terça-feira, 30 de agosto de 2016
A lei de bronze como lei moral
Nildo Ouriques
Não poucas vezes a consciência ingênua dos homens é governada
por leis de bronze. Leis de bronze são consideradas não
somente eternas, mas também inflexíveis. Guiados por
semelhante crença, eles julgam suficiente a adoção de uma lei
qualquer para transformar o mundo ou criar garantias contra as
paixões inerentes à vida, sempre avessa à disciplina dos
poderes. A experiência ensina que as leis de bronze se
assemelham aos postulados morais, razão pela qual a
consideração de que "um país não pode gastar mais do que
arrecada" equivale ao mandamento sagrado "não matar", "não
roubar" ou "não desejar a mulher do próximo". A violação das
regras morais tal como o desrespeito às leis de bronze
implicam em condenação sumária, castigos severos ou ainda o
inferno.
O fascínio que certas leis de bronze exercem na cabeça dos
homens e a eficácia que eventualmente podem adquirir na vida
social tampouco resistem ao confronto com o real. Neste
sentido, as leis de bronze quando exibem sua solidez cumprem
funções ideológicas, ou seja, cumprem funções de legitimação
de determinada política ou contribuem com o processo de
dominação em seu conjunto. Mas jamais serão eternas.
A lei da responsabilidade fiscal é de bronze
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) é a principal lei de
bronze em uso na sociedade brasileira. Em consequência, a
legitimação político-social para o processo de destituição da
presidente Dilma apareceu inicialmente sob a forma jurídica de
crime de responsabilidade cometido contra a lei fiscal,
obrigação de zelo absoluto de todo governante realmente
preocupado com a sorte republicana. A imprensa e os políticos
da ordem insistem que as "pedaladas fiscais" constituem crime
de responsabilidade, a despeito dos pareceres técnicos em
favor da presidente Dilma no Senado. A questão não é técnica,
obviamente; de resto, sabemos que política e verdade raramente
coincidem. A oposição tucana apelou à LRF consciente do golpe
certeiro contra a legitimidade da presidente, mas também
porque inauguraria nova cruzada moral em favor da valiosa lei
de bronze: nenhum governante pode produzir déficits, pois
estes seriam, especialmente em tempos de crise, muito nocivos
para o Estado e para o bem estar social da população.
Em perspectiva histórica, esta cruzada em favor da austeridade
e contra o déficit público atua como espécie de reforma moral
em meio à crise. Era preciso – sabe a classe dominante –
manufaturar a opinião pública favorável às políticas de
austeridade iniciadas por Dilma e agora em fase avançada de
consolidação com Temer. Neste tempo turbulento, toda economia
de recursos é necessária, razão pela qual os já minguados
programas sociais, antes motivo de orgulho dos petistas,
representam luxo porque, como acredita o homem comum, "a vida
não está fácil para ninguém". A maior parte das pessoas julga
que a crise afeta a todos negativamente e nem nos piores
pesadelos podem supor a crise como aquela oportunidade
extraordinária para os capitalistas acumularem fortunas e/ou
criarem condições para conquistar maior riqueza e poder.
Portanto, a destituição da presidente Dilma cumpre objetivos
imediatos e estratégicos. No curto prazo, justifica a
supressão de muitos direitos dos trabalhadores. No longo,
impulsionado pela força da reforma moral, abre-se tempo de
experimentação burguesa contra a ampliação do horizonte
político nacional, exatamente quando aos olhos de milhões de
pessoas o sistema político se revela miserável, intragável.
Enfim, a reforma moral em curso limita toda política no país à
enfadonha administração competente da crise no momento em que
milhões recusam com asco o fazer político burguês.
Na exaustão do sistema político emerge a figura e evidencia-se
a função de Temer. Nada mais afeito à crise que um político
com o perfil do golpista. Temer é perfeito porque "chegou lá"
pelas mãos generosas do pragmatismo petista, aquele mesmo
pragmatismo considerado até bem pouco tempo não grave
limitação política ou submissão à correlação de forças
supostamente desfavorável para avançar em direção de reformas
radicais em favor do povo, mas, ao contrário, um pragmatismo
então considerado pedra angular da astúcia e da inteligência
lulista, pretensamente capaz de agradar proletários e
burgueses em favor de alguns trocados para as classes
subalternas.
Ademais, Temer é a quintessência burlesca do bacharel
oitocentista, misto de discurso e gesto antiquado, mas
disponível à política de modernização de todas as frações do
capital e disposto a seguir com enorme convicção para o lixo
da história com direito à aposentadoria de presidente sem
culpa no cartório. Ele próprio talvez não saiba, mas ao menos
suspeita que ao tocar no teto, tocou também no fundo.
A república rentista e a lumpemburguesia
A popularidade insistentemente baixa de Temer e a estética
retrô que insinua não o tornam menos perigoso ou uma ameaça
somente evidente após o golpe, quando rompeu com seus
companheiros petistas de aventura. Um homem disposto a tomar
qualquer medida contra os trabalhadores e depois retirar-se à
vida privada, como ele próprio já anunciou, é um homem pronto
para aceitar qualquer negócio. A propósito, as recentes
denúncias de corrupção contra ele apenas elucidam sua
disponibilidade histórica para aceitar qualquer negócio.
A beligerância de Temer resulta, portanto, em algo mais
valioso que sua disposição manifesta para as transações
tenebrosas: reside no "comando" de um governo controlado sem
inibições pelos banqueiros com apoio das demais frações do
capital (comerciantes, industriais e latifundiários). Nas
circunstâncias atuais, a única fração de classe capaz de
dirigir o país é, de fato, a fração financeira, pois a
regressão da burguesia industrial é enorme e sua consciência
de classe em nada se assemelha ao comportamento clássico da
burguesia industrial inglesa do século 18, quando comandou a
revolução industrial em favor dos seus interesses. Diante da
lumpemburguesia brasileira, somente a fração financeira possui
clara capacidade de colocar as condições gerais do
funcionamento da economia mundial em seu proveito, dividindo
de maneira desigual o botim. Adeus desenvolvimentismo!
Nunca será ocioso recordar a importância do "ajuste" praticado
por Dilma para sedimentar as condições necessárias ao golpe
agora denunciado pela ex-presidente. Ela estabeleceu o fim de
seu mandato ao julgar possível a manutenção das regras do jogo
- superlucros para o capital e passividade dos sindicatos e
dos movimentos sociais - realizando a política da direita em
matéria econômica em "troca" dos minguados programas sociais
dos governos petistas. No fundo, não logrou mais do que a
digestão moral da pobreza, porque, como agora podemos ver, o
efeito dos programas sociais inéditos na história do país se
derrete feito gelo ao sol.
A força da crise solapou sem demora a ilusão. A direita
aproveitou o momento e retomou a iniciativa política no
terreno parlamentar, na imprensa e, de maneira surpreendente,
nas ruas. Os trabalhadores e suas organizações apenas
despertam da anestesia que supunha possível o fim do abismo
social nos marcos do capitalismo. A reforma moral está em
curso e seu nervo mais importante é a LRF, cujo objetivo
evidente é a perenização do princípio da austeridade contra o
povo. Somente assim podemos entender as leis contra os
direitos trabalhistas, o aperto contra os governos estaduais,
o fim do reajuste para o funcionalismo público etc. etc.
No purgatório é possível pecar
A oposição tucana ao governo dispensaria o suposto descuido de
Dilma com as contas públicas e, de fato, eles se lançariam à
luta por sua destituição sob qualquer argumento. No entanto,
foi Dilma quem permitiu a ofensiva quando os impactos sociais
do ajuste praticado pela presidente eleita com discurso de
corte keynesiano afetaram agudamente os mais pobres, negando a
promessa da campanha vitoriosa. O golpe foi fatal contra os
trabalhadores e ainda mais corrosivo nas filas da resistência
à estratégia golpista.
No entanto, a tragédia se completou somente quando, em sua
defesa, a presidente alegou que jamais desrespeitou a LRF e
que os atos ou decretos emitidos não violavam a lei de bronze
mais valiosa para a burguesia brasileira. Enquanto a escalada
oposicionista argumentava contra o "gasto sem caixa" - como se
o orçamento de um Estado guardasse alguma semelhança com as
finanças pessoais - a presidente alegava que o atraso dos
pagamentos pelo Tesouro Nacional aos bancos estatais que
financiaram gastos do governo (Bolsa Família, Plano Safra
etc.) não gerou déficits. Em sua defesa, a presidente repetiu
mil vezes que jamais desrespeitou a LRF e, em consequência,
não teria existido crime de responsabilidade.
Assim, ambos, governo e oposição, se digladiavam em combate de
morte pela mesma causa! Enfim, ainda no momento decisivo da
disputa parlamentar, o petismo manteve o pacto com os tucanos
na afirmação da "política fiscal responsável" e a renúncia a
toda manifestação de heresia na condução da política de
Estado.
Qualquer keynesiano de mediana formação saberia que a recessão
econômica inaugurada por Dilma (estoque superior a 12 milhões
de desempregados) e aprofundada por Temer tornaria a situação
fiscal ainda pior, como os números agora confirmam. A política
sem heresia, sem risco, o apego ao pragmatismo como ethos
político de conciliação de classes, chegava tragicamente ao
fim. O petismo descobriu em meio ao pesadelo que o pragmatismo
é terreno pantanoso, repleto de riscos, ao contrário do que
supunha tanto sua base social quanto seus mais importantes
"dirigentes". Ao que tudo indica, a dura lição não implica em
correção de rumos.
A lógica do petismo durante toda a crise é meramente eleitoral
e, no limite, apenas pretende disputar com tucanos o monopólio
da representação da classe dominante sem a qual acreditam ser
impossível governar o Brasil. No purgatório, o petismo não
promove a necessária autocrítica para ganhar direito à nova
vida e considera que não pode romper com as leis mais
importantes para a burguesia, mesmo que precisamente esta
fidelidade tenha sido a responsável última por sua
desmoralização pública.
A crença comum do petucanismo e a esquerda responsável
Quando FHC apresentou ao parlamento a LRF, deputados e
senadores do PT votaram contra. Corria o ano de 2000 e
Palocci, Marina Silva (sim, Marina votou contra a LRF!),
Berzoini, Waldir Pires, Nilmário Miranda e Jaques Wagner
votaram pela rejeição do projeto. Não estavam sozinhos. O
ex-candidato presidencial e peça de reposição burguesa no jogo
eleitoral, o pernambucano Eduardo Campos (PSB), também votou
contra, da mesma forma que Aldo Rebelo e Agnelo Queiroz, ambos
do PC do B. O mundo dá voltas para a direita, não?
Algum tempo depois - mais precisamente cinco anos - Palocci
(após ocupar o posto de ministro da economia) declarou que
"nós, naqueles idos de 2000, não demos apoio à lei. Foi uma
falha da bancada e eu me incluo nessa falha" (Folha de S.
Paulo, 4/5/2007). Na mesma época, o senador Aloísio Mercadante
subiu a tribuna da senado (Agência Senado, 4/05/2005) para
revelar que o governo Lula era mais zeloso que FHC no manejo
das contas públicas: "é inquestionável que a Lei de
Responsabilidade Fiscal foi muito importante para o país". A
conversão petista ao credo liberal se fazia completa e os
erros de juventude estavam, finalmente, superados.
Enfim, o PT e seus principais líderes - Lula à frente,
obviamente - assumiam plenamente a defesa dos postulados
essenciais da classe dominante ao adotar a LRF na vã tentativa
de conquistar a confiança das classes dominantes, esquecendo
que estas não necessitam dos partidos políticos e de líderes
populares para manter a situação sob controle. Não devemos,
portanto, subestimar a força das leis de bronze. Ainda quando
revelam seu poder destrutivo, as leis de bronze podem manter o
encanto sobre suas vítimas.
Não somente o PT e sua "base aliada" mantêm fidelidade ao
princípio da austeridade, mas setores da esquerda "que não se
vendeu ou se rendeu" reivindicam a necessidade de uma
"esquerda responsável", cujo lema não poderia ser mais nocivo:
o "Estado deve caber dentro do orçamento". Não é pequena a
conquista ideológica da classe dominante! A consequência
prática do simpático postulado - o Estado deve caber dentro do
orçamento - é que o povo deve viver de maneira permanente na
austeridade.
Ora, a defesa de uma esquerda responsável limitada a manter a
ação estatal nos limites de um orçamento austero rompe com a
tradição da economia política, pois, desde o século 17, a
ciência gris ensina que o orçamento é produto da riqueza
social-estatal e não o inverso. A riqueza, conceito tão
elementar quanto esquecido no Brasil, segue crescendo com a
mesma força com a qual multiplica a desigualdade social. A
burguesia brasileira - comerciantes, industriais, banqueiros,
latifundiários - professa em uníssono o respeito à austeridade
permanente como se, de fato, a praticassem e, no limite, não
pudessem viver sem ela.
No entanto, a história das crises revela que a burguesia
necessita tanto da política de austeridade (LRF) quanto da
produção de déficits. Na verdade, a produção do déficit é
ingrediente decisivo no processo de acumulação de capital
desde quando a Inglaterra criou um banco a partir da dívida
estatal e produziu o impulso capitalista necessário para se
transformar na oficina do mundo. Não fosse o consenso em
economia tão rasteiro entre nós, seria ocioso recordar
questões tão elementares da história do capitalismo,
completamente ignoradas em função do caráter ideológico do
"debate" econômico.
Teoria e práxis do rombo fiscal
A história do capitalismo contemporâneo evidencia o caráter
ideológico da lei de bronze, pois tanto o princípio da
austeridade quanto a produção do déficit depende sempre de
interesses concretos. Enfim, a lei deixa de funcionar quando a
conveniência burguesa determina; em consequência, as classes
dominantes, quando necessário, desprezaram sutil e
completamente as leis de bronze com o conhecido recurso do
assalto ao Estado. Assim, os déficits supostamente
indesejáveis se tornam inevitáveis e a defesa aberta da LRF
vai a segundo plano, em função das exigências da conjuntura. A
dívida do Estado é, finalmente, o grande negócio para os
capitalistas, razão pela qual seu pagamento religioso é também
considerado uma lei de bronze: dívidas devem ser honradas em
qualquer situação. O pagamento da dívida requer superávits
fiscais e comerciais permanentes e, em consequência, a
austeridade se transforma em imperativo político-moral.
Os capitalistas aceitam a erupção dos déficits quando a
quebradeira de empresas (geralmente monopólios) exige a
intervenção do Estado tal como ocorreu em 2007 e 2008 nos
Estados Unidos. O governo republicano de George Bush não
vacilou em utilizar recursos públicos para salvar a General
Motors, o sistema bancário, as seguradoras que estavam em
completa bancarrota pela ação de seus executivos. A extensão
do fenômeno indica quebra sistêmica, jamais produto da ação
"irresponsável de um executivo"; ao contrário, ainda que
muitos deles foram processados individualmente, ficou claro
que a administração temerária dos grandes monopólios era, na
verdade, um modelo exigido pelas regras do jogo. O Estado
então aprofundou o déficit para salvar os monopólios sem
vacilação alguma e naquele tempo ninguém - na imprensa ou nas
organizações patronais - lembrou da doutrina das contas
públicas superavitárias.
O Brasil não foge à regra, mas tem lá sua particularidade. O
quadro abaixo mostra a evolução do superávit primário, do
gasto financeiro e do resultado nominal até 2015, segundo os
dados do Banco Central (em bilhões de reais).
....................
Até 2013 os sucessivos governos do PT acumularam suculentos
superávits fiscais (superávit primário). O gasto social era
controlado com mão de ferro, a despeito da propaganda
governamental sobre os programas sociais e a ideológica
emergência de uma nova classe média num país subdesenvolvido.
Em 2014 apareceu o primeiro déficit em mais de uma década;
ainda assim, cifra modesta: apenas R$ 32,5 bilhões. Na
verdade, ao contrário do que afirma a oposição tucana, o
minúsculo déficit não era sequer capaz de fomentar ações do
governo para enfrentar um ano eleitoral, no qual, como manda o
comportamento republicano vigente, o governo colocaria a
máquina a funcionar em favor de seus candidatos. O reduzido
déficit, no entanto, não pode ocultar tema relevante: neste
ano, ocorreu fantástico crescimento do pagamento de juros,
pois enquanto 2013 a orgia financeira consumia 157 bilhões, em
2014 exigiu adicionais 343,9 bilhões! Esta rápida evolução dos
gastos com o rentismo financeiro deve-se, em primeiro lugar, à
decisão de Dilma em aplicar a ortodoxia neoliberal na condução
da política econômica. Os banqueiros pressionaram como alegam
petistas? Claro que sim! Mas quando foi diferente? Os
banqueiros pressionam há séculos os governos e aproveitam toda
crise para assaltar o Estado via dívida pública e empréstimos
externos.
A situação já insustentável piorou ainda mais em 2015 com a
política ultraneoliberal aplicada por Dilma. O déficit
primário, ou seja, o gasto do governo sem a contabilização dos
juros, alcançou R$ 111,2 bilhões; mas o déficit nominal,
aquela cifra que contabiliza o pagamento de juros, registrou
importante acréscimo: saltou para 613 bilhões (501,8 bilhões
com o pagamento de juros), quase o dobro do ano anterior.
Neste contexto, podemos entender o giro à direita operado por
Dilma quando, de maneira surpreendente para seus desavisados
eleitores, adotou sem vacilação o programa defendido por Aécio
Neves. Nenhuma surpresa, antecipo, pois a causa fundamental do
giro à direita estava escrita nas estrelas. Numa economia
dependente, comandada pelo rentismo, somente um estadista
poderia convocar o povo e mudar o rumo da economia e do
Estado.
Dilma e a cúpula petista - Lula à frente, sempre - decidiram
praticar a política do adversário derrotado com a certeza de
que não poderiam deixar a burguesia sob hegemonia tucana. Ao
adotar o programa liberal, Dilma julgou que mataria dois
coelhos com uma cajadada: segundo seus cálculos, a direita
estaria com ela na medida de seus interesses e a esquerda
julgaria que tudo poderia ser pior com Aécio, aceitando,
assim, a dura realidade.
Não se deve esquecer a pressão quase pública de Lula para
levar Meirelles ao comando da economia, indicando a
"necessidade" da rápida atuação para o insaciável apetite
rentista. Enfim, é legitimo considerar que Lula queria mais
rapidez no ajuste e todos podem recordar seu breve ativismo no
meio sindical ao afirmar que a questão decisiva não era o
pântano moral da cúpula petista, mas a crise econômica.
A súbita guinada à direita não decorria, portanto, somente da
suposta astúcia e descarado oportunismo político da direção
petista. Era, na verdade, uma imposição das condições
concretas, das exigências da república rentista e
especialmente da fração financeira da burguesia diante da
mínima ameaça de interrupção do fluxo financeiro a seu favor
em caso de inadimplência do Estado. A redução da capacidade de
pagamento permitiu a cena necessária para a mudança de rumo, o
fim da breve e precária primavera keynesiana (nova matriz
econômica) e a fatal imposição da volta à ortodoxia como se,
de fato, os políticos tivessem finalmente recuperado a lucidez
que as finanças reclamam.
A crise escancarou outro ritmo. A burguesia queria um ajuste
rápido e profundo, sem a parcimônia petista que faria tudo
exatamente igual, porém, de maneira "negociada". É claro que o
ajuste praticado por Dilma foi violentíssimo! Milhões de
desempregados em poucos meses, acelerado processo de
decadência e desnacionalização industrial, agravamento da
questão fiscal pela recessão, desvalorização da moeda e certa
inflação para corroer o poder de compra dos salários. A crise
financeira do Estado - diretamente proporcional à força da
política de juros praticada pelo governo via Banco Central -
era de fato inocultável, mas Dilma não somente vetou a
auditoria da dívida como insistiu na natureza fiscal de um
problema sob o qual já não tinha controle.
Na cabeça dos keynesianos a política econômica deveria
defender a indústria nacional, mas eles parecem ignorar os
efeitos destrutivos do Plano Real sobre a burguesia
industrial. De fato, a participação da indústria de
transformação no PIB era, em 2004, de quase 18% e declinou, em
2015, para 9%. Tal como no poema de Drummond, "burguesia
industrial já não há". E agora José?
Não está na força da burguesia, mas precisamente em seu
raquitismo industrial, a origem do protagonismo da FIESP na
Avenida Paulista nas manifestações de massa contra um governo
acuado moralmente e decidido a recompor o pacto de classe sem
ativismo sindical e popular. Os economistas keynesianos
estavam roucos de tanto gritar desde a UNICAMP por "outra
política econômica" centrada no "fortalecimento do emprego e
renda", mas sofriam a mesma solidão do Planalto: quais forças
sociais os apoiavam?
A falta de realismo apareceu na tentativa tão desesperada
quanto ingênua do "compromisso pelo desenvolvimento", no qual
a CUT, Força Sindical, UGT, CTB, NCST e CSB pelos
trabalhadores e a CNI, Anfavea, Abimaq, Abit entre outras
entidades patronais defendiam o "melhor dos mundos possíveis"
onde - alimentados por imensa ilusão de classe - garantir o
desenvolvimento do país. Era beco sem saída, a vida comprovou.
Não é fácil tentar pacto com a lumpemburguesia.
Um golpe de classe?
A burguesia brasileira, sempre dirigida pelo capital
financeiro, não vacilou diante da oportunidade. Uma vez
instalado o governo, Temer colocou Henrique Meirelles e Ilan
Goldfajn, dois falcões da rapina financeira, no comando dos
postos mais importantes da república. Com velocidade
invejável, os dois trataram de convencer a opinião pública de
que o rombo das contas públicas era muito pior do que mentiam
os petistas. Na exata medida em que incluíam no cálculo todo
tipo de dívidas com o claro objetivo de inflacionar a conta
final, estavam conscientes que a profundidade do ajuste seria
proporcional ao volume do déficit. A mágica cifra de 170
bilhões de reais recompunha parcialmente a necessidade de
seguir financiando o rombo na exata medida em que alimentava
ainda mais o rentismo e, de quebra, permitia ligeira margem de
manobra para o governo gastar por conta alguns bilhões para as
necessidades da "base aliada" num ano de eleições municipais.
Os dias atuais revelam, portanto, o crescimento do déficit e a
austeridade caminhando juntas. Déficits para financiar frações
do capital e austeridade sobre o povo. A ideologia do
sacrifício, tal como no cristianismo dominante, acompanha a
ideologia da austeridade como se após este período de ajuste -
duro, porém necessário - todos seríamos agraciados com uma
política de renda e emprego novamente. No entanto, as classes
dominantes não escondem o jogo e o governo anuncia que o vale
de lágrimas não será passageiro: nada de frouxidão ou excessos
nos próximos 20 anos!
Keynes na periferia
Com a LRF o liberalismo de direita julgou que tinha assegurado
um valioso instrumento contra os governantes, especialmente
importante contra o "populismo", considerado inclinação
natural dos latino-americanos na irresponsabilidade com os
assuntos de Estado. No entanto, o sono tranquilo durou pouco
porque as exigências da vida são mais fortes.
Em 2007/2008, a crise abalou os países centrais, com epicentro
nos Estados Unidos e exigiu que o Estado - sim, aquele mesmo
ogro filantrópico da consagrada expressão de Octavio Paz -
abandonasse a antiga ladainha da "não intervenção na economia"
e aos olhos atônitos do discípulo liberal concedesse aparente
razão ao keynesiano intervencionista.
Nos Estados Unidos os déficits são permanentes, ainda que em
2015 tenha sido o mais baixo em 8 anos, segundo dados do
Departamento do Tesouro. A cifra tocou os 439 bilhões de
dólares, quantia 9% inferior a 2014. As fontes indicam que é o
mais baixo desde 2007, quando a crise eclodiu com força nos
países centrais. Ninguém com duas moléculas de realismo
defendeu nos Estados Unidos um "orçamento equilibrado" e o fim
do "déficit" para arrumar a economia. Lá, a teoria é outra.
Existe, obviamente, a ideologia do combate aos déficits, mas
foi esclarecedor observar como Bush, um republicano avesso aos
subsídios keynesianos, tirou o cheque e cobriu rombos
bilionários dos grandes monopólios em 2007 e 2008, quando a
General Motors, os bancos e as seguradores foram à bancarrota
após a orgia da liberalização... É grande a diferença entre a
burguesia dos países centrais e a lumpemburguesia dos países
latino-americanos!
Num breve texto de 1925 (Am I a liberal?), Keynes declarou a
impossibilidade de assumir o Labour Party na Inglaterra porque
este representava uma classe antagônica à sua origem social.
Esperto, na mesma medida em que evitou o trabalhismo
britânico, Keynes simulou distância do conservadorismo e
adiantou-se na defesa do que chamou "Justiça e o bom senso".
Neste contexto, alegou que "... the class war will find me on
the side of the educated bourgeoisie" (a luta de classes me
encontrará sempre ao lado da burguesia educada), bordão
abre-alas para certo ativismo keynesiano de corte
progressista.
Agora, os keynesianos - Luiz Gonzaga Belluzzo talvez seja o
mais visível deles - se dizem "heterodoxos" e de certa maneira
a autodefinição serve como caminho fácil para ocultar - por
conveniência ou ignorância - as raízes ortodoxas de seu mestre
mais famoso. Tal comportamento evita o tema da conversão, tão
decisivo na fé quanto na ciência. Enfim, Keynes nem sempre foi
um keynesiano, tal como o reconhecemos agora. Ao keynesianismo
brasileiro lhe falta dentes para morder e, de fato, eles
assumiram há tempos a ideia ortodoxa, segundo a qual os
"fundamentos da economia" devem ser sólidos e não convém
brincar com política fiscal (déficits fiscais).
Por esta razão toleraram durante uma década a LRF, pois,
apesar dela, conseguiam vender suas ilusões por meio de
governos petistas com reduzidos programas sociais e a feliz
suposição de uma "nova matriz econômica". O pacto de classe
funcionou e os programas sociais permitiram aos "heterodoxos"
fazer de conta que os custos do processo dependiam da
superexploração dos trabalhadores sem a qual nada funciona.
Durante todos estes anos, os keynesianos silenciaram sobre a
guerra de classes, ao contrário de seu mestre mais ilustre. O
famoso tripé - política monetária austera, câmbio flutuante e
taxa de juros elevada -, considerada expressão da
racionalidade científica representa, na verdade, os interesses
das distintas frações de classe racionalizadas pelo
economista. A ideologia dos economistas não raro é produto de
deficiências teóricas graves, mas é decisivo entender o limite
do keynesianismo nacional também como manifestação da ausente
base material, ou seja, a inexistência de uma burguesia
industrial ascendente. Temos exatamente o oposto!
Aquela tirada de Keynes segundo a qual "a luta de classes me
encontrará sempre ao lado da burguesia educada" é até
simpática em termos literários, mas rigorosamente falsa no
solo histórico latino-americano. Aqui, uma burguesia educada -
que, de fato, tampouco existiu nos países centrais! - seria um
luxo não fosse apenas um desejo irrealizável do bom mocismo
político brasileiro e seu corolário, a colaboração de classes
em prejuízo dos trabalhadores.
André Singer, ex-porta voz de Lula, manifestou como ninguém a
"descoberta" nas vésperas da votação contra a presidente:
segundo o professor da USP, era muito significativo que a luta
de classes tivesse voltado à cena "trazida pela direita e pelo
capital". Arrematou atônito: "Isso é surpreendente. Por que
essa ofensiva diante de um projeto, de um governo que o tempo
todo tentou conciliar, desde 2003 até agora, e jamais apostou
na ruptura e no enfrentamento?"
Nas condições do capitalismo dependente latino-americano, a
crise evidenciou a margem de manobra reduzida para os pactos
róseos que a maior parte do sindicalismo e dos economistas
heterodoxos defendeu. A realidade atropelou todas as ilusões.
Não sabemos por quanto tempo estas mesmas ilusões podem ainda
comandar as esperanças ingênuas dos homens. Não oculto certo
otimismo neste difícil momento, pois, diante da ofensiva do
capital, os trabalhadores podem entender que nada devem
esperar da lumpemburguesia brasileira e, em consequência, nada
têm a perder. Exceto, é claro, aqueles velhos grilhões que os
mantêm atados ao sistema que os explora e oprime.
PS: agradeço a Mauricio Mulinari os dados da tabela e também
as permanentes conversas que temos mantido nos últimos anos.
In
CORREIO DA CIDADANIA
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=11939:sobre-as-leis-de-bronze-da-lumpemburguesia&catid=72:imagens-rolantes
25/8/2016
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