terça-feira, 30 de agosto de 2016
A lei de bronze como lei moral
Nildo Ouriques
Não poucas vezes a consciência ingênua dos homens é governada
por leis de bronze. Leis de bronze são consideradas não
somente eternas, mas também inflexíveis. Guiados por
semelhante crença, eles julgam suficiente a adoção de uma lei
qualquer para transformar o mundo ou criar garantias contra as
paixões inerentes à vida, sempre avessa à disciplina dos
poderes. A experiência ensina que as leis de bronze se
assemelham aos postulados morais, razão pela qual a
consideração de que "um país não pode gastar mais do que
arrecada" equivale ao mandamento sagrado "não matar", "não
roubar" ou "não desejar a mulher do próximo". A violação das
regras morais tal como o desrespeito às leis de bronze
implicam em condenação sumária, castigos severos ou ainda o
inferno.
O fascínio que certas leis de bronze exercem na cabeça dos
homens e a eficácia que eventualmente podem adquirir na vida
social tampouco resistem ao confronto com o real. Neste
sentido, as leis de bronze quando exibem sua solidez cumprem
funções ideológicas, ou seja, cumprem funções de legitimação
de determinada política ou contribuem com o processo de
dominação em seu conjunto. Mas jamais serão eternas.
A lei da responsabilidade fiscal é de bronze
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) é a principal lei de
bronze em uso na sociedade brasileira. Em consequência, a
legitimação político-social para o processo de destituição da
presidente Dilma apareceu inicialmente sob a forma jurídica de
crime de responsabilidade cometido contra a lei fiscal,
obrigação de zelo absoluto de todo governante realmente
preocupado com a sorte republicana. A imprensa e os políticos
da ordem insistem que as "pedaladas fiscais" constituem crime
de responsabilidade, a despeito dos pareceres técnicos em
favor da presidente Dilma no Senado. A questão não é técnica,
obviamente; de resto, sabemos que política e verdade raramente
coincidem. A oposição tucana apelou à LRF consciente do golpe
certeiro contra a legitimidade da presidente, mas também
porque inauguraria nova cruzada moral em favor da valiosa lei
de bronze: nenhum governante pode produzir déficits, pois
estes seriam, especialmente em tempos de crise, muito nocivos
para o Estado e para o bem estar social da população.
Em perspectiva histórica, esta cruzada em favor da austeridade
e contra o déficit público atua como espécie de reforma moral
em meio à crise. Era preciso – sabe a classe dominante –
manufaturar a opinião pública favorável às políticas de
austeridade iniciadas por Dilma e agora em fase avançada de
consolidação com Temer. Neste tempo turbulento, toda economia
de recursos é necessária, razão pela qual os já minguados
programas sociais, antes motivo de orgulho dos petistas,
representam luxo porque, como acredita o homem comum, "a vida
não está fácil para ninguém". A maior parte das pessoas julga
que a crise afeta a todos negativamente e nem nos piores
pesadelos podem supor a crise como aquela oportunidade
extraordinária para os capitalistas acumularem fortunas e/ou
criarem condições para conquistar maior riqueza e poder.
Portanto, a destituição da presidente Dilma cumpre objetivos
imediatos e estratégicos. No curto prazo, justifica a
supressão de muitos direitos dos trabalhadores. No longo,
impulsionado pela força da reforma moral, abre-se tempo de
experimentação burguesa contra a ampliação do horizonte
político nacional, exatamente quando aos olhos de milhões de
pessoas o sistema político se revela miserável, intragável.
Enfim, a reforma moral em curso limita toda política no país à
enfadonha administração competente da crise no momento em que
milhões recusam com asco o fazer político burguês.
Na exaustão do sistema político emerge a figura e evidencia-se
a função de Temer. Nada mais afeito à crise que um político
com o perfil do golpista. Temer é perfeito porque "chegou lá"
pelas mãos generosas do pragmatismo petista, aquele mesmo
pragmatismo considerado até bem pouco tempo não grave
limitação política ou submissão à correlação de forças
supostamente desfavorável para avançar em direção de reformas
radicais em favor do povo, mas, ao contrário, um pragmatismo
então considerado pedra angular da astúcia e da inteligência
lulista, pretensamente capaz de agradar proletários e
burgueses em favor de alguns trocados para as classes
subalternas.
Ademais, Temer é a quintessência burlesca do bacharel
oitocentista, misto de discurso e gesto antiquado, mas
disponível à política de modernização de todas as frações do
capital e disposto a seguir com enorme convicção para o lixo
da história com direito à aposentadoria de presidente sem
culpa no cartório. Ele próprio talvez não saiba, mas ao menos
suspeita que ao tocar no teto, tocou também no fundo.
A república rentista e a lumpemburguesia
A popularidade insistentemente baixa de Temer e a estética
retrô que insinua não o tornam menos perigoso ou uma ameaça
somente evidente após o golpe, quando rompeu com seus
companheiros petistas de aventura. Um homem disposto a tomar
qualquer medida contra os trabalhadores e depois retirar-se à
vida privada, como ele próprio já anunciou, é um homem pronto
para aceitar qualquer negócio. A propósito, as recentes
denúncias de corrupção contra ele apenas elucidam sua
disponibilidade histórica para aceitar qualquer negócio.
A beligerância de Temer resulta, portanto, em algo mais
valioso que sua disposição manifesta para as transações
tenebrosas: reside no "comando" de um governo controlado sem
inibições pelos banqueiros com apoio das demais frações do
capital (comerciantes, industriais e latifundiários). Nas
circunstâncias atuais, a única fração de classe capaz de
dirigir o país é, de fato, a fração financeira, pois a
regressão da burguesia industrial é enorme e sua consciência
de classe em nada se assemelha ao comportamento clássico da
burguesia industrial inglesa do século 18, quando comandou a
revolução industrial em favor dos seus interesses. Diante da
lumpemburguesia brasileira, somente a fração financeira possui
clara capacidade de colocar as condições gerais do
funcionamento da economia mundial em seu proveito, dividindo
de maneira desigual o botim. Adeus desenvolvimentismo!
Nunca será ocioso recordar a importância do "ajuste" praticado
por Dilma para sedimentar as condições necessárias ao golpe
agora denunciado pela ex-presidente. Ela estabeleceu o fim de
seu mandato ao julgar possível a manutenção das regras do jogo
- superlucros para o capital e passividade dos sindicatos e
dos movimentos sociais - realizando a política da direita em
matéria econômica em "troca" dos minguados programas sociais
dos governos petistas. No fundo, não logrou mais do que a
digestão moral da pobreza, porque, como agora podemos ver, o
efeito dos programas sociais inéditos na história do país se
derrete feito gelo ao sol.
A força da crise solapou sem demora a ilusão. A direita
aproveitou o momento e retomou a iniciativa política no
terreno parlamentar, na imprensa e, de maneira surpreendente,
nas ruas. Os trabalhadores e suas organizações apenas
despertam da anestesia que supunha possível o fim do abismo
social nos marcos do capitalismo. A reforma moral está em
curso e seu nervo mais importante é a LRF, cujo objetivo
evidente é a perenização do princípio da austeridade contra o
povo. Somente assim podemos entender as leis contra os
direitos trabalhistas, o aperto contra os governos estaduais,
o fim do reajuste para o funcionalismo público etc. etc.
No purgatório é possível pecar
A oposição tucana ao governo dispensaria o suposto descuido de
Dilma com as contas públicas e, de fato, eles se lançariam à
luta por sua destituição sob qualquer argumento. No entanto,
foi Dilma quem permitiu a ofensiva quando os impactos sociais
do ajuste praticado pela presidente eleita com discurso de
corte keynesiano afetaram agudamente os mais pobres, negando a
promessa da campanha vitoriosa. O golpe foi fatal contra os
trabalhadores e ainda mais corrosivo nas filas da resistência
à estratégia golpista.
No entanto, a tragédia se completou somente quando, em sua
defesa, a presidente alegou que jamais desrespeitou a LRF e
que os atos ou decretos emitidos não violavam a lei de bronze
mais valiosa para a burguesia brasileira. Enquanto a escalada
oposicionista argumentava contra o "gasto sem caixa" - como se
o orçamento de um Estado guardasse alguma semelhança com as
finanças pessoais - a presidente alegava que o atraso dos
pagamentos pelo Tesouro Nacional aos bancos estatais que
financiaram gastos do governo (Bolsa Família, Plano Safra
etc.) não gerou déficits. Em sua defesa, a presidente repetiu
mil vezes que jamais desrespeitou a LRF e, em consequência,
não teria existido crime de responsabilidade.
Assim, ambos, governo e oposição, se digladiavam em combate de
morte pela mesma causa! Enfim, ainda no momento decisivo da
disputa parlamentar, o petismo manteve o pacto com os tucanos
na afirmação da "política fiscal responsável" e a renúncia a
toda manifestação de heresia na condução da política de
Estado.
Qualquer keynesiano de mediana formação saberia que a recessão
econômica inaugurada por Dilma (estoque superior a 12 milhões
de desempregados) e aprofundada por Temer tornaria a situação
fiscal ainda pior, como os números agora confirmam. A política
sem heresia, sem risco, o apego ao pragmatismo como ethos
político de conciliação de classes, chegava tragicamente ao
fim. O petismo descobriu em meio ao pesadelo que o pragmatismo
é terreno pantanoso, repleto de riscos, ao contrário do que
supunha tanto sua base social quanto seus mais importantes
"dirigentes". Ao que tudo indica, a dura lição não implica em
correção de rumos.
A lógica do petismo durante toda a crise é meramente eleitoral
e, no limite, apenas pretende disputar com tucanos o monopólio
da representação da classe dominante sem a qual acreditam ser
impossível governar o Brasil. No purgatório, o petismo não
promove a necessária autocrítica para ganhar direito à nova
vida e considera que não pode romper com as leis mais
importantes para a burguesia, mesmo que precisamente esta
fidelidade tenha sido a responsável última por sua
desmoralização pública.
A crença comum do petucanismo e a esquerda responsável
Quando FHC apresentou ao parlamento a LRF, deputados e
senadores do PT votaram contra. Corria o ano de 2000 e
Palocci, Marina Silva (sim, Marina votou contra a LRF!),
Berzoini, Waldir Pires, Nilmário Miranda e Jaques Wagner
votaram pela rejeição do projeto. Não estavam sozinhos. O
ex-candidato presidencial e peça de reposição burguesa no jogo
eleitoral, o pernambucano Eduardo Campos (PSB), também votou
contra, da mesma forma que Aldo Rebelo e Agnelo Queiroz, ambos
do PC do B. O mundo dá voltas para a direita, não?
Algum tempo depois - mais precisamente cinco anos - Palocci
(após ocupar o posto de ministro da economia) declarou que
"nós, naqueles idos de 2000, não demos apoio à lei. Foi uma
falha da bancada e eu me incluo nessa falha" (Folha de S.
Paulo, 4/5/2007). Na mesma época, o senador Aloísio Mercadante
subiu a tribuna da senado (Agência Senado, 4/05/2005) para
revelar que o governo Lula era mais zeloso que FHC no manejo
das contas públicas: "é inquestionável que a Lei de
Responsabilidade Fiscal foi muito importante para o país". A
conversão petista ao credo liberal se fazia completa e os
erros de juventude estavam, finalmente, superados.
Enfim, o PT e seus principais líderes - Lula à frente,
obviamente - assumiam plenamente a defesa dos postulados
essenciais da classe dominante ao adotar a LRF na vã tentativa
de conquistar a confiança das classes dominantes, esquecendo
que estas não necessitam dos partidos políticos e de líderes
populares para manter a situação sob controle. Não devemos,
portanto, subestimar a força das leis de bronze. Ainda quando
revelam seu poder destrutivo, as leis de bronze podem manter o
encanto sobre suas vítimas.
Não somente o PT e sua "base aliada" mantêm fidelidade ao
princípio da austeridade, mas setores da esquerda "que não se
vendeu ou se rendeu" reivindicam a necessidade de uma
"esquerda responsável", cujo lema não poderia ser mais nocivo:
o "Estado deve caber dentro do orçamento". Não é pequena a
conquista ideológica da classe dominante! A consequência
prática do simpático postulado - o Estado deve caber dentro do
orçamento - é que o povo deve viver de maneira permanente na
austeridade.
Ora, a defesa de uma esquerda responsável limitada a manter a
ação estatal nos limites de um orçamento austero rompe com a
tradição da economia política, pois, desde o século 17, a
ciência gris ensina que o orçamento é produto da riqueza
social-estatal e não o inverso. A riqueza, conceito tão
elementar quanto esquecido no Brasil, segue crescendo com a
mesma força com a qual multiplica a desigualdade social. A
burguesia brasileira - comerciantes, industriais, banqueiros,
latifundiários - professa em uníssono o respeito à austeridade
permanente como se, de fato, a praticassem e, no limite, não
pudessem viver sem ela.
No entanto, a história das crises revela que a burguesia
necessita tanto da política de austeridade (LRF) quanto da
produção de déficits. Na verdade, a produção do déficit é
ingrediente decisivo no processo de acumulação de capital
desde quando a Inglaterra criou um banco a partir da dívida
estatal e produziu o impulso capitalista necessário para se
transformar na oficina do mundo. Não fosse o consenso em
economia tão rasteiro entre nós, seria ocioso recordar
questões tão elementares da história do capitalismo,
completamente ignoradas em função do caráter ideológico do
"debate" econômico.
Teoria e práxis do rombo fiscal
A história do capitalismo contemporâneo evidencia o caráter
ideológico da lei de bronze, pois tanto o princípio da
austeridade quanto a produção do déficit depende sempre de
interesses concretos. Enfim, a lei deixa de funcionar quando a
conveniência burguesa determina; em consequência, as classes
dominantes, quando necessário, desprezaram sutil e
completamente as leis de bronze com o conhecido recurso do
assalto ao Estado. Assim, os déficits supostamente
indesejáveis se tornam inevitáveis e a defesa aberta da LRF
vai a segundo plano, em função das exigências da conjuntura. A
dívida do Estado é, finalmente, o grande negócio para os
capitalistas, razão pela qual seu pagamento religioso é também
considerado uma lei de bronze: dívidas devem ser honradas em
qualquer situação. O pagamento da dívida requer superávits
fiscais e comerciais permanentes e, em consequência, a
austeridade se transforma em imperativo político-moral.
Os capitalistas aceitam a erupção dos déficits quando a
quebradeira de empresas (geralmente monopólios) exige a
intervenção do Estado tal como ocorreu em 2007 e 2008 nos
Estados Unidos. O governo republicano de George Bush não
vacilou em utilizar recursos públicos para salvar a General
Motors, o sistema bancário, as seguradoras que estavam em
completa bancarrota pela ação de seus executivos. A extensão
do fenômeno indica quebra sistêmica, jamais produto da ação
"irresponsável de um executivo"; ao contrário, ainda que
muitos deles foram processados individualmente, ficou claro
que a administração temerária dos grandes monopólios era, na
verdade, um modelo exigido pelas regras do jogo. O Estado
então aprofundou o déficit para salvar os monopólios sem
vacilação alguma e naquele tempo ninguém - na imprensa ou nas
organizações patronais - lembrou da doutrina das contas
públicas superavitárias.
O Brasil não foge à regra, mas tem lá sua particularidade. O
quadro abaixo mostra a evolução do superávit primário, do
gasto financeiro e do resultado nominal até 2015, segundo os
dados do Banco Central (em bilhões de reais).
....................
Até 2013 os sucessivos governos do PT acumularam suculentos
superávits fiscais (superávit primário). O gasto social era
controlado com mão de ferro, a despeito da propaganda
governamental sobre os programas sociais e a ideológica
emergência de uma nova classe média num país subdesenvolvido.
Em 2014 apareceu o primeiro déficit em mais de uma década;
ainda assim, cifra modesta: apenas R$ 32,5 bilhões. Na
verdade, ao contrário do que afirma a oposição tucana, o
minúsculo déficit não era sequer capaz de fomentar ações do
governo para enfrentar um ano eleitoral, no qual, como manda o
comportamento republicano vigente, o governo colocaria a
máquina a funcionar em favor de seus candidatos. O reduzido
déficit, no entanto, não pode ocultar tema relevante: neste
ano, ocorreu fantástico crescimento do pagamento de juros,
pois enquanto 2013 a orgia financeira consumia 157 bilhões, em
2014 exigiu adicionais 343,9 bilhões! Esta rápida evolução dos
gastos com o rentismo financeiro deve-se, em primeiro lugar, à
decisão de Dilma em aplicar a ortodoxia neoliberal na condução
da política econômica. Os banqueiros pressionaram como alegam
petistas? Claro que sim! Mas quando foi diferente? Os
banqueiros pressionam há séculos os governos e aproveitam toda
crise para assaltar o Estado via dívida pública e empréstimos
externos.
A situação já insustentável piorou ainda mais em 2015 com a
política ultraneoliberal aplicada por Dilma. O déficit
primário, ou seja, o gasto do governo sem a contabilização dos
juros, alcançou R$ 111,2 bilhões; mas o déficit nominal,
aquela cifra que contabiliza o pagamento de juros, registrou
importante acréscimo: saltou para 613 bilhões (501,8 bilhões
com o pagamento de juros), quase o dobro do ano anterior.
Neste contexto, podemos entender o giro à direita operado por
Dilma quando, de maneira surpreendente para seus desavisados
eleitores, adotou sem vacilação o programa defendido por Aécio
Neves. Nenhuma surpresa, antecipo, pois a causa fundamental do
giro à direita estava escrita nas estrelas. Numa economia
dependente, comandada pelo rentismo, somente um estadista
poderia convocar o povo e mudar o rumo da economia e do
Estado.
Dilma e a cúpula petista - Lula à frente, sempre - decidiram
praticar a política do adversário derrotado com a certeza de
que não poderiam deixar a burguesia sob hegemonia tucana. Ao
adotar o programa liberal, Dilma julgou que mataria dois
coelhos com uma cajadada: segundo seus cálculos, a direita
estaria com ela na medida de seus interesses e a esquerda
julgaria que tudo poderia ser pior com Aécio, aceitando,
assim, a dura realidade.
Não se deve esquecer a pressão quase pública de Lula para
levar Meirelles ao comando da economia, indicando a
"necessidade" da rápida atuação para o insaciável apetite
rentista. Enfim, é legitimo considerar que Lula queria mais
rapidez no ajuste e todos podem recordar seu breve ativismo no
meio sindical ao afirmar que a questão decisiva não era o
pântano moral da cúpula petista, mas a crise econômica.
A súbita guinada à direita não decorria, portanto, somente da
suposta astúcia e descarado oportunismo político da direção
petista. Era, na verdade, uma imposição das condições
concretas, das exigências da república rentista e
especialmente da fração financeira da burguesia diante da
mínima ameaça de interrupção do fluxo financeiro a seu favor
em caso de inadimplência do Estado. A redução da capacidade de
pagamento permitiu a cena necessária para a mudança de rumo, o
fim da breve e precária primavera keynesiana (nova matriz
econômica) e a fatal imposição da volta à ortodoxia como se,
de fato, os políticos tivessem finalmente recuperado a lucidez
que as finanças reclamam.
A crise escancarou outro ritmo. A burguesia queria um ajuste
rápido e profundo, sem a parcimônia petista que faria tudo
exatamente igual, porém, de maneira "negociada". É claro que o
ajuste praticado por Dilma foi violentíssimo! Milhões de
desempregados em poucos meses, acelerado processo de
decadência e desnacionalização industrial, agravamento da
questão fiscal pela recessão, desvalorização da moeda e certa
inflação para corroer o poder de compra dos salários. A crise
financeira do Estado - diretamente proporcional à força da
política de juros praticada pelo governo via Banco Central -
era de fato inocultável, mas Dilma não somente vetou a
auditoria da dívida como insistiu na natureza fiscal de um
problema sob o qual já não tinha controle.
Na cabeça dos keynesianos a política econômica deveria
defender a indústria nacional, mas eles parecem ignorar os
efeitos destrutivos do Plano Real sobre a burguesia
industrial. De fato, a participação da indústria de
transformação no PIB era, em 2004, de quase 18% e declinou, em
2015, para 9%. Tal como no poema de Drummond, "burguesia
industrial já não há". E agora José?
Não está na força da burguesia, mas precisamente em seu
raquitismo industrial, a origem do protagonismo da FIESP na
Avenida Paulista nas manifestações de massa contra um governo
acuado moralmente e decidido a recompor o pacto de classe sem
ativismo sindical e popular. Os economistas keynesianos
estavam roucos de tanto gritar desde a UNICAMP por "outra
política econômica" centrada no "fortalecimento do emprego e
renda", mas sofriam a mesma solidão do Planalto: quais forças
sociais os apoiavam?
A falta de realismo apareceu na tentativa tão desesperada
quanto ingênua do "compromisso pelo desenvolvimento", no qual
a CUT, Força Sindical, UGT, CTB, NCST e CSB pelos
trabalhadores e a CNI, Anfavea, Abimaq, Abit entre outras
entidades patronais defendiam o "melhor dos mundos possíveis"
onde - alimentados por imensa ilusão de classe - garantir o
desenvolvimento do país. Era beco sem saída, a vida comprovou.
Não é fácil tentar pacto com a lumpemburguesia.
Um golpe de classe?
A burguesia brasileira, sempre dirigida pelo capital
financeiro, não vacilou diante da oportunidade. Uma vez
instalado o governo, Temer colocou Henrique Meirelles e Ilan
Goldfajn, dois falcões da rapina financeira, no comando dos
postos mais importantes da república. Com velocidade
invejável, os dois trataram de convencer a opinião pública de
que o rombo das contas públicas era muito pior do que mentiam
os petistas. Na exata medida em que incluíam no cálculo todo
tipo de dívidas com o claro objetivo de inflacionar a conta
final, estavam conscientes que a profundidade do ajuste seria
proporcional ao volume do déficit. A mágica cifra de 170
bilhões de reais recompunha parcialmente a necessidade de
seguir financiando o rombo na exata medida em que alimentava
ainda mais o rentismo e, de quebra, permitia ligeira margem de
manobra para o governo gastar por conta alguns bilhões para as
necessidades da "base aliada" num ano de eleições municipais.
Os dias atuais revelam, portanto, o crescimento do déficit e a
austeridade caminhando juntas. Déficits para financiar frações
do capital e austeridade sobre o povo. A ideologia do
sacrifício, tal como no cristianismo dominante, acompanha a
ideologia da austeridade como se após este período de ajuste -
duro, porém necessário - todos seríamos agraciados com uma
política de renda e emprego novamente. No entanto, as classes
dominantes não escondem o jogo e o governo anuncia que o vale
de lágrimas não será passageiro: nada de frouxidão ou excessos
nos próximos 20 anos!
Keynes na periferia
Com a LRF o liberalismo de direita julgou que tinha assegurado
um valioso instrumento contra os governantes, especialmente
importante contra o "populismo", considerado inclinação
natural dos latino-americanos na irresponsabilidade com os
assuntos de Estado. No entanto, o sono tranquilo durou pouco
porque as exigências da vida são mais fortes.
Em 2007/2008, a crise abalou os países centrais, com epicentro
nos Estados Unidos e exigiu que o Estado - sim, aquele mesmo
ogro filantrópico da consagrada expressão de Octavio Paz -
abandonasse a antiga ladainha da "não intervenção na economia"
e aos olhos atônitos do discípulo liberal concedesse aparente
razão ao keynesiano intervencionista.
Nos Estados Unidos os déficits são permanentes, ainda que em
2015 tenha sido o mais baixo em 8 anos, segundo dados do
Departamento do Tesouro. A cifra tocou os 439 bilhões de
dólares, quantia 9% inferior a 2014. As fontes indicam que é o
mais baixo desde 2007, quando a crise eclodiu com força nos
países centrais. Ninguém com duas moléculas de realismo
defendeu nos Estados Unidos um "orçamento equilibrado" e o fim
do "déficit" para arrumar a economia. Lá, a teoria é outra.
Existe, obviamente, a ideologia do combate aos déficits, mas
foi esclarecedor observar como Bush, um republicano avesso aos
subsídios keynesianos, tirou o cheque e cobriu rombos
bilionários dos grandes monopólios em 2007 e 2008, quando a
General Motors, os bancos e as seguradores foram à bancarrota
após a orgia da liberalização... É grande a diferença entre a
burguesia dos países centrais e a lumpemburguesia dos países
latino-americanos!
Num breve texto de 1925 (Am I a liberal?), Keynes declarou a
impossibilidade de assumir o Labour Party na Inglaterra porque
este representava uma classe antagônica à sua origem social.
Esperto, na mesma medida em que evitou o trabalhismo
britânico, Keynes simulou distância do conservadorismo e
adiantou-se na defesa do que chamou "Justiça e o bom senso".
Neste contexto, alegou que "... the class war will find me on
the side of the educated bourgeoisie" (a luta de classes me
encontrará sempre ao lado da burguesia educada), bordão
abre-alas para certo ativismo keynesiano de corte
progressista.
Agora, os keynesianos - Luiz Gonzaga Belluzzo talvez seja o
mais visível deles - se dizem "heterodoxos" e de certa maneira
a autodefinição serve como caminho fácil para ocultar - por
conveniência ou ignorância - as raízes ortodoxas de seu mestre
mais famoso. Tal comportamento evita o tema da conversão, tão
decisivo na fé quanto na ciência. Enfim, Keynes nem sempre foi
um keynesiano, tal como o reconhecemos agora. Ao keynesianismo
brasileiro lhe falta dentes para morder e, de fato, eles
assumiram há tempos a ideia ortodoxa, segundo a qual os
"fundamentos da economia" devem ser sólidos e não convém
brincar com política fiscal (déficits fiscais).
Por esta razão toleraram durante uma década a LRF, pois,
apesar dela, conseguiam vender suas ilusões por meio de
governos petistas com reduzidos programas sociais e a feliz
suposição de uma "nova matriz econômica". O pacto de classe
funcionou e os programas sociais permitiram aos "heterodoxos"
fazer de conta que os custos do processo dependiam da
superexploração dos trabalhadores sem a qual nada funciona.
Durante todos estes anos, os keynesianos silenciaram sobre a
guerra de classes, ao contrário de seu mestre mais ilustre. O
famoso tripé - política monetária austera, câmbio flutuante e
taxa de juros elevada -, considerada expressão da
racionalidade científica representa, na verdade, os interesses
das distintas frações de classe racionalizadas pelo
economista. A ideologia dos economistas não raro é produto de
deficiências teóricas graves, mas é decisivo entender o limite
do keynesianismo nacional também como manifestação da ausente
base material, ou seja, a inexistência de uma burguesia
industrial ascendente. Temos exatamente o oposto!
Aquela tirada de Keynes segundo a qual "a luta de classes me
encontrará sempre ao lado da burguesia educada" é até
simpática em termos literários, mas rigorosamente falsa no
solo histórico latino-americano. Aqui, uma burguesia educada -
que, de fato, tampouco existiu nos países centrais! - seria um
luxo não fosse apenas um desejo irrealizável do bom mocismo
político brasileiro e seu corolário, a colaboração de classes
em prejuízo dos trabalhadores.
André Singer, ex-porta voz de Lula, manifestou como ninguém a
"descoberta" nas vésperas da votação contra a presidente:
segundo o professor da USP, era muito significativo que a luta
de classes tivesse voltado à cena "trazida pela direita e pelo
capital". Arrematou atônito: "Isso é surpreendente. Por que
essa ofensiva diante de um projeto, de um governo que o tempo
todo tentou conciliar, desde 2003 até agora, e jamais apostou
na ruptura e no enfrentamento?"
Nas condições do capitalismo dependente latino-americano, a
crise evidenciou a margem de manobra reduzida para os pactos
róseos que a maior parte do sindicalismo e dos economistas
heterodoxos defendeu. A realidade atropelou todas as ilusões.
Não sabemos por quanto tempo estas mesmas ilusões podem ainda
comandar as esperanças ingênuas dos homens. Não oculto certo
otimismo neste difícil momento, pois, diante da ofensiva do
capital, os trabalhadores podem entender que nada devem
esperar da lumpemburguesia brasileira e, em consequência, nada
têm a perder. Exceto, é claro, aqueles velhos grilhões que os
mantêm atados ao sistema que os explora e oprime.
PS: agradeço a Mauricio Mulinari os dados da tabela e também
as permanentes conversas que temos mantido nos últimos anos.
In
CORREIO DA CIDADANIA
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=11939:sobre-as-leis-de-bronze-da-lumpemburguesia&catid=72:imagens-rolantes
25/8/2016
O grande bluff da robotização
As previsões catastrofistas das
últimas décadas sobre a destruição de empregos pela automatização nunca se
confirmaram. As profecias atuais dos gurus da “economia de partilha” trazem uma
nova ideologia segundo a qual o emprego, a classe assalariada e as pensões
estão ultrapassadas. Artigo de Michel Husson.
Numerosos estudos anunciam-nos que a automatização vai levar a uma
grande hecatombe de empregos (Husson, 2015 a)). Ao mesmo tempo, a desaceleração
da produtividade inquieta os economistas oficiais e Christine Lagarde, a
presidente do FMI, até invoca uma “nova mediocridade”. Este artigo examina esta
contradição.
Um velho refrão
Os discursos proféticos sobre as destruições de empregos não são de
hoje. Já tivemos direito ao mesmo refrão com a “nova economia” no início do
século e depois com as previsões sobre o “fim do trabalho” de Jeremy Rifkin
(1996), o mesmo que celebrará um pouco mais tarde “o sonho europeu” (2004), do
qual se sabe que se transformou em pesadelo.
Se recuarmos mais no tempo, temos o famoso relatório Nora-Minc sobre a
“informatização da sociedade” (1978), que anunciava já os enormes ganhos de
produtividade que nunca viriam a chegar, tal como lembrou excelentemente Jean
Gaudrey (2015).
Este tipo de previsões são o tema favorito dos gurus que contam
periodicamente a mesma fábula. Vinte anos depois das suas previsões futuristas,
no ano 2000, Alain Minc revisitava as suas ilusões, sob a forma de autocrítica
implícita: “Como foi, desse ponto de pista, a fantasia informática!
Evidentemente, nem o surgimento dos computadores mais potentes, nem a explosão
da microinformática, cumpriram esse papel salvador: desempenharam o seu papel
na modernização do aparelho produtivo, mas não mudaram os principais parâmetros
da economia (…) Não foi a aguardada panaceia”.
Mas Minc não desanima. Com a e-economia, desta vez é que é:
“Estou convencido que desta vez entramos num autêntico ciclo Kondratiev.
Entre a informática e a multimedia (sic) existe uma diferença fundamental. Uma
mudança tecnológica só induz um novo ciclo de crescimento se tiver influência
simultânea sobre a oferta e a procura. Por um lado, melhorando a eficácia do
aparelho produtivo ao parmitir ganhos massivos de produtividade; por outro
lado, fazendo nascer, ao nível do consumidor, produtos realmente novos,
suscetíveis de mudar os seus hábitos de consumo”.
A produtividade
desacelera
Uma década e uma crise mais tarde, já não sobra nada destes problemas.
Para já mantém-se o paradoxo de Solow: “veem-se computadores em todo o lado,
menos nas estatísticas da produtividade” (1987). A desaceleração da produtividade
é de facto hoje em dia um fenómeno praticamente universal e que não é bem
compreendido pelos economistas. O Financial Times de 29 de maio de 2016
inquieta-se com este “quebra-cabeças desconcertante”, enquanto Christine
Lagarde evoca uma “nova mediocridade”. Os dois gráficos seguintes mostram o
deslocamento para baixo dos ganhos de produtividade, um fenómeno quase
universal que também abarca os chamados países emergentes.
Os especialistas:
de 1 a 5
O estúdio de referência é o de Frey e Osborne (2013): prevê que 47% dos
empregos estão ameaçados pela automatização nos Estados Unidos. Os outros
estudos são simples cópias, por exemplo, o do gabinete Roland Berger que trevê
a destruição de três milhões de empregos em França desde agora até 2025
(Neveux, 2014).
Outros contributos são, porém, claramente menos alarmistas. Georg Graetz
e Guy Michaels (2015) não encontram “efeito significativo dos robôs industriais
no emprego global”. Outro especialista destes temas, David Autor (2015),
pergunta-se ironicamente “porque é que ainda há tantos empregos” e introduz a
diferença fundamental entre tarefas e empregos: “embora algumas das tarefas
efetuadas pelos empregos com qualificação média estão expostas à automatização,
muitos destes empregos continuarão a mobilizar um conjunto de tarefas que
compreendem o conjunto do espectro das qualificações”.
É na base desta distinção entre empregos e tarefas que um recente estudo
da OCDE (Arntz, Gregoory e Zierahn, 2016) chega a um número muito inferior
(cinco vezes menos) das previsões mais alarmistas: “apenas 9% dos empregos
estão confrontados nos EUA a uma forte possibilidade de serem automatizados
[‘automatibility’] em vez de 47%, segundo Frey e Osborne”. Este resultado foi
obtido a partir de uma rigorosa crítica do seu método (ver quadro),
aplicando-se a todos os estudos que o retomam.
Frey e Osborne: um método
questionável
Como é que os dois economistas (embora trabalhem em Oxford) conseguem
prever a evolução do emprego “sobre um certo número, indeterminado, de anos,
talvez uma ou duas décadas”?
Eles começarm por selecionar 70 postos de trabalho entre os 702 da sua
base de dados. Depois dirigem-se aos “especialistas” e colocam-lhes esta
questão: “As tarefas correspondentes a este emprego podoa, ser suficientemente
especificadas, sob reserva de disponibilidade de big data, para ser efetuadas
pelos mais recentes equipamentos controlados por computador (state of the
art)”.
As avaliações dos especialistas são em seguida alargadas ao conjunto dos
702 postos de trabalho considerados, sobre a base de uma correlação com outras
características que lhes servem de indicadores dos obstáculos (bottlenecks) à
informatização. Mas esta extrapolação não é legítima, já que apenas pode
estabelecer, justamente, as correlações que não dizem nada sobre a proporção de
empregos automatizáveis para as 632 categorias “em 702” não “especializadas”.
A maquinização do
trabalhador
Vale a pena descrever os obstáculos à automatização identificados por
Frey e Osborne. Uma primeira categoria reagrupa as exigências de dexteridade e
as constrições ligadas à configuração do posto de trabalho. A seguir vem a
inteligência criativa, ou seja, a vivacidade intelectual ou as disposições
artísticas. Mas a última categoria, batizada “inteligência social”, dá um
arrepio na espinha e merece ser tratada com mais detalhe. Aqui estão, segundo
Frey e Osborne, os outros obstáculos à informatização:
– a perspicácia social, que consiste em compreender as reações dos
outros e as razões desses comportamentos;
– a negociação, dito de outra forma, o ato de tentar conciliar os pontos
de vista diferentes;
– a persuasão, que permite levar os outros a mudar de ponto de vista ou
de comportamento;
– a preocupação com os outros (colegas, clientes, pacientes), na forma
de assistência pessoal, de cuidados médicos ou outros de apoio emocional.
Esta enumeração permite compreender até que ponto a automatização dos
processos de produção está concebida como uma “maquinização” dos trabalhadores.
O obstáculo a erradicar são as disposições – simplesmente humanas – que
constituem o coletivo de trabalho e que permitem que se estabeleçam relações
sociais entre produtores e utilizadores. O ideal, típico do capitalismo, no
fundo consiste em levar ao paroxismo a reificação das relações sociais, que
transforma a relação entre seres humanos em relações entre mercadorias.
Ganhos de
produtividade e duração do trabalho
A ideia muito espalhada segundo a qual os ganhos muito elevados de
produtividade seriam a causa do desemprego e anunciariam o fim do trabalho está
hoje completamente desmentida. Os ganhos de produtividade eram muito elevados
durante o período dos “Trinta Gloriosos”, caracterizado por um quase pleno
emprego. E o auge do desemprego é concomitante com o esgotamento dos ganhos de
produtividade.
Admitamos até que seja credível a ameaça de destruições massivas de
emprego e imaginemos uma sociedade que, por um golpe de varinha mágica, só
teria necessidade de metade do tempo de trabalho necessário para assegurar o
mesmo nível de vida. Esta poderia decidir que metade dos produtores continue a
trabalhar tanto como antes e que a outra metade seria “dispensada” do trabalho,
beneficiando de um rendimento. Mas poderia também aproveitar-se da vantagem
tecnológica para dividir ao meio o tempo de trabalho de cada um(a).
Deixemos de lado a fábula e olhemos o que se passou no século XX: nesse
período a produtividade horária do trabalho multiplicou-se por 13.6 e a duração
do tempo de trabalho caiu 44%. Resumindo, trabalhamos a meio tempo em relação
aos nossos bisavós e caso assim não fosse o desemprego teria alcançado níveis
insuportáveis.
Isto não se fez “naturalmente”: são as lutas sociais que asseguraram
essa redistribuição dos ganhos de produtividade na forma de redução do tempo de
trabalho e não apenas de aumento de salários. A história das lutas sociais
ficou marcada pelos combates sobre o tempo de trabalho.
E até a OCDE (2016) evoca essa possibilidade sempre aberta: “mesmo se a
necessidade de mão de obra é menor num país em particular, isto pode
traduzir-se numa redução do número de horas tralhadas e não necessariamente por
uma queda no número de empregos, como constataram numerosos países europeus ao
longo das últimas décadas”.
Os limites da
automatização capitalista
A automatização liga-se às diferentes formas do que a seguir se chama a
economia numérica, de que a “uberização” é a manifestação mais mediatizada.
Alguns veem nela uma explicação possível do paradoxo de Solow. Para Charles
Bean (2016), ex-economista chefe do Banco de Inglaterra, este paradoxo teria
origem especialmente “do facto que uma parte crescente do consumo se
dirige a produtos numéricos gratuitos ou financiados por outros meios, como a
publicidade. Ainda que os bens virtuais gratuitos tenham claramente valor para
os consumidores, estão claramente excluídos do PIB, de acordo com as normas
estatísticas internacionais. Por conseguinte, as nossas medidas poderiam não
levar em conta uma parte crescente da atividade económica”.
Para corrigir esta tendência, Bean propõe dois métodos: “Podiam usar-se
os salários médios para estimar o valor do tempo que as pessoas passam online
utilizando os produtos numéricos gratuitos, ou então corrigir a produção de
serviços de telecomunicações para ter em conta o rápido crescimento da
Internet.”
O professor da London School of Economics comete aqui um erro revelador,
confundindo valor de uso e valor de troca. O “valor” que representa para o
consumidor a escuta de música online representa um valor de uso mas não um
valor de troca. É a sociedade do “custo marginal zero” que teoriza Rifkin
(2014), que talvez não se engane sobre este ponto ao prognosticar “o eclipse do
capitalismo”.
De facto, a generalização da economia numérica não é forçosamente
compatível com a lógica capitalista de produzir e vender mercadorias: estas
podem ser completamente virtuais e desmaterializadas, mas devem rentabilizar o
capital. Analogamente, a robotização deve não apenas ser rentável, mas também
dispôr de saídas. Se verdadeiramente devia conduzir a uma destruição massiva de
empregos, colocar-se-ia a questão de saber a quem vender as mercadorias
produzidas pelos robôs. Seria preciso aprofundar estas pistas para atualizar o
princípio avançado por Ernest Mandel (1979:550): “A automatização geral na
grande indústria é impossível no capitalismo tardio. Esperar essa automatização
generalizada antes de derrubar as relações de produção capitalistas é. pois,
tão incorreto como esperar a abolição das relações de produção capitalistas
através do mero avanço da automatização”.
Estão em causa a
estrutura e o estatuto dos empregos
O ponto de vista aqui defendido não questiona a amplitude das
transformações incluídas pela economia numérica, mas dirige-se às avaliações
catastrofistas dos seus efeitos sobre o emprego. No entanto, o conjunto dos
estudos disponíveis, incluídos os mais céticos, insistem sobre o impacto dessas
mutações sobre as estruturas do emprego e o seu estatuto. Tomemos o exemplo de
Industria 4.0, um projeto desenvolvido na Alemanha para a automatização
inteligente das fábricas (smart factories) através dos “sistemas ciberfísicos”
que asseguram melhor coordenação e reatividade dos robês. Um estudo recente
(Wolter, Mönnig, Hummel et. al., 2015) considera – como outros já citados – que
os efeitos sobre o emprego global seriam reduzidos. Não podemos cair no story
telling de observadores fascinados por essas mutações tecnológicas e das que
fazem os profetas.
Esse é tipicamente o caso de Bernard Stiegler (2016), que numa breve
entrevista que resume bem o seu discurso, afirma que “existem hoje fábricas sem
operários: a Mercedes arrancou com uma fábrica que apenas emprega quadros”. Ao
qual um comentador (Christian) responde com este desmentido bem informado: “A
Mercedes, uma fábrica sem operários? Gostava de saber onde. Engana-se se pensa
em Hambarch e a fábrica Smart. É justamente aí que a barreira da fábrica é mais
restritiva: tudo está subcontratado, ou quase, através da montagem de módulos
pelos subcontratados que utilizam a mão de obra. A montagem destes módulos é
feita por alguns operários Smart e todos os quadros desempenham o papel de
interface entre os diferentes interlocutores”.
Pelo contrário, estes novos processos de produção induziriam
transferências importantes de mão de obra entre postos de tratalho e setores,
orientados para empregos mais qualificados. Desde há várias décadas, as
mutações tecnológicas desempenham já um papel essencial na “tripolarização” dos
empregos: os empregos altamente qualificados, de um lado, e os empregos pouco
qualificados por outro, vêm aumentar a sua participação no emprego total. E
baixa a participação dos empregos intermédios. Este movimento combina-se com a
mundialização e as deslocalizações da mão de obra nos chamados países
emergentes (Husson, 2015 b) e contribui para o aprofundamento das desigualdades
no interior da classe assalariada.
Segundo uma hipótese otimista, esta evolução poderia ser corrigida
mediante uma elevação geral das qualificações, assegurando assim um auge de
competitividade que já não estaria baseada nos baixos salários. Mas esta
perspetiva não é forçosamente uma via real suscetível de criar empregos em
número suficiente e adaptados às estruturas das qualificações.
O “colaborativo”
contra a classe assalariada
É aqui que intervém a economia numérica e, em particular, as plataformas
que proporcionam pequenos trabalhos a trabalhadores chamados “independentes”:
podemos nomear a AirBnB, BlaBlaCar, Task Rabbit, YoupiJob, Frizbiz ou até o
Turc mecânico da Amazon. Esta economia de “partilha”, “colaborativa” ou “para a
procura”, exerce um efeito corrosivo sobre as instituições da classe
assalariada. Como observa a OCDE na sua síntese já aqui citada: “A duração
legal do trabalho, o salário mínimo, o subsídio de desemprego, os impostos e as
prestações estão sempre baseadas na noção de uma relação clássica e única entre
o assalariado e o empregador”.
Com o desenvolvimento do trabalho independente, acrescenta a OCDE, “um
número crescente de trabalhadores arrisca-se a ficar excluído dos contratos
coletivos. Pode também acontecer que não tenha direito às prestações de
desemprego e aos regimes de pensões e saúde de que os assalariados beneficiam e
que tenham dificuldades para conseguir um crédito. No momento atual, os
trabalhadores independentes não têm direito às prestações de desemprego em 19 dos
34 países da OCDE e em 10 países não têm direito às prestações de acidentes de
trabalho”.
Mas aí também, as novas tecnologias não têm muito que ver, Não existe de
facto nenhuma relação entre o peso do trabalho independente e a parte do
emprego nos setores de alta tecnologia. Haveria mais no sentifdo contrário,
como mostra o gráfico, retirado de Patrick Artus (2016), que sugere que “o
desenvolvimento do trabalho independente [poderia] simplesmente permitir evitar
a proteção do emprego assalariado”.
A era dos gurus
Quais são, ao fim e ao cabo, as possibilidades de extensão desta
economia “colaborativa” e dos estatutos de trabalho degradado que a acompanham
com muita frequência? Para alguns, “nenhuma filial fica de fora”, como
reivindica com orgulho The Family, uma “incubadora” de start-up, para quem o
emprego, a proteção ocial, os transportes, as pensões, etc. estão ameaçadas
pelos “bárbaros”.
Esta problemática suscitou o aparecimento de profetas e gurus
desigualmente inspirados, que funcionam em redes por vezes concorrentes e dão
provas de uma grande habilidade para obter subsídios do Estado ou de grandes
empresas. Olhemos mais de perto para mostrar como o fascínio tecnológico dos
grandes iniciados serve para difundir uma nova ideologia segundo a qual o
emprego, a classe assalariada e as pensões estariam hoje ultrapassadas. Segundo
dizem, seria inútil e reacionário querer “fazer voltar atrás a roda da
história”, em vez de inventar os meios para adaptar-se ao movimento impetuoso
do progresso tecnológico. Constrói-se assim um discurso multiforme, que exalta
a “transversalidade” contra a “verticalidade”, o “nomadismo” contra o
“sedentarismo”, a “reforma” contra o “conservadorismo”. Pede à maioria dos
seres humanos que se adaptem às inevitáveis mudanças e a renunciar a toda a
forma solidária de organização social. Insiste na ideia de que “o trabalho
acabou” e que a única compensação que se pode querer é um (pequeno) rendimento
no marco de uma sociedade de apartheid (Dessus, 2016). Todas estas previsões
têm finalmente como ponto comum exortar os povos a abandonar todo o projeto de
controlo sobre o seu destino.
Artigo publicado na revista Viento Sur. Traduzido por Luís Branco
para o esquerda.net.
Referências
Arntz, T. G., Zierahn, U. (2016) “The Risk of Automation for Jobs in
OECD Countries”, OECD, http://goo.gl/jDVvbz
Artus, P. (2016) “Les travailleurs indépendants: évolution normale du marché du travail avec le numérique ou contournement de la protection de l’emploi salarié?”, 7 de junio, http://goo.gl/LudQIp
Autor, D. G. (2015) “Why Are There Still So Many Jobs? The History and Future of Workplace”, Journal of Economic Perspectives, vol.29, n°3, http://goo.gl/aTrgis
Bean, Ch. (2016) “Measuring the Value of Free”, Project Syndicate, 3 de mayo,http://goo.gl/4Kpq8P
Dessus, B. (2016) “Revenu universel : le risque d’apartheid”, AlterEcoPlus, 27 de mayo, http://goo.gl/wh1qYn
Frey, C. B. y Osborne, M. A. (2013) “The future of employment: how susceptible are jobs to computerisation?”, septiembre, http://goo.gl/NrIsjq
Gadrey, J. (2015) “Le mythe de la robotisation détruisant des emplois par millions”, blog Alternatives économiques, 1-2 de junio, http://goo.gl/2hq6Vi
Graetz, G. y Michaels, G. (2015) “Robots at Work”, CEPR Discussion Paper10477, marzo, http://goo.gl/VUGXWL
Husson, M. (2015 a)) “Estancamiento secular: ¿un capitalismo empantanado?”, Viento Sur, 21 de junio de 2015, http://goo.gl/W5j7yG
Husson, M. (2015 b)) “La formación de una clase obrera mundial”, A través del espejo, nº 1, http://goo.gl/QeWwht
Mandel, E. (1979) El capitalismo tardío. México:
Era Minc, A. (2000) www.capitalisme.fr. París: Grasset, http://goo.gl/uhSuxn
Neveux, C. (2014) “Les robots vont-ils tuer la classe moyenne?”, Le Journal du Dimanche, 26 de octubre, http://goo.gl/qqMQOE
Nora, S. y Minc, A. (1978) «Línformatisation de la société», La documentation française, http://goo.gl/DYKvjj
OCDE (2016), “Automatisation et travail indépendant dans une économie numérique”, mayo, http://goo.gl/vQFVMt
Rifkin, J. (1996) El fin del trabajo. Barcelona: Planeta, http://goo.gl/xWJMZC
(2004) El sueño europeo. Barcelona: Paidós
(2014) La sociedad de coste marginal cero. Barcelona: Paidós
Solow, R. (1987) “We'd Better Watch Out”, New York Times Book Review, 12 de julio, http://goo.gl/u2mTjh
Stiegler, B. (2016) “Je propose la mise en place d’un revenu contributif”, LeMonde.fr, 11 de marzo, http://goo.gl/S5x0Qn
Wolter, M. I., Mönnig, A., Hummel, M. et al. (2015), “Industrie 4.0 und die Folgen für Arbeitsmarkt und Wirtschaft”, IAB Forschungsbericht, nº 8http://goo.gl/aIpV8Q
Artus, P. (2016) “Les travailleurs indépendants: évolution normale du marché du travail avec le numérique ou contournement de la protection de l’emploi salarié?”, 7 de junio, http://goo.gl/LudQIp
Autor, D. G. (2015) “Why Are There Still So Many Jobs? The History and Future of Workplace”, Journal of Economic Perspectives, vol.29, n°3, http://goo.gl/aTrgis
Bean, Ch. (2016) “Measuring the Value of Free”, Project Syndicate, 3 de mayo,http://goo.gl/4Kpq8P
Dessus, B. (2016) “Revenu universel : le risque d’apartheid”, AlterEcoPlus, 27 de mayo, http://goo.gl/wh1qYn
Frey, C. B. y Osborne, M. A. (2013) “The future of employment: how susceptible are jobs to computerisation?”, septiembre, http://goo.gl/NrIsjq
Gadrey, J. (2015) “Le mythe de la robotisation détruisant des emplois par millions”, blog Alternatives économiques, 1-2 de junio, http://goo.gl/2hq6Vi
Graetz, G. y Michaels, G. (2015) “Robots at Work”, CEPR Discussion Paper10477, marzo, http://goo.gl/VUGXWL
Husson, M. (2015 a)) “Estancamiento secular: ¿un capitalismo empantanado?”, Viento Sur, 21 de junio de 2015, http://goo.gl/W5j7yG
Husson, M. (2015 b)) “La formación de una clase obrera mundial”, A través del espejo, nº 1, http://goo.gl/QeWwht
Mandel, E. (1979) El capitalismo tardío. México:
Era Minc, A. (2000) www.capitalisme.fr. París: Grasset, http://goo.gl/uhSuxn
Neveux, C. (2014) “Les robots vont-ils tuer la classe moyenne?”, Le Journal du Dimanche, 26 de octubre, http://goo.gl/qqMQOE
Nora, S. y Minc, A. (1978) «Línformatisation de la société», La documentation française, http://goo.gl/DYKvjj
OCDE (2016), “Automatisation et travail indépendant dans une économie numérique”, mayo, http://goo.gl/vQFVMt
Rifkin, J. (1996) El fin del trabajo. Barcelona: Planeta, http://goo.gl/xWJMZC
(2004) El sueño europeo. Barcelona: Paidós
(2014) La sociedad de coste marginal cero. Barcelona: Paidós
Solow, R. (1987) “We'd Better Watch Out”, New York Times Book Review, 12 de julio, http://goo.gl/u2mTjh
Stiegler, B. (2016) “Je propose la mise en place d’un revenu contributif”, LeMonde.fr, 11 de marzo, http://goo.gl/S5x0Qn
Wolter, M. I., Mönnig, A., Hummel, M. et al. (2015), “Industrie 4.0 und die Folgen für Arbeitsmarkt und Wirtschaft”, IAB Forschungsbericht, nº 8http://goo.gl/aIpV8Q
In
ESQUERDA.NET
28/8/2016
Assinar:
Postagens (Atom)