sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Projecto Ucrânia completado


por Rostislav Ishchenko [*]
Putin deixou a cimeira do G20 sem esperar pelo fim do programa. É claro
que o Presidente da Rússia tem o direito de dormir na sua chegada à
Moscovo, assim como tinha de "trabalhar na segunda-feira".

É possível que Putin não pudesse dormir no avião, o qual voa "durante oito
horas para o nosso Extremo Oriente e outras oito dali até Moscovo". Mas é
difícil de acreditar que a cabina do líder de uma super-potência não
esteja equipada com uma cama – esta opção existe mesmo num jacto executivo
comum. Para pessoas que passam grande parte das suas vidas no ar
(frequentemente durante muitas horas), atravessando vários fusos horários,
isto não é apenas um luxo e sim uma necessidade. E é impossível supor que
o Ministério dos Negócios Estrangeiros ou o chefe do Protocolo Presidência
não o informasse previamente do programa da cimeira.

Portanto, Putin sabia perfeitamente bem quando a cimeira chegaria ao fim.
Em tais casos o programa costuma ser seguido até ao fim. É impossível
imaginar que os anfitriões preparem, planeiem e coordenem o evento
considerando que os hóspedes simplesmente partem quando lhes convém. Ainda
mais porque jantares e eventos culturais também são utilizados para
negociações.

Isto quer dizer que o presidente russo deliberadamente deixou a Cimeira
sem se importar sequer em dar uma explicação mais ou menos polida das suas
acções. Alguém poderia, afinal de contas, ter dito que o Presidente tinha
uma doença; excepto o desejo de dormir após um voo de dezasseis horas –
uma tal explicação teria sido insultuosa para os australianos, mas o
insulto foi feito provocadoramente.

O que provocou um tal reacção de Vladimir Vladimirovich? Mesmo se o
primeiro-ministro australiano não tivesse passado a semana inteira a
anunciar a sua intenção de agressivamente questionar Putin acerca do
Boeing da Malaysian; mesmo se o serviço de imprensa do primeiro-ministro
do Canadá não tivesse feito transpirar para os media a sua "apavorante"
exigência de que se retirasse da Ucrânia; mesmo se o media russos,
exactamente no momento da Cimeira, não houvessem miraculosamente
"descoberto" uma fotografia de um caça a jacto a derrubar o Boeing; mesmo
assim, teria sido óbvio que o principal assunto das negociações entre o
Presidente russo e líderes ocidentais tinha de ser a crise ucraniana.

Na realidade, o único interesse para a Rússia, quanto a isto, é a posição
dos EUA. O resto do ocidente respira e move-se só no modo definido por
Washington.

Considerando a acumulação de energia social explosiva numa UE em
desestabilização rápida, esta não perdurará muito embora por agora
permaneça. Uma vez que os EUA não estão a dar armas e dinheiro à Ucrânia,
não estão a permitir-lhes mesmo tentarem estabilizar a situação no país
pela concentração de poder numa única mão (a princípio eles não permitiram
que Yatsenyuk fosse eleito presidente, a seguir foi negada na Rada uma
maioria a Poroshenko e portanto a capacidade para que nomeasse o seu
candidato escolhido como primeiro-ministro), ficou claro desde há alguns
meses que Kiev foi anulada. Isto significa que faria sentido discutir com
Washington a situação "após a Ucrânia", bem como o problema de mutuamente
financiarem a sua recuperação económica e o desarmamento de gangs nazis.

O que a Rússia pode oferecer? Putin sempre deixa a possibilidade de salvar
as aparências (face-saving) aos seus oponentes. Consequentemente, as
propostas russas tinham de estar de acordo com as teses de Putin de
Fevereiro-Março. A Ucrânia deveria ser preservada como uma formação
estatal, mas reorganizada numa base federal (na prática, numa confederal).
O ocidente e a Rússia deveriam garantir em conjunto a sua neutralidade
plena e abrangente. Os direitos da população russa deveriam ser protegidos
emendando a Constituição, incluindo a introdução oficial do bilinguismo.

O problema da Crimeia será resolvido reinstalando um estado ucraniano já
sem ela. A Rússia e o ocidente arcariam em conjunto com os custos de
restaurar a economia ucraniana, incluindo até o cancelamento de velhas
dívidas podres, a abertura dos seus mercados a bens ucranianos, a redução
de preços de importações críticas, incluindo energia, bem como a concessão
de assistência financeira – nas forma de empréstimos directos ou altamente
favoráveis.

Claramente, isto seria apenas uma forma suave de transferir a Ucrânia para
a esfera de influência russa, entretanto os EUA e a UE poderiam salvar as
aparências, centrando-se no facto de que teriam actuado para "salvar" o
estado ucraniano de uma perda de soberania, bem como para a "confirmação"
do estatuto neutral da Ucrânia.

Uma vez que Putin deliberadamente deixou a Cimeira mais cedo, podemos
afirmar com segurança: os EUA rejeitaram qualquer compromisso sobre a
Ucrânia. Portanto, nos próximos dias, uma semana no máximo, começará uma
guerra em plena escala sobre todo o território daquele estado que se
esfuma. Esta guerra poderá ser conduzida em dois formatos.

Não em vão a Milícia, durante os meses de trégua, tem estado continuamente
a procurar (e a encontrar) veículos blindados pesados na estepes de
Donetsk; tem estado a atrair e treinar milhares de voluntários, incluindo
aqueles que possuem o conhecimento específico e as qualificações para
serem capazes de usar eficazmente tecnologia moderna. Todas as testemunhas
oculares asseveram que a densidade de tropas na RPD/RPL excede o previsto
e que aquelas tropas estão concentradas nuns poucos grupos com uma
formação ofensiva fortemente pronunciada. E estas tropas têm sido poupadas
– não foram enviadas para a frente de batalha. Elas deveriam assestar um
golpe mortal às autoridades de Kiev que de imediato teriam de acabar com a
frente de batalha. Este é o primeiro formato – o colapso da frente,
seguido por uma ocupação gradual do território (não apenas da Novorússia,
mas o de toda a Ucrânia). Mas isto será um processo lento, dependendo da
prontidão da Milícia e das regiões.

O segundo formato deveria trazer as regiões Central e Ocidental ao grau
desejado de prontidão (a Novorússia já está pronta). Isso é uma guerra
civil entre as autoridades de Kiev (Yatsenyuk contra Poroshenko,
Kolomoyskyi contra todos, os nazis contra os oligarcas, o Exército contra
os Guardas Nacionais, a "auto-defesa" camponesa contra os expropriadores
urbanos de comida dos "destacamentos de abastecimento", etc). Isto é o
mais terrível conflito, capaz de rapidamente dizimar vinte e cinco a
trinta por cento da população da Ucrânia e tornar aqueles que restassem
desejosos de fazer fosse o que fosse só para travar o horror.

Putin tentou impedir este enorme horror, oferecendo ao ocidente, sem
necessidade para a Rússia, a preservação da Ucrânia sob condições de
federalização e neutralidade. Este enorme horror está a ser provocado
pelos EUA. Na realidade, não está a ser provocado – foi provocado. O golpe
e a guerra civil tornaram-se inevitáveis na Ucrânia dois meses antes das
eleições parlamentares, quando ficou claro que Turchinov, Yatsenyuk e
Avakov estavam a ir às eleições não ao lado de Poroshenko, mas contra ele.
Os EUA estavam há muito à espera do momento em que os líderes de Kiev e
seus apaniguados nazis começassem finalmente a matar-se uns aos outros.

O aplicado Yatsenuk, os obedientes Avakov e Turchynov, agora despojados
dos últimos farrapos de legitimidade, neste momento estão prontos para
começar o tiroteio. Mas a segunda camada dos seus apaniguados ainda está
temerosa. A maior parte do Exército ainda apoia Poroshenko. Para dizer
isto suavemente, ela não é amistosa para com batalhões de voluntários
nazis. O colapso da frente, o qual depois do fracasso das negociações
australianas se tornou inevitável, elimina este ponto de apoio. Além
disso, Poroshenko, como comandante supremo, perderá sua credibilidade na
sociedade e nas agências de segurança.

Os EUA obtêm assim o que eles querem – uma guerra civil sangrenta e em
plena escala na Ucrânia com a liquidação dos remanescentes da economia e
do estado, e o colapso de serviços comunitários e sociais. O território
será mergulhado na Idade da Pedra numa questão de dias.

Os EUA estão à espera de que, tendo finalmente preparado "o povo
ucraniano", separarão para sempre a Rússia da Ucrânia. Além disso, sabem
que a restauração de condições de vida normais para os sobreviventes terá
de ser feita pela Rússia e a UE, o que deveria comprometer os recursos de
Moscovo e de Bruxelas, criando uma vantagem competitiva para Washington.

Estes cálculos são tão erróneos como a tentativa de Fevereiro-Março de
tentar forjar um aríete nazi anti-russo fora da Ucrânia. A maior parte do
pessoal que ali constitui um "povo ucraniano" perecerá e em breve será
finalmente perdido nas frentes da guerra civil. Daqueles "líderes da
opinião pública", os quais nos últimos vinte anos têm moldado na Ucrânia
um discurso de russofobia, os que forem particularmente felizes serão
capazes de emigrar para o ocidente e sobreviver tranquilamente na
obscuridade o resto dos seus dias. A maioria morrerá, nem que seja porque
os EUA não têm qualquer necessidade de testemunhas dos seus próprios
crimes. Mesmo aquela parte do povo que de manhã ainda começa o dia a
cuspir na direcção de Moscovo e a prostrar-se diante do ocidente, após um
curto mas eficaz banho de sangue organizado pelos políticos pró ocidentais
sob slogans pró ocidentais e, ainda mais importante, uma vez que o
ocidente se haja dissociado do destino da Ucrânia (o que logo será óbvio
mesmo para os mais eufóricos Maidan-arbeiters), odiará o ocidente pela sua
traição (artigos e blogs nesse sentido escritos pelos mais exigentes
euro-integradores já começaram a aparecer nos mass-media ucranianos).

Os restos da população da Ucrânia encontrarão as tropas (ou da Novorússia
ou russas) da mesma forma como os alemães encontraram o Exército Vermelho
em 1945 – a alinharem-se em fila diante das cozinhas de campo e absorverem
nova ideologia com as papas que lhes são servidas. Não deveríamos esquecer
que na Ucrânia foi construída uma sociedade totalitária e que a propaganda
totalitária tem uma característica – o povo começa a amar o que ontem
amaldiçoava tão logo seja mudado o foco.

Deixe-me recordar-lhes que a Ucrânia foi a mais leal das repúblicas da
URSS (mesmo mais leal do que a República Socialista Federativa Soviética
da Rússia) e que de um só golpe, após a declaração de independência, a
vasta maioria dos membros do PCUS (incluindo Kuchma, Kravchuk e
Yushchenko) subitamente se tornou patriota ucraniana e combatente
anti-comunista. A atitude do povo, da mesma forma, mudou rapidamente. Os
conscientes construtores do comunismo de ontem tornaram-se não menos
conscientes portadores de ideias de ucraniazação – russos, judeus e mesmo
tadjiques tornaram-me ucranianos mais empedernidos do que a maior parte
dos ucranianos puro-sangue.

Assim, a recusa dos EUA a comprometerem-se sobre a Ucrânia na Cimeira do
G20 na Austrália significa um pesadelo sangrento para a população daquele
antigo estado, seguido pela acessão do território para a Rússia.

O sentido de reter soberania formal desapareceu completamente e
absolutamente. Em princípio, não há razão sequer para partilhar território
com os países vizinhos da UE (Polónia, Roménia e Hungria). Dar a Galícia
banderista à Polónia agora só serviria como uma vingança subtil. Mas seria
uma pena perder o território, pois os bandeiistas seja como for podem ser
expulsos para a Polónia.

Esperançosamente, por razões objectivas, a Milícia mover-se-á lentamente
para o ocidente, de modo que quem quiser terá tempo para correr para a UE
e aderir à Europa em termos pessoais.

Na generalidade, quanto mais breve o período de liquidação mais vidas
podem ser salvas; mas que a conta de cadáveres, já acima de trinta mil,
irá a centenas de milhares é quase inevitável. Tão inevitável como dois a
três milhões de emigrantes para a Europa. Isto, no melhor caso; no pior, a
Ucrânia pode perder um quarto da sua população anterior à guerra (e nem
todos os perdidos serão emigrantes).

Bem, tudo teria de ser pago. Por estupidez, imaturidade, biscoitos da
Nuland, envelopes da Embaixada dos EUA, concessões e viagens, muitos anos
de mentiras, a inadequação da elite política e a incapacidade do povo para
avançar com uma elite diferente – o pagamento será com sangue e mais
sangue. Porque os EUA assim decidiram. Projecto Ucrânia fechado.

24/Novembro/2014
Do mesmo autor:

Political Implications of Economic Suicide

[*] Analista político, ucraniano, presidente do Centre for System Analysis
and Forecasting cuja sede era em Kiev

O original encontra-se em
dnr-news.com/stati/7992-proekt-ukraina-zavershen.html e a versão em inglês
em slavyangrad.org/2014/11/24/project-ukraine-complete/#more-4537

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
http://www.resistir.info/ucrania/putin_g20.html


28/Nov/14

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