcas na condução
da frustrada tentativa de golpe foi revelado no aclamado documentário The
Revolution Will Not Be Televised.
No mesmo ano, os estudantes reclamaram os louros por terem contribuído
para derrotar o referendo constitucional sobre o programa do governo de
Chavez para "Um socialismo do séc. XXI", mediante o qual se previa
"estabelecer o quadro legal para a reorganização política e social do
país, dando poder directo às comunidades organizadas como um pré-requisito
para o desenvolvimento de um novo sistema económico".
"Geração 2007"
Dos protestos em torno da RCTV e do referendo nasceu um grupo
especializado de activistas para a mudança do regime apoiado pelos Estados
Unidos. Chamou-se "Geração 2007".
Os formadores do CANVAS e os meios de divulgação da Stratfor
identificaram o aliado de Guaidó – um organizador de arruaças chamado Yon
Goicoechea – como um "factor-chave" para derrotar o referendo
constitucional. No ano seguinte, Goicoechea foi recompensado pelos seus
esforços com o Prémio Milton Friedman do Cato Institute for Advancing
Liberty no valor de 500 mil dólares, que ele investiu na construção da sua
própria rede política Primero Justicia.
Friedman, claro, foi o patrono dos neoliberais Chicago Boys importados no
Chile pelo ditador Augusto Pinochet para aplicar o programa económico do
regime. O Cato Institute é o think tank libertário baseado em Washington
e fundado pelos irmãos Koch, os dois principais doadores do Partido
Republicano e que se tornaram agressivos defensores da direita em toda a
América Latina.
WikiLeaks divulgou um e-mail de 2007 enviado para o Departamento de
Estado, o Conselho de Segurança Nacional e o Departamento da Defesa pelo
embaixador norte-americano na Venezuela, William Brownfield. Nele elogia
a "Geração 2007" por "ter derrotado o presidente venezuelano, acostumado a
estabelecer a agenda política". Entre os "líderes emergentes", Brownfield
identificou Freddy Guevara e Yon Goicoechea, este último "um dos mais
articulados defensores das liberdades civis dos estudantes".
Das nádegas nuas ao Vontade Popular
Cheios de dinheiro doado pelos oligarcas libertários, os grupos radicais
venezuelanos levaram para as ruas as suas táticas aprendidas com o Otpor.
Em 2009, os jovens activistas da Geração 2007 montaram a sua manifestação
mais provocatória baixando as calças em público e recorrendo às
ultrajantes táticas de guerrilha delineadas por Gene Sharp nos seus
manuais para mudanças de regime. Os manifestantes mobilizaram-se contra a
prisão de um aliado de um outro grupo juvenil, o JAVU. Este grupo de
extrema-direita "reuniu fundos de uma variedade de fontes do governo dos
Estados Unidos, o que lhe permitiu ganhar uma rápida notoriedade como
linha dura dos movimentos de oposição", segundo o livro "Construindo a
Comuna" do académico George Ciccarello-Maher.
Embora o vídeo do protesto não esteja disponível, muitos são os
venezuelanos que testemunham a presença de Guaidó como um dos principais
participantes. Não é possível confirmar estas declarações, as quais, no
entanto, são plausíveis: os manifestantes com as nádegas a descoberto eram
membros do núcleo duro da Geração 2007, a que Guaidó pertencia, e
envergavam t-shirts com a sua marca registada "Resistência!".
Em 2009, Juan Guaidó expôs-se ao público de outra maneira, fundando um
partido político para canalizar a dinâmica anti-Chávez que a sua Geração
2007 tinha desencadeado. Chamado Vontade Popular, o grupo é dirigido por
Leopoldo López, um activista de direita educado em Princeton, fortemente
envolvido em programas do New Endowment for Democracy e eleito como
presidente da Câmara de um município de Caracas que era um dos mais ricos
do país. Lopez é uma figura da aristocracia política venezuelana,
descendente directo do primeiro presidente do país, É também primo direito
de Thor Halvorssen, fundador da Fundação dos Direitos Humanos, com sede
nos Estados Unidos e que funciona como centro de marketing para activistas
apoiados pelos Estados Unidos em países que são alvos de Washington para
mudanças de regime.
Embora os interesses de Leopoldo Lopez estivessem perfeitamente alinhados
com os de Washington, as comunicações diplomáticas norte-americanas
divulgadas por WikiLeaks salientavam as suas tendências fanáticas que
acabariam por levá-lo a uma marginalização em relação às tendências
populares. Um email tornado público qualifica-o como "uma figura de
divisão dentro da oposição (…) frequentemente descrita como arrogante,
vingativa e faminta de poder". Outros destacavam a sua obsessão pelos
"confrontos de rua" e as suas "opiniões inflexíveis" como fontes de tensão
com outros dirigentes da oposição que davam prioridade à unidade e à
participação nas instituições democráticas do país.
Espremer a seca contra o povo
Em 2010, o Vontade Popular e os seus apoiantes estrangeiros
mobilizaram-se para tirar partido da maior seca que atingiu a Venezuela em
décadas. Profunda escassez de energia eléctrica atingiu o país devido à
falta de água nas barragens. A recessão económica global e o declínio dos
preços do petróleo agravaram a crise, provocando um alastramento do
descontentamento popular.
Stratfor e CANVAS – conselheiros essenciais de Guaidó e dos quadros
anti-governamentais – elaboraram um plano de elevado cinismo para
apunhalarem o coração da Revolução Bolivariana. O esquema dependia de um
colapso de 70% do sistema eléctrico do país, em Abril de 2010.
"Este poderia ser o divisor de águas, pois há pouco que Chávez possa
fazer para proteger os pobres do fracasso deste sistema", lê-se num
memorando interno da Stratfor. Tais condições provavelmente "teriam o
impacto de galvanizar a agitação pública de uma forma que nenhum grupo de
oposição poderia esperar alcançar. Naquele momento, um grupo de oposição
que melhor soubesse tirar partido da situação e virá-la contra Chávez
ficaria mais perto dos seus objectivos", salienta ainda o memorando.
Por essa altura, a oposição venezuelana recebia as generosas verbas de 40
a 50 milhões de dólares por ano de organizações governamentais dos Estados
Unidos, tanto a USAID como a NED, de acordo com um think tank espanhol, o
Instituto Fride. Além disso, extraía vantagens das suas próprias contas
bancárias, existentes sobretudo no exterior do país.
Embora o cenário descrito pela Stratfor não se tenha concretizado, os
activistas do partido Vontade Popular e os seus aliados puseram então de
lado quaisquer pretensões de não-violência e aderiram ao plano mais
radical para desestabilizar o país.
Nova "formação", agora no México
Em Novembro de 2010, segundo e-mails obtidos pelos serviços de segurança
venezuelanos e apresentados pelo ex-ministro da Justiça Miguel Rodriguez
Torres, Guaidó, Goicoechea e vários outros activistas estudantis
participaram num treino de cinco dias no hotel Fiesta Mexicana na Cidade
do México. As sessões foram conduzidas pelo Otpor, a instituição para
mudanças de regime baseada em Belgrado e apoiada pelo governo dos Estados
Unidos. A iniciativa teve a bênção de Otto Reich, um exilado cubano e
fanático anti-castrista que trabalhava no Departamento de Estado
norte-americano da administração de George W. Bush, e do ex-presidente
colombiano de extrema-direita Álvaro Uribe.
No hotel Fiesta Mexicana, segundo os emails, Guaidó e os seus colegas
activistas traçaram um plano para derrubar o presidente Hugo Chávez
gerando o caos violento e permanente nas ruas.
Três figuras de proa do sector do petróleo – Gustavo Torrer, Elígio
Cedeño e Pedro Burelli – terão coberto as despesas no hotel mexicano, da
ordem dos 52 mil dólares. Torrer é um autodenominado "activista dos
direitos humanos" e um "intelectual", cujo irmão mais novo, Reynaldo
Torrer Arroyo, é o representante na Venezuela da empresa privada de
petróleo e gás mexicana Petroquímica do Golfo, que tem um contrato com o
Estado venezuelano.
Cedeño, por sua vez, é um empresário venezuelano trânsfuga que pediu
asilo nos Estados Unidos; e Pedro Burelli é um ex-executivo do JP Morgan e
ex-director da empresa estatal petrolífera da Venezuela (PDVSA), que
abandonou em 1998 quando Hugo Chávez assumiu o poder. É membro do Comité
Consultivo do Programa de Liderança na América Latina da Universidade
norte-americana de Georgetown.
Burelli insistiu que os emails pormenorizando a sua participação foram
fabricados e contratou até um detective particular para alegadamente o
comprovar. O investigador declarou que os registos do Google revelaram que
os e-mails em causa nunca foram transmitidos.
Ainda hoje, porém, Burelli não esconde o seu desejo de ver o actual
presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, deposto – e até arrastado pelas
ruas e sodomizado com uma baioneta, como aconteceu com o dirigente líbio
Muammar Khadaffi, vítima de terroristas apoiados pela NATO.
As sangrentas "guarimbas"
A trama do Fiesta Mexicana evoluiu para outro plano de desestabilização
revelado numa série de documentos divulgados pelo governo venezuelano. Em
Maio de 2014, meios governamentais mostraram provas de uma trama de
assassínio de Nicolás Maduro encabeçada por Maria Corina Machado, de
Miami. Uma dirigente de linha dura, com tendências para a retórica
extremista, que tem funcionado como um elo internacional da oposição e foi
recebida em 2005 pelo presidente norte-americano George W. Bush.
"Acho que é hora de reunir esforços; faça os telefonemas necessários e
obtenha financiamento para liquidar Maduro, porque o resto irá
desmoronar-se", escreveu Corina Machado num email dirigido ao ex-diplomata
venezuelano Diego Arria, em 2014.
Num outro mail, Machado afirmou que a opção violenta teve a bênção do
embaixador dos Estados Unidos na Colômbia, Kevin Whitaker. "Eu já me
decidi, a luta continuará até que este regime seja derrubado e
entregamo-nos aos nossos amigos no mundo. Se fui a San Cristobal e me
expus com a presença na OEA, então nada temo. Kevin Whitaker já
reconfirmou o seu apoio e definiu os novos passos. Temos um talão de
cheques mais forte do que o do regime para quebrar o anel de segurança
internacional".
Naquele mês de Fevereiro, manifestantes estudantis que agiam como tropa
de choque da oligarquia exilada ergueram violentas barricadas em todo o
país, transformando bairros controlados pela oposição em fortalezas
violentas conhecidas como "guarimbas". Enquanto os media internacionais
retratavam a revolta como um protesto espontâneo contra o governo de mão
de ferro de Maduro, havia provas de que o Vontade Popular orquestrava o
espectáculo.
"Nenhum dos manifestantes usavam t-shirts das universidades, mas sim do
Vontade Popular e do Primero Justicia", declarou agora um dos
participantes nas guarimbas. "Podem ter sido grupos de estudantes, mas os
conselhos estudantis eram manipulados pelos partidos de oposição e são
responsáveis por eles".
Interrogado sobre quem eram os líderes do movimento, o mesmo participante
nas guarimbas disse: "Bem, para ser completamente honesto, eles agora são
legisladores".
A mão de Guaidó
Quarenta e três pessoas foram mortas durante as guarimbas de 2014. Três
anos depois irromperam de novo, provocando destruições massivas nas
infraestruturas públicas, o assassínio de apoiantes do governo e a morte
de 126 pessoas, muitas das quais chavistas. Em vários casos, partidários
do governo foram queimados vivos por gangues armados.
Guaidó esteve directamente envolvido nas guarimbas de 2014. Na verdade,
twittou um vídeo em que se exibia envergando um capacete e máscara de
gás, cercado por figuras embuçadas e armadas que tinham encerrado uma
estrada onde decorria um confronto violento com a polícia. Referindo-se à
sua participação na Geração 2007, proclamou: "Lembro-me que em 2007
gritávamos 'Estudantes!' Agora gritamos: 'Resistência! Resistência!'"
Guaidó apagou o twitt, manifestando aparente preocupação com a sua imagem
como defensor da democracia.
Em 12 de Fevereiro de 2014, no auge das guarimbas de então, Guaidó
juntou-se a Lopez no palco de um comício do Vontade Popular e Primero
Justicia. Numa longa diatribe contra o governo, Lopez instou a multidão a
marchar até às instalações da procuradora-geral, Luísa Ortega Diaz. Logo
depois, essas instalações foram atacadas por gangues armados que tentaram
queimar a procuradora depois de a arrojarem no solo. A vítima denunciou o
que qualificou como "violência planeada e premeditada".
Durante uma entrevista na TV, em 2016, Guaidó desvalorizou as mortes
resultantes de "guayas" – prática de guarimba que consiste em estender um
cabo de aço atravessando de um lado ao outro de uma estrada para ferir ou
matar motociclistas – como "um mito". Estes comentários tentaram branquear
uma armadilha mortal que assassinou civis desarmados como Santiago Pedroza
e decapitou Elvis Durán, entre outros.
Esta indiferença e insensibilidade perante a vida humana viria a
caracterizar a Vontade Popular aos olhos de grande parte do público,
incluindo muitos opositores de Maduro.
Guaidó não prestou contas à Justiça
À medida que a violência e a polarização política aumentavam em todo o
país, o governo começou a agir contra os dirigentes do Vontade Popular que
contribuíram para a situação.
Freddy Guevara, vice-presidente da Assembleia Nacional e segundo no
comando do Vontade Popular, foi o principal líder dos distúrbios de 2017
nas ruas. Foi julgado por esse facto; refugiou-se na Embaixada do Chile,
onde permanece.
Lester Toledo, membro da Assembleia do Estado de Zulia eleito pelo
Vontade Popular, foi procurado pela Justiça em Setembro de 2016 sob a
acusação de financiar o terrorismo e planear assassínios, em colaboração
com o ex-presidente colombiano, Álvaro Uribe. Toledo fugiu da Venezuela,
fez viagens e palestras organizadas por Human Rights Watch, a Casa da
Liberdade, apoiada pelo governo norte-americano, o Congresso dos Deputados
de Espanha e o Parlamento Europeu.
Carlos Graffe, outro membro da Geração 2007 treinado pelo Otpor e também
membro do Vontade Popular, foi preso em Julho de 2017. Segundo a polícia,
estava em poder de um saco de pregos, explosivos C4 e um detonador. Foi
libertado em 27 de Dezembro de 2017.
Leopoldo Lopez, líder de longa data do Vontade Popular, está sob prisão
domiciliária, acusado de ter um papel fundamental na morte de 13 pessoas
durante as guarimbas de 2014. A Amnistia Internacional definiu Lopez como
"prisioneiro de consciência" e declarou "insuficiente" a sua transferência
para o regime de detenção na residência. Enquanto isto, familiares das
vítimas das guarimbas apresentaram uma queixa com mais acusações contra
Lopez.
Yon Goicoechea, o ícone de propaganda dos irmãos Koch e fundador do
Primero Justicia, com apoio dos Estados Unidos, foi preso em 2016 pelas
forças de segurança, que alegaram ter encontrado um quilo de explosivos
no seu veículo. Num artigo no New York Times, Goicoechea protestou
contra as acusações como "uma invenção" e afirmou que tinha sido preso
simplesmente devido ao seu "sonho de uma sociedade democrática, livre do
comunismo". Foi libertado em Novembro de 2017.
David Smolansky, igualmente membro da Geração 2007, treinada pela Otpor,
tornou-se o mais jovem presidente de município da Venezuela quando foi
eleito em 2013, no subúrbio de El Hatillo. Foi destituído e condenado a 15
meses de prisão pelo Supremo Tribunal Federal por incitar à violência nas
guarimbas.
Fugiu da prisão, rapou a barba e com óculos escuros entrou no Brasil
disfarçado de padre, com uma Bíblia na mão e um rosário ao pescoço. Vive
em Washington, onde foi pessoalmente escolhido pelo secretário da
Organização dos Estados Americanos (OEA), Luís Almagro, para dirigir o
grupo de trabalho sobre a crise migratória e dos refugiados da Venezuela.
Em 26 de Julho, Smolansky realizou o que qualificou como "uma reunião
cordial" com Elliot Abrams , o criminoso do escândalo Irão-Contras agora
escolhido por Trump como enviado especial norte-americano para a
Venezuela. Abrams é conhecido por supervisionar a política clandestina dos
Estados Unidos para armar esquadrões da morte durante os anos oitenta na
Nicarágua, em El Salvador e na Guatemala.
O papel que agora lhe foi atribuído no golpe venezuelano faz temer o
lançamento de outra guerra por procuração banhada em sangue.
Quatro dias antes, Corina Machado proferira outra ameaça violenta contra
Maduro declarando que "se quer salvar a vida tem de perceber que o seu
tempo acabou".
O colapso do Vontade Popular devido à violência da campanha de
desestabilização, alienou grandes sectores de público apoiante e feriu
parcialmente a sua liderança.
Presidências sem eleições
Guaidó continuara a ser uma figura relativamente menor, tendo passado a
maior parte dos nove anos de carreira na Assembleia Nacional como membro
suplente. Oriundo de um dos Estados menos populosos da Venezuela, Guaidó
ficou em segundo lugar na sua lista das eleições parlamentares de 2015,
conquistando apenas 26% para assegurar o seu lugar na Assembleia Nacional.
Na verdade, até agora, talvez as suas nádegas fossem mais identificáveis
do que o seu rosto.
Guaidó é conhecido como presidente da Assembleia Nacional, dominada pela
oposição, mas nunca foi eleito para o cargo. Os quatro partidos da
oposição que compões a Mesa de Unidade Democrática na Assembleia decidiram
estabelecer uma presidência rotativa. A vez do Vontade Popular era a
seguinte, mas o seu presidente, Leopoldo Lopez, está em prisão
domiciliária; o segundo na chefia, Freddy Guevara, está refugiado na
Embaixada do Chile; o seguinte na ordem eleitoral seria Juan Andrés Mejía
mas, por razões que não são claras, Juan Guaidó foi o selecionado.
"Há uma hipótese que pode explicar a ascensão de Guaidó", admite Diego
Sequera, analista venezuelano. "Mejía é de classe alta, estudou numa das
universidades privadas mais caras da Venezuela e é difícil popularizá-lo,
ao contrário de Guaidó", diz. "Por um lado, Guaidó tem características
mestiças comuns, como a maioria dos venezuelanos, e parece mais um homem
do povo. Além disso, Mejía não fora exposto nos media, não poderia ser
construído a partir do nada.
Em Dezembro de 2018, Guaidó passou clandestinamente a fronteira e foi a
Washington, à Colômbia e ao Brasil coordenar o plano de manifestações em
massa durante a posse do novo mandato de Maduro. Na noite anterior à
cerimónia de posse de Maduro, o vice-presidente norte-americano, Michael
Pence, e a ministra dos Negócios Estrangeiros do Canadá, Chrystia
Freeland, telefonaram a Guaidó para lhe manifestarem o seu apoio.
Uma semana depois, o senador Marco Rubio, o senador Rick Scott e o
congressista Mario Diaz-Balart – todos oriundos da base de exilados
cubanos de direita – juntaram-se ao presidente Trump e ao vice-presidente
Pence na Casa Branca. A pedido deles, Trump concordou que se Guaidó se
proclamasse presidente, ele apoiaria.
O secretário de Estado, Michael Pompeo, encontrou-se pessoalmente com
Guaidó em 10 de Janeiro, segundo o Wall Street Journal. No entanto,
Pompeo não conseguiu pronunciar o nome de Juan Guaidó quando o mencionou
numa conferência de imprensa em 25 de Janeiro, referindo-se-lhe como "Juan
Guido".
No dia 11 de Janeiro, a página da Wikipedia de Guaidó tinha sido editada
37 vezes, o que revela um esforço para moldar uma figura até então mal
conhecida e que agora se tornara um quadro nas diligências de Washington
para mudar o governo da Venezuela. No final, a supervisão editorial da sua
página foi remetida ao Conselho de Elite de "enciclopedistas" da
Wikipedia, que o definiu como "presidente contestado da Venezuela".
Guaidó pode ter sido uma figura obscura, mas a sua combinação de
radicalismo e oportunismo satisfez as exigências de Washington. "Esta peça
interna estava em falta", disse um membro da administração Trump a
propósito de Guaidó. "Ele era a peça de que necessitávamos para que a
nossa estratégia fosse coerente e completa".
"Pela primeira vez", disse William Brownfield, o embaixador
norte-americano na Venezuela, "temos um líder da oposição que está
claramente a dar sinal às forças armadas e à polícia de que pretende
mantê-las ao seu lado".
Venha a "intervenção humanitária"
No entanto, o partido da Vontade Popular de Guaidó criou as suas tropas
de choque das guarimbas, que provocaram a morte a polícias e cidadãos
comuns. O próprio Guaidó vangloriou-se da sua participação em violentas
arruaças. Agora, para conquistar os corações e as mentes dos militares e
da polícia, Guaidó teve de apagar essa história banhada em sangue.
Em 21 de Janeiro, um dia antes do golpe, a esposa de Guaidó divulgou um
discurso em vídeo no qual apelou aos militares para se levantarem contra
Maduro. A sua performance foi tosca e desinspirada, ecoando as
perspectivas políticas limitadas do marido.
Numa conferência de imprensa perante os seus apoiantes, quatro dias
depois, Guaidó anunciou a sua solução para a crise: a realização de "uma
intervenção humanitária".
Enquanto aguarda assistência directa, Guaidó continua a ser o que sempre
foi – um projecto de estimação das cínicas forças externas. "Não interessa
se cai e se queima com todas estas desventuras", declarou Sequera sobre a
figura do golpe. "Para os americanos, ele é descartável".
05/Fevereiro/2019
(1) Tem uma conotação essencialmente desportiva mas, em geral, significa
o conjunto das oito universidades de elite do Nordeste dos Estados Unidos:
Brown, Columbia, Cornell, Dartmouth, Harvard, Princeton, Pensilvânia e
Yale
(2) Professor de Ciências Políticas da Universidade de Massachusetts
defensor da "desobediência política" e da "não violência" cujas teses têm
disso aproveitadas para desestabilizar regimes que o establishment
norte-americano pretende derrubar. As instituições por ele fundadas são
financiadas por organismos da CIA, como a NED, sobretudo quando se trata
organizar operações do tipo da que ocorre na Venezuela.
[*] Jornalista premiado, autor de vários livros, entre eles o best-seller
Gomorra Republicano, e documentários, designadamente Killing Gaza.
Fundador, em 2015, de The Grayzone Project .
[**} Jornalista e cineasta; autor de documentários e podcasts com ampla
distribuição, designadamente sobre o conflito israelo-palestino.
In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/venezuela/guaido_05fev19.html#asterisco
5/2/2019
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