segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Os perigos do neoliberalismo piedoso num Estado de austeridade

 
 


    Vijay Prashad [*]

Salários reais, 2006-2022.
<https://www.statista.com/chart/28886/global-real-wage-growth/>

O /Global Wage Report 2022-23/
<https://www.ilo.org/digitalguides/en-GB/story/globalwagereport2022-23>
da Organização Internacional do Trabalho (OIT) acompanha o terrível
colapso dos salários reais de milhares de milhões de pessoas em todo o
planeta. A enorme distância de rendimento entre os 99% da população
mundial e os 1% de multimilionários é assustadora. Durante a pandemia,
quando a maior parte do mundo sofreu uma perda dramática em seus meios
de subsistência, os dez homens mais ricos do mundo *duplicaram* suas
fortunas. Esta extrema desigualdade de rendimento, agora totalmente
normal em nosso mundo, produziu imensas e perigosas consequências sociais.

Se caminhar por qualquer cidade do planeta, não apenas nas nações mais
pobres, encontrará aglomerados cada vez maiores de moradias tomadas pela
miséria. Elas têm muitos nomes: favelas, /bastis, bidonville, daldogneh,
gecekondu, kampung kumuh, slums,/ Sodoma e Gomorra. Nesses territórios,
milhares de milhões de pessoas lutam para sobreviver em condições
desnecessárias em nossa era de enorme riqueza social e tecnologia
inovadora. Mas os quase trilionários se apoderam dessa riqueza social e
prolongam sua greve fiscal de meio século contra os governos, que
paralisa as finanças públicas e impõe austeridade permanente à classe
trabalhadora. O aperto constritivo da austeridade define o mundo dos
/bastis/ e das favelas, pois as pessoas lutam constantemente para
superar as persistentes mazelas da fome e da pobreza, uma quase ausência
de água potável e sistemas de esgoto e uma vergonhosa falta de educação
e assistência médica. Nessas /bidonvilles,/ as pessoas são forçadas a
criar novas formas de sobrevivência quotidiana e novas formas de
acreditar em um futuro para si mesmas neste planeta.

Essas formas de sobrevivência quotidiana podem ser vistas nas
organizações de autoajuda – quase sempre dirigidas por mulheres – que
existem nos ambientes mais inóspitos, como dentro da maior favela da
África, Kibera (Nairóbi, Quênia), ou em ambientes apoiados por governos
com poucos recursos naturais, como na Comuna Altos de Lídice
<https://mronline.org/2021/06/22/the-communard-union-chavezs-ideas-in-action-a-conversation-with-juan-lenzo/> (Caracas, Venezuela). O Estado de Austeridade no mundo capitalista abandonou seu dever elementar de prover auxílio, com organizações não-governamentais e instituições de caridade fornecendo soluções improvisadas para sociedades sob imenso stress.

Não muito longe das instituições de caridade, existe um elemento
persistente no planeta das favelas:   crime organizado, verdadeiras
agências de emprego do sofrimento. Esses grupos criminosos reúnem os
elementos mais aflitos da sociedade – principalmente homens – para
gerenciar uma série de atividades ilegais (drogas, tráfico sexual,
esquemas de proteção, jogos de azar). De Ciudad Nezahualcoyotl (Cidade
do México, México) a Khayelitsha (Cidade do Cabo, África do Sul) e
Orangi Town (Karachi, Paquistão), a presença de criminosos empobrecidos,
de pequenos ladrões ou malandros, a poderosos chefes de gangues, é
onipresente. No Rio de Janeiro, Brasil, os moradores da favela de
Antares chamam
<https://insightcrime.org/news/analysis/how-gangster-warlords-dominate-latin-america-slums/> a entrada do seu bairro de /“boca”,/ local onde as drogas podem ser compradas.

Neste contexto de imensa pobreza e fragmentação social, as pessoas
recorrem a diferentes tipos de religiões populares em busca de alívio.
Há razões práticas para essa mudança, é claro, uma vez que igrejas,
mesquitas e templos fornecem alimentação e educação, bem como locais
para reuniões comunitárias e atividades para crianças. Onde o Estado
aparece principalmente na forma de polícia, os pobres urbanos preferem
refugiar-se em organizações de caridade muitas vezes ligadas de uma
forma ou de outra a ordens religiosas. Mas essas instituições não atraem
as pessoas apenas com refeições quentes ou canções ao entardecer; há um
fascínio espiritual que não deve ser minimizado.

Nossas investigadoras no Brasil têm estudado o movimento pentecostal nos
últimos anos, realizando pesquisas etnográficas em todo o país para
entender o apelo dessa seita em rápido crescimento. O pentecostalismo,
uma forma de cristianismo evangélico, emergiu como uma preocupação local
porque começou a moldar a consciência dos pobres urbanos e da classe
trabalhadora em muitos países, com ideias tradicionalistas, e tem sido
fundamental nos esforços para transformar essas populações em base da
Nova Direita. O dossiê n. 59, Fundamentalismo e imperialismo na América
Latina: ação e resistência
<https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-59-fundamentalismo-religioso-e-imperialismo-latinoamerica/> (dezembro de 2022), fruto da investigação e escrito por Delana Cristina Corazza e Angélica Tostes, sintetiza a pesquisa do grupo de trabalho do escritório do Brasil do Instituto Tricontinental sobre os evangélicos, política e organização popular. O texto mapeia a ascensão do movimento pentecostal no contexto da viragem neoliberal na América Latina e apresenta uma análise minuciosa do porquê dessas novas tradições de fé terem surgido e por que elas se encaixam tão elegantemente com setores da Nova Direita (incluindo, no caso do Brasil, com as políticas de Jair Bolsonaro e do bolsonarismo).

No século XIX, um jovem Karl Marx capturou a essência do desejo
religioso entre os oprimidos:   “O sofrimento religioso”, escreveu ele,
“é, ao mesmo tempo, a expressão do sofrimento real e um protesto contra
o sofrimento real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o
coração de um mundo sem coração e a alma de condições desalmadas. É o
ópio do povo”. É equivocado supor que a viragem para formas de religião
é apenas sobre a necessidade desesperada por bens que o Estado de
Austeridade não está disposto a fornecer. Há mais em jogo aqui, muito
mais do que o pentecostalismo, que chamou nossa atenção, mas que não
está sozinho em seu trabalho nas favelas habitadas pelos pobres urbanos.
Tendências semelhantes ao pentecostalismo são visíveis em sociedades
dominadas por outras tradições religiosas. Por exemplo, os /da’wa/
[pregadores] do mundo árabe, como o televangelista egípcio Amr Khaled,
fornecem um tipo de bálsamo semelhante, enquanto na Índia, a Art of
Living Foundation e uma série de pequenos /sadhus/ [homens santos] junto
com o movimento /Tablighi Jamaat/ [Sociedade para Espalhar a Fé]
fornecem seu próprio consolo.

O que une essas forças sociais é que elas não se concentram na
escatologia, na preocupação com a morte e o julgamento que rege as
tradições religiosas mais antigas. Essas novas formas religiosas são
voltadas para a vida e para o viver (“Eu sou a ressurreição e a vida”,
de João 11:25, é uma das prediletas dos pentecostais). Viver é viver
neste mundo, buscar fortuna e fama, adotar todas as ambições de uma
sociedade neoliberal na religião, rezar não para salvar a própria alma,
mas por uma alta taxa de retorno. Essa atitude é chamada de Evangelho da
Vida ou Evangelho da Prosperidade, cuja essência é captada nas perguntas
de Amr Khaled:   “Como podemos transformar todas as 24 horas em lucro e
energia? Como podemos investir as 24 horas da melhor maneira?”. A
resposta é através do trabalho produtivo e da oração, uma combinação que
a geógrafa Mona Atia chama
<https://www.upress.umn.edu/book-division/books/building-a-house-in-heaven> de /“neoliberalismo piedoso”./

Em meio ao desespero da grande pobreza no Estado de Austeridade, essas
novas tradições religiosas fornecem uma forma de esperança, um evangelho
da prosperidade que sugere que Deus quer aqueles que lutam para ganhar
riqueza neste mundo e que mede a salvação não em termos da graça divina
no vida após a morte, mas no saldo atual da conta bancária. Através da
apreensão afetiva da esperança, essas instituições religiosas, em geral,
promovem ideais sociais profundamente conservadoras e odiosas em relação
ao progresso (particularmente em relação aos LGBTQIA+ e aos direitos das
mulheres e à liberdade sexual).

Nosso dossier, uma abertura para entender o surgimento dessa gama de
instituições religiosas no mundo dos pobres urbanos, ponta para essa
tomada da esperança de milhares de milhões de pessoas:

    Os desafios da construção de sonhos e de um futuro provoca a
    necessidade de criarmos uma esperança que pode de facto ser
    vivenciada de forma quotidiana. É também nossa tarefa resgatar nossa
    história e fazer com que a luta por direitos sociais seja traduzida
    em organização popular a partir de espaços de formação e compreensão
    da realidade, sem deixar de compreender as novas linguagens e
    possibilitar vivências de solidariedade coletiva, lazer e festa.
    Nesses esforços, é importante não negligenciar ou descartar novas ou
    diferentes formas de interpretar o mundo, como por meio da religião,
    mas sim promover um diálogo aberto e respeitoso entre elas para
    construir unidade em torno de valores progressistas compartilhados.

Este é um convite para uma conversa e uma práxis em torno da esperança
da classe trabalhadora que está enraizada nas lutas para transcender o
Estado de Austeridade, em vez de se render a ele como faz o
“neoliberalismo piedoso”.

Em fevereiro de 2013, Jabhat al-Nusra, afiliado da Al-Qaeda na Síria,
foi à cidade de Maarat al-Nu’man e decapitou uma estátua de 70 anos do
poeta do século XI Abu al-Alaa al-Ma’ arri. O velho poeta os irritou
porque muitas vezes é considerado ateu, embora, na verdade, fosse
principalmente anticlerical. Em seu livro /Luzum ma la yalzam,/
al-Ma’arri escreveu sobre as “ruínas em ruínas dos credos” nas quais um
batedor cavalgava e cantava:   “O pasto aqui está cheio de ervas
daninhas”. “Entre nós, a falsidade é proclamada em voz alta”, escreveu
ele, “mas a verdade é sussurrada… Ao Correto e a Razão são negados uma
mortalha”. Não é à toa que os jovens terroristas – inspirados por seu
próprio evangelho da certeza – decapitaram a estátua feita pelo escultor
sírio Fathi Mohammed. Eles não podiam suportar o pensamento da
humanidade resplandecente.


        22/Dezembro/2022


    [*] Coordenador da Tricontinental <https://thetricontinental.org/>,
    indiano.


Em
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/crise/vijay_22dez22.html
26/12/2022

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