terça-feira, 23 de agosto de 2016
A lógica do capitalismo neoliberal
por Prabhat Patnaik [*]
O capitalismo é um sistema "espontâneo" no sentido de que a sua dinâmica
se caracteriza pelo desdobramento de certas tendências imanentes, tais
como a mercantilização de tudo, a destruição da produção pré capitalista e
o processo de centralização do capital. Levanta-se a questão: qual é o
papel do Estado nesta dinâmica espontânea do capitalismo? Em geral o
Estado numa sociedade capitalista ajuda esta dinâmica, removendo entraves
e acelerando a operação das suas tendências imanentes. Entretanto pode
haver certas conjunturas históricas em que a correlação de forças de
classe é tal que o Estado pode ter de actuar para restringir a
espontaneidade do capitalismo.
A conjuntura do pós guerra foi uma dessas, quando o enorme crescimento do
campo socialista, o surto de confiança da classe trabalhadora nas
metrópoles e a ascensão das lutas anti-coloniais de libertação no
terceiro mundo, conjugaram-se para colocar uma séria ameaça à própria
existência do sistema. A descolonização e a instituição da intervenção do
Estado na "administração da procura" para assegurar altos níveis de
emprego nas metrópoles (a qual assumiu mesmo a forma de medidas de Estado
Previdência nos países da Europa onde a ameaça socialista era mais
séria), foram caminhos pelos quais o sistema enfrentou esta ameaça
existencial, com o Estado capitalista a actuar em certa medida para
restringir a espontaneidade do sistema, embora de modo algum para
eliminá-lo (pois isso é impossível enquanto o sistema existe). Além
disso, nas economias descolonizadas, os Estados que se constituíram fora
da [comunidade] de países socialistas, embora de carácter burguês no
sentido de promover o desenvolvimento capitalista, devido à herança da
luta anti-colonial também actuaram para restringir a espontaneidade do
sistema.
Mas a própria centralização do capital verificada durante este período
criou acumulações financeiras maciças cujo impulso para abolir fronteiras
nacionais que restringiam sua liberdade de movimento inaugurou o actual
regime de globalização que se caracteriza pela globalização do capital e,
acima de tudo, da finança. O Estado-nação sob este regime perde sua
autonomia face à globalização da finança, uma vez que qualquer movimento
da sua parte para actuar de uma maneira oposta às exigências da finança
provoca uma fuga financeira e portanto uma crise interna. Portanto, os
Estados-nação de facto mais uma vez promoveram, ao invés de restringir, as
tendências imanentes do capital. As políticas através das quais eles assim
o fazem são aquilo a que chamamos as políticas neoliberais. O
neoliberalismo, em suma, restaura a "espontaneidade" do capitalismo".
Encarar o Estado neoliberal como a "retroceder" em favor do "mercado" é
enganoso – o Estado actua de acordo com as exigências do capital
financeiro internacional e da oligarquia corporativa-financeira interna
integrada com ele e, com isso, ajuda a "espontaneidade" do sistema.
ASSALTO À PEQUENA PRODUÇÃO
Uma vez que uma importante tendência imanente é a destruição da pequena
produção pré capitalista, esta reafirmação da "espontaneidade" do sistema
capitalista mostra-se, inter alia, como um assalto à pequena produção,
incluindo a agricultura camponesa, por toda a parte. A crise agrária e os
suicídios de camponeses que assistimos na Índia na era neoliberal são
simplesmente a expressão deste assalto. Eles ocorrem não porque a
agricultura seja "abandonada" sob a administração neoliberal, como
habitualmente se pensa, mas por causa desta mesma administração.
Os mecanismos através dos quais se verifica este assalto à pequena
produção constituem o que Marx chamou o processo de "acumulação primitiva
de capital". Se bem que a acumulação primitiva seja logicamente distinta,
e ocorra historicamente antes, do que se pode chamar a acumulação "normal"
de capital estudada pormenorizadamente no Capital, ela não está
confinada só ao período anterior àquele em que o capitalismo se pôs de pé.
Ao contrário, ela ocorre através de toda a história do capitalismo,
utilizando colonialismo como sua arma principal, como Marx observou nos
seus escritos sobre a Índia. O Estado colonial efectuou esta acumulação
primitiva a expensas dos pequenos produtores através dos processos
paralelos de "drenagem de excedente" e "desindustrialização", ao passo que
o Estado neoliberal utiliza outros instrumentos (como vemos abaixo), mas a
sua manifestação na forma de uma crise da pequena produção permanece a
mesma. Em suma, a actual crise agrária é uma re-emergência, embora sob
circunstâncias mudadas, da prolongada crise agrária da era colonial que
fora interrompida por algum tempo durante a era dirigista.
Não [significa] que na era dirigista não houvesse acumulação primitiva
de capital: a expulsão de arrendatários (tenants) que assinalou a
transição rumo à agricultura capitalista da variedade junker durante
este período foi um exemplo óbvio disto. Mas isto foi acumulação primitiva
a verificar-se dentro da economia agrária, não infligida pelo grande
capital a partir de fora. Agora, verifica-se além disso que tal acumulação
primitiva infligida a partir de fora pelo grande capital e pelo Estado
neoliberal (o qual ao invés de aparentemente pairar acima das classes e
cuidar dos interesses de "todos" torna-se preocupado acima de tudo com a
promoção dos interesses da oligarquia corporativo-financeira). Pode-se
pensar que quanto a isto não há necessidade de distinguir entre a era
dirigista e a era neoliberal uma vez que a acumulação primitiva ocorre
sob ambas. A questão entretanto é que a acumulação primitiva da espécie
que se verifica neste último período é sobreposta à acumulação primitiva
verificada durante o período anterior, a qual também continua no período
posterior. É isto que explica a virulência da crise agrária de hoje.
O assalto à agricultura camponesa assume duas formas. Uma, constituindo
acumulação primitiva em termos de "fluxo", implica um esmagamento de
rendimentos da agricultura e portanto da lucratividade (tal como o que o
sistema fiscal efectuou no período colonial). A outra, constituindo
acumulação primitiva em termos de "stock", implica uma transferência de
activos dos camponeses a preços vis ("throwaway"), muitas vezes sem o
seu consentimento, para corporações e desenvolvedores imobiliários para
projectos de "infraestrutura" ou "industriais" (além das transferências
que se verificam dentro da economia agrária para latifundiários). Mesmo
quando é obtido consentimento, ele não é de todos os produtores
dependentes de um lote de terra particular; a compensação não é paga
igualmente a todos os produtores. Aqueles que são excluídos perdem
evidentemente seus direitos sobre a terra em troca de nada (incluindo
direitos costumeiros) e são as vítimas óbvias da acumulação primitiva em
termos de "stock".
Esta última questão tem sido muito discutida; vamos portanto
concentrar-nos nela. Um certo número de medidas tomadas pelo regime
dirigista para melhorar a resiliência e lucratividade da agricultura foi
desfeito sob o regime neoliberal, esmagando o campesinato até o ponto em
que mesmo a reprodução simples se torna impossível para grande número
deles, resultando em suicídios de camponeses (mais de 200 mil na última
década e meia). Entre estas estão: acabar o isolamento da agricultura
camponesa das vicissitudes das flutuações de preços do mercado mundial que
o dirigismo proporcionava por meio de tarifas e restrições quantitativas;
colocar camponeses em contacto directo com multinacionais do agro-negócio
e corporações internas sem a almofada protectora do Estado; fazer subir
preços de inputs através da retirada de subsídios do Estado, exigido pelo
facto de que recursos orçamentais fluem cada vez mais para grandes
corporações; reduzir a investigação e desenvolvimento agrícola em
instituições públicas; terminar serviços públicos de extensão agrícola;
cortes severos no investimento público na agricultura; uma retirada
progressiva de crédito institucional para o sector de modo a que
camponeses tenham de contrair empréstimos a taxas exorbitantes de uma
classe de novos usurários; e privatização de serviços essenciais como
educação e saúde o que os torna inacessíveis para trabalhadores rurais.
Também se podem listar medidas semelhantes que afectam outros segmentos de
pequenos produtores: pescadores, artesãos, fiadores e tecelões.
A acumulação primitiva de capital que destrói a pequena produção e
liberta trabalhadores para o desemprego não teria provocado o sofrimento
que provocou se aqueles "libertados" pela sua destruição houvessem sido
absorvidos significativamente dentro do "exército de trabalho activo". Ele
não o foram e a razão para isso está na remoção de outra restrição à
"espontaneidade" que o dirigismo havia imposto, nomeado sobre o ritmo da
mudança tecnológica e estrutural. Em consequência a taxa de crescimento da
produtividade do trabalho tem sido tão alta que, apesar das taxas de
crescimento aparentemente altas do PIB, a taxa de crescimento do emprego
tem sido demasiado diminuta para absorver sequer o crescimento natural da
força de trabalho, muito menos os pequenos produtores deslocados à procura
de empregos. Certamente o crescente desemprego relativo provocado por isto
não se manifestou como tal: ele assumiu a forma de uma proliferação de
emprego precário, emprego em tempo parcial, emprego intermitente e
desemprego disfarçados (muitas vezes camuflado como "micro
empreendedorismo"). O racionamento de emprego em grande medida apagou a
própria distinção entre exércitos de trabalho activos e de reserva como
entidades separadas. Isto por um lado resultou numa proliferação do lumpen
proletariado e por outro numa estagnação ou mesmo declínio dos salários
reais dos trabalhadores organizados.
Mesmo que tomemos o período 2004-05 a 2009-10 que supostamente
testemunhou crescimento rápido do PIB e que limitemos a nossa atenção ao
que o NSS chama de "status habitual" do emprego como um indicador
aproximado do emprego correcto, descobrimos que a taxa de crescimento de
tal emprego foram uns meros 0,8 por cento ao ano, bem abaixo da taxa de
crescimento da própria população (e portanto, aproximadamente, da força de
trabalho natural) ainda que ignoremos os pequenos produtores deslocados à
procura de emprego. Segue-se portanto que para os trabalhadores como um
todo, incluindo trabalhadores agrícolas, camponeses e pequenos produtores
e trabalhadores de colarinho não branco, tem havido uma deterioração
absoluta das condições de vida reais sob o neoliberalismo. Isto se deve
ao facto de que a característica essencial de um regime neoliberal é
infligir um processo virulento de acumulação primitiva de capital numa
situação de geração de emprego diminuta, o qual também foi exactamente o
caso sob o regime colonial.
O paralelo com a crise agrária do período colonial fica sublinhado se
olharmos os números da produção cerealífera. A produção líquida média
anual per capita de cereais no quinquénio 1897-1902 foi de 201,1
quilogramas para a "Índia Britânica", a qual declinou para 146,7 no
quinquénio 1939-44 (os números subsequentes são afectados pela partição).
Isto foi um declínio maciço, de mais de 25 por cento, o qual mostra a
severidade da crise agrária. No entanto este declínio foi revertido e
houve uma melhoria no período pós independência, até o início da
"liberalização": o número para a União Indiana como um todo ascendeu para
178,77 kg no triénio concluído em 1991-92. Contudo, o período da
"liberalização" assistiu mais uma vez a um declínio: a produção
cerealífera líquida anual per capita do triénio acabado em 2012-23 (a qual
é comparável com a do triénio anterior) foi de 169,52 kg.
Significativamente, o declínio na disponibilidade líquida per capita de
cereais também acompanhou este declínio da produção, o que demonstra a
afirmação feita anteriormente acerca da deterioração das condições de
vida dos trabalhadores como um todo. A produção líquida anual per capita
de cereais, a qual é definida como produção líquida menos exportações
líquidas menos acréscimos líquidos a stocks (embora por razões práticas só
stocks do governo sejam considerados), ascendeu de 152,72 kg no quinquénio
1951-55 para 177 kg no quinquénio terminado em 1991-92. Para o triénio
terminado em 2012-13, este número desceu para 172,1 kg.
DECLÍNIO DA ABSORÇÃO ALIMENTAR
Este declínio na absorção alimentar que estes números sugerem também é
confirmado pelos números da ingestão de calorias per capita. A percentagem
da população rural com acesso a menos de 2200 calorias por pessoa por dia
(a qual é a referência para definir pobreza rural) aumentou de 58,5 em
1993-94 (o primeiro inquérito NSS do período de "liberalização" para 68 em
2011-12. A percentagem de população urbana com acesso a menos de 2100
calorias por pessoa por dia (a referência para definir pobreza urbana)
aumentou de 57 em 1994-94 para 65 em 2011-12. Em termos de fome, a Índia
agora classifica-se abaixo da África sub-Saariana e também no que a ONU
chama "os países menos desenvolvidos" ("the least developed countries,
LDCs"). O facto da fome crescente contradiz afirmações oficiais acerca do
declínio da pobreza, mas isto não é surpreendente uma vez que as
afirmações oficiais baseiam-se num método espúrio de estimar a pobreza.
Este método define uma "linha de pobreza" para o ano base como um nível de
referência da despesa (à qual as normas de calorias são cumpridas) e então
actualiza-o para anos posteriores utilizando um índice de preços no
consumidor a fim de estimar quantas pessoas caem abaixo desta linha. Tais
índices de preços no consumidor, contudo, subestimam seriamente a inflação
de preços real: eles não levam em conta o aumento no custo de vida devido
à privatização de serviços essenciais como educação e cuidados de saúde.
A ascensão do PIB per capita numa situação de absoluta deterioração das
condições de vida dos trabalhadores implica um aumento maciço da fatia do
excedente no PIB, a qual explica o aumento extraordinário em desigualdades
de rendimento e riqueza durante o período da liberalização, como é
evidente por exemplo na ascensão do número de indianos bilionários. Ela
também explica (num período em que a realização do excedente em ascensão
não tem sido um problema devido ao boom) o enriquecimento visível de um
segmento da classe média. O rendimento deste segmento é ou derivado
directamente deste excedente, exemplo, da sua despesa com consumo de luxo
e de actividades associadas à sua extracção, ou dependente do seu
crescimento (o qual é o reino da finança). Além disso, a comutação de um
conjunto de actividades tais como serviços relacionados com tecnologia de
informação (IT) de países metropolitanos para a economia indiana, a qual
faz parte de um fenómeno de transferência ("outsourcing") para o
terceiro mundo que caracteriza a era actual da globalização, também
contribui para o seu crescimento. Entretanto, o crescimento deste segmento
da classe média talvez seja menor em termos da sua dimensão numérica
relativa do que em termos do seu rendimento relativo em relação ao
trabalhadores.
Os ciclos de expansão (booms) sob o capitalismo neoliberal são
tipicamente associados à formação de bolhas de preços de activos. O
prolongado boom capitalista mundial que foi sustentado primeiro pela
"bolha dotcom" e a seguir pela "bolha habitacional" e que está subjacente
ao boom do período de liberalização na economia indiana, chegou ao fim,
sem novas bolhas à vista no futuro previsível. Os dias tranquilos do
neoliberalismo estão acabados, o que portanto traz para a agenda histórica
uma luta pela sua transcendência. Isto pode ser uma luta combinada, dos
trabalhadores que têm sido suas vítimas, e de segmentos da classe média
que até agora têm sido seus beneficiários mas actualmente estão à beira de
tempos árduos. Mas precisamente por causa desta possibilidade, o
capitalismo neoliberal também promoverá tendências fascistas e
semi-fascistas a fim de dividir o povo. Reagir a estas tendências é o meio
pelo qual a esquerda e as forças democráticas podem avançar.
14/Agosto/2016
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2016/0814_pd/logic-neo-liberal-capitalism . Tradução
de JF.
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/patnaik/patnaik_14ago16.html
22/8/2016
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