Alastair Crooke – 06 de maio de 2024
*/A repressão policial aos protestos estudantis expõe a pura intolerância para com aqueles que expressam condenação contra a violência em Gaza./*
A Transformação está se acelerando. A dura e muitas vezes violenta
repressão policial aos protestos estudantis nos EUA e na Europa, na
sequência dos contínuos massacres palestinos, expõe a pura intolerância
para com aqueles que expressam condenação contra a violência em Gaza.
A categoria de ‘discurso de ódio’ promulgada em lei <https://
www.nbcnews.com/politics/congress/house-vote-antisemitism-bill-campus-
arrests-rcna150170> tornou-se tão omnipresente e fluida que as críticas
à conduta do comportamento de Israel em Gaza e na Cisjordânia são agora
tratadas como uma categoria de extremismo e como uma ameaça ao Estado.
Confrontadas com críticas a Israel, as elites governantes respondem
atacando furiosamente.
Existe (ainda) uma fronteira entre a crítica e o anti-semitismo? No
Ocidente, os dois estão cada vez mais unidos.
O atual abafamento de qualquer crítica à conduta de Israel – em
flagrante contradição com qualquer reivindicação ocidental de uma ordem
baseada em valores – reflete desespero e uma pitada de pânico. Aqueles
que ainda ocupam os lugares de liderança do Poder Institucional nos EUA
e na Europa são compelidos pela lógica dessas estruturas a seguir cursos
de ação que estão levando ao colapso do “sistema”, tanto a nível interno
– como, concomitantemente, – provocando a dramática intensificação das
tensões internacionais, também.
Os erros decorrem da rigidez ideológica subjacente em que os estratos
dominantes estão presos: a adoção de uma Israel bíblica transformada que
há muito tempo se separou do atual zeitgeist do Partido Democrata dos
EUA; a incapacidade de aceitar a realidade na Ucrânia; e a noção de que
a coerção política dos EUA por si só pode reviver paradigmas que já
desapareceram há muito tempo em Israel e no Oriente Médio.
A noção de que uma nova /Nakba/ Israelene dos palestinos pode ser
forçada garganta abaixo pelo público ocidental e global é delirante e
cheira a séculos de orientalismo antigo.
O que mais se pode dizer quando o Senador Tom Cotton posta <https://
twitter.com/SenTomCotton/status/1785731698623181069>: “/Estas pequenas
Gazas são fossas repugnantes de ódio anti-semita, cheias de
simpatizantes pró-Hamas; fanáticos e malucos”?/
Quando a ordem se desfaz, ela se desfaz de forma rápida e abrangente. De
repente, a conferência do Partido Republicano teve o nariz esfregado na
terra (por causa da falta de apoio aos 61 bilhões de dólares de Biden
para a Ucrânia <https://www.reuters.com/breakingviews/ukraines-61-bln-
lifeline-is-not-enough-2024-04-29/>); o desespero do público norte-
americano relativamente à imigração fronteiriça aberta é desdenhosamente
ignorado; e as expressões <https://www.newsweek.com/pro-palestinian-
protest-hamas-colleges-gen-z-
polls-1895668#:~:text=According%20to%20the%20poll's%20results,supported%20Hamas%20in%20the%20conflict.> de empatia da Geração Z com Gaza são declaradas como um “inimigo” interno a ser duramente reprimido. Todos os pontos de inflexão e transformação estratégica – provavelmente não.
E o resto do mundo é agora também considerado um inimigo, sendo visto
como recalcitrantes que não conseguem abraçar a recitação ocidental do
seu catecismo da “Ordem das Regras” e por falharem claramente em seguir
a linha do apoio a Israel e à guerra por procuração contra a Rússia.
É uma aposta nua e crua por poder irrestrito; um, no entanto, que está
galvanizando um retrocesso global. Está aproximando a China da Rússia e
acelerando a confluência dos BRICS. Dito de forma simples, o mundo –
confrontado com massacres em Gaza e na Cisjordânia – não cumprirá nem as
Regras nem qualquer escolha hipócrita ocidental <https://twitter.com/
MyLordBebo/status/1785412826246320512> do Direito Internacional. Ambos
os sistemas estão em colapso sob o peso de chumbo da hipocrisia
ocidental <https://twitter.com/ishaantharoor/status/1785702568775037390>.
Nada é mais óbvio do que a repreensão do Secretário de Estado Blinken ao
Presidente Xi pelo tratamento dispensado pela China aos uigures e as
suas ameaças de sanções ao comércio da China com a Rússia –
impulsionando o “ataque da Rússia à Ucrânia”, afirma Blinken. Blinken
tornou inimiga a única potência que pode evidentemente superar a
concorrência dos EUA; que tem vantagem competitiva e de manufatura em
relação aos EUA.
A questão aqui é que estas tensões podem rapidamente descambar para uma
guerra entre “Nós” e “Eles” – contra o “Eixo do Mal” da China, da Rússia
e do Irã, mas também contra o “Eixo do Mal” da China, da Rússia e do
Irã /contra/ Turquia <https://www.al-monitor.com/originals/2024/05/
turkey-seeks-join-south-africa-plaintiff-against-israel-icj>, Índia,
Brasil e todos os outros que ousam criticar a correção moral de qualquer
um dos projetos ocidentais de Israel e da Ucrânia. Ou seja, tem
potencial para se transformar no Ocidente /contra/ o resto.
Novamente, outro gol contra.
Crucialmente, estes dois conflitos levaram à transformação do Ocidente,
de autoproclamados “mediadores” que afirmam trazer calma aos pontos de
conflito, para serem a tivos /contendores/ nestas guerras. E, como
contendores ativos, não podem permitir qualquer crítica às suas ações –
seja interna ou externamente; pois isso seria sugerir apaziguamento.
Dito de forma clara: esta transformação em contendores na guerra está no
cerne da atual obsessão da Europa com o militarismo. Bruno Maçães
relaciona <https://www.newstatesman.com/international-politics/
geopolitics/2024/04/age-of-danger-ukraine-russia-trump-israel-palestine-
china-taiwan> que um “/Um alto ministro europeu argumentou-lhe que: se
os EUA retirassem o seu apoio à Ucrânia, o seu país, membro da OTAN, não
teria outra escolha senão lutar ao lado da Ucrânia – dentro da Ucrânia.
Como ele disse, por que deveria o seu país esperar por uma derrota
ucraniana, seguida por [uma Ucrânia derrotada] aumentando as fileiras de
um exército russo empenhado em novas excursões?”/
Tal proposta é simultaneamente estúpida e provavelmente levaria a uma
guerra à escala continental (uma perspectiva com a qual o ministro
anônimo parecia surpreendentemente à vontade). Tal insanidade é
consequência da aquiescência dos europeus <https://
www.eurointelligence.com/column/ukraine-is-europes-problem-now> à
tentativa de Biden de mudança de regime em Moscou. Eles queriam tornar-
se jogadores importantes na mesa do Grande Jogo, mas perceberam que lhes
faltam os meios para isso. A classe de Bruxelas teme que a consequência
desta arrogância seja o desmoronamento da UE.
Como Professor John Grayescreve <https://www.newstatesman.com/comment/
2024/04/biggest-threat-freedom-west-liberalism-itself-john-gray>:
/“No fundo, o ataque liberal à liberdade de expressão [em Gaza e na
Ucrânia] é uma tentativa de obter poder irrestrito. Ao mudar o locus
de decisão da deliberação democrática para os procedimentos legais,
as elites pretendem isolar os programas de culto [neoliberais] da
contestação e da responsabilização. A politização do direito – e o
esvaziamento da política andam de mãos dadas”./
Apesar destes esforços para cancelar vozes opostas, outras perspectivas
e compreensões da História estão, no entanto, reafirmando a sua
primazia: Será que os palestinos têm razão? Existe uma história para sua
situação? “Não, são uma ferramenta usada pelo Irã, por Putin e por Xi
Jinping”, dizem Washington e Bruxelas.
Dizem tais inverdades porque o esforço intelectual para ver os
palestinos como seres humanos, como cidadãos, dotados de direitos,
forçaria muitos Estados ocidentais a rever grande parte do seu rígido
sistema de pensamento. É mais simples e mais fácil para os palestinos
permanecerem ambíguos ou “desaparecerem”.
O futuro que esta abordagem anuncia não poderia estar mais longe da
ordem internacional democrática e cooperativa que a Casa Branca afirma
defender. Pelo contrário, leva ao precipício da violência civil nos EUA
e a uma guerra mais ampla na Ucrânia.
Muitos dos liberais Woke de hoje, no entanto, rejeitariam a alegação de
serem anti-liberdade de expressão, trabalhando sob o equívoco de que o
seu liberalismo não está restringindo a liberdade de expressão, mas sim
protegendo-a de ‘falsidades’ emanadas dos inimigos da ‘nossa
democracia’ (ou seja, o ‘contingente MAGA’). Desta forma, percebem-se
falsamente como ainda aderindo ao liberalismo clássico de, digamos, John
Stuart Mill.
Embora seja verdade que em /On Liberty/ (1859) Mill argumentou <https://
www.newstatesman.com/comment/2024/04/biggest-threat-freedom-west-
liberalism-itself-john-gray> que a liberdade de expressão deve incluir a
liberdade de causar ofensa, no mesmo ensaio ele também insistiu que o
valor da liberdade reside na sua coletividade /Utilitária/. Ele
especificou que “deve ser /Utilitária/ no sentido mais amplo /–/ baseado
nos interesses permanentes do homem /como um ser progressista/”.
A liberdade de expressão tem pouco valor se facilitar o discurso dos
“deploráveis” ou da chamada Direita.
Em outras palavras,/“Como muitos outros liberais do século XIX”,/ O
professor Gray argumenta,/“Mill temia a ascensão de um governo
democrático porque acreditava que isso significava empoderar uma maioria
ignorante e tirânica. Repetidas vezes, ele difamou as massas
entorpecidas que estavam satisfeitas com os modos de vida
tradicionais”./ Pode-se ouvir aqui o precursor do total desdém da Sra.
Clinton pelos “deploráveis” que vivem em Estados “sobrevoantes” dos EUA.
Rousseau também é frequentemente considerado um ícone da “liberdade” e
do “individualismo” e amplamente admirado. No entanto, também aqui temos
uma linguagem que esconde o seu carácter fundamentalmente antipolítico.
Rousseau via as associações humanas antes como grupos a serematuados
sobre <https://unherd.com/2022/07/ideology-has-poisoned-the-west/>, de
modo que todo pensamento e comportamento diário pudessem ser agrupados
em unidades com ideias semelhantes de um Estado unitário.
O individualismo do pensamento de Rousseau, portanto, não é uma
afirmação libertária de direitos absolutos de liberdade de expressão
contra o Estado que tudo consome. Não há levantamento do ‘tricolor’
contra a opressão.
Muito pelo contrário! A apaixonada “defesa do indivíduo” de Rousseau
surge da sua oposição à “tirania” das convenções sociais; as formas,
rituais e mitos antigos que unem a sociedade – religião, família,
história e instituições sociais. O seu ideal pode ser proclamado como o
da liberdade individual, mas é “liberdade”, no entanto, não num sentido
de imunidade ao controle do Estado, mas no nosso afastamento das
supostas opressões e corrupções da sociedade coletiva.
A relação familiar transmuta-se assim sutilmente numa relação política;
a molécula da família é dividida nos átomos de seus indivíduos. Com
estes átomos hoje preparados para se libertarem do seu gênero biológico,
da sua identidade cultural e da sua etnicidade, são novamente fundidos
na unidade única do Estado.
Este é o engano oculto na linguagem de liberdade e individualismo do
liberalismo clássico – a “liberdade” é, no entanto, aclamada como a
principal contribuição da Revolução Francesa para a civilização ocidental.
No entanto, perversamente, por trás da linguagem da liberdade jaz a /
descivilização/.
O legado ideológico da Revolução Francesa, no entanto, foi a radical /
descivilização/. O antigo sentido de permanência – de pertencer a algum
lugar no espaço e no tempo – foi evocado, para dar lugar ao seu oposto:
transiência, transitoriedade e efemeridade.
Como Frank Furediescreve <https://frankfuredi.substack.com/p/woke-is-
not-the-problem-it-is-the?utm_source=post-email-
title&publication_id=1032541&post_id=143482608&utm_campaign=email-post-
title&isFreemail=true&r=8qe6&triedRedirect=true&utm_medium=email>,
/“A descontinuidade da cultura coexiste com a perda do sentido do
passado… A perda desta sensibilidade teve um efeito perturbador na
própria cultura e privou-a de profundidade moral. Hoje, o
anticultural exerce um papel poderoso na sociedade ocidental. A
cultura é frequentemente enquadrada em termos instrumentais e
pragmáticos e raramente percebida como um sistema de normas que
conferem significado à vida humana. A cultura tornou-se uma
construção superficial que deve ser eliminada – ou alterada./
/“A elite cultural ocidental está claramente desconfortável com a
narrativa da civilização e perdeu o entusiasmo em celebrá-la. A
paisagem cultural contemporânea está saturada de um corpus de
literatura que põe em causa a autoridade moral da civilização e a
associa mais a qualidades negativas./
/“A descivilização significa que mesmo as identidades mais
fundamentais – como a que existe entre homem e mulher – são postas
em causa. Numa altura em que a resposta à questão de “o que
significa ser humano” se torna complicada – e onde os pressupostos
da civilização ocidental perdem a sua importância – os sentimentos
associados ao Wokeismo (Identitarismo) podem florescer”./
Karl Polyani, em seu /Great Transformation/ (publicado há cerca de 80
anos),mantém <https://unherd.com/2024/04/karl-polanyis-failed-
revolution/> que as enormes transformações econômicas e sociais que
testemunhou durante a sua vida – o fim do século de “paz relativa” na
Europa de 1815 a 1914, e a subsequente descida à turbulência econômica,
ao fascismo e à guerra, que ainda estava em curso na época da publicação
do livro – teve apenas uma causa única e abrangente:
Antes do século XIX, insistiu ele, o modo de ser humano sempre esteve
“incorporado” à sociedade e estava subordinado à política, aos costumes,
à religião e às relações sociais locais, ou seja, a uma cultura
civilizacional. A vida não foi tratada como separada em particulares
distintos, mas como partes de um todo articulado – da própria vida.
O liberalismo virou esta lógica de cabeça para baixo. Constituiu uma
ruptura ontológica com grande parte da História humana. Não só separou
artificialmente o “econômico” do “político”, mas a economia liberal (a
sua noção fundamental) exigiu a subordinação da sociedade – da própria
vida – à lógica abstrata do mercado auto-regulado. Para Polanyi,
isso /“significa nada menos que o funcionamento da sociedade como um
complemento do mercado”./
A resposta – claramente – era tornar a sociedade novamente uma relação
distintamente humana de comunidade, com significado através de uma
cultura viva. Neste sentido, Polanyi também enfatizou o caráter /
territorial/ da soberania – o Estado-nação como pré-condição para o
exercício da política democrática.
Polanyi teria argumentado que, na ausência de um regresso à própria Vida
como eixo da política, uma reação violenta seria inevitável. (Embora
esperemos que não seja tão terrível quanto a transformação pela qual ele
viveu.)
Fonte: https://strategic-culture.su/news/2024/05/06/the-beast-of-
ideology-lifts-the-lid-on-transformation/
Em
SAKERLATAM
https://sakerlatam.blog/a-besta-da-ideologia-inicia-a-transformacao/
6/5/2024
quarta-feira, 8 de maio de 2024
A besta da ideologia inicia a transformação
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário