sábado, 15 de outubro de 2016
A migração como revolta contra o capital
por Prabhat Patnaik [*]
O facto de que um grande número de refugiados – especialmente de países
que ultimamente têm sido sujeitos às devastações da agressão imperialista
e das guerras – estejam desesperadamente a tentar entrar na Europa é visto
quase exclusivamente em termos humanitários. Se bem que esta percepção
tenha sem dúvida validade, há um outro aspecto da questão que tem escapado
à atenção, nomeadamente que é a primeira vez na história moderna que a
questão da migração está a ser postulada fora do controle exclusivo do
capital metropolitano. Até agora os fluxos migratórios haviam sido
ditados inteiramente pelas exigências do capital metropolitano; agora,
pela primeira vez, povos estão a violar os ditames do capital
metropolitano e a tentar por em prática suas próprias preferências quanto
a onde pretendem estabelecer-se. Pobres e miseráveis, em sem estarem
conscientes das implicações das suas próprias acções, estes infelizes
refugiados estão com efeito a votar com os seus pés contra a hegemonia do
capital metropolitano, o qual invariavelmente procede presumindo que os
povos submeter-se-iam docilmente aos seus ditames, incluindo a questão de
onde viver.
TRÊS GRANDES ONDAS DE MIGRAÇÃO
A ideia de que o capital metropolitano havia até agora determinado quem
permaneceria onde no mundo e sob que condições materiais de vida pode
parecer forçada à primeira vista. Mas é verdadeira. Nos tempos modernos
podem-se distinguir três grandes ondas de migração, cada uma ditada pelas
exigências do capital. A primeira delas foi a transportação de milhões de
pessoas como escravas da África para as Américas, para trabalharem nas
minas e plantações a fim de produzirem commodities que eram exportadas
para atender as necessidades do capitalismo metropolitano. Uma vez que os
factos acerca do comércio escravocrata são razoavelmente bem conhecidas,
não discutirei esta onda de migração em particular.
Uma vez ultrapassado o auge do comércio escravista, houve um novo tipo de
migração. Ao longo do século XIX e princípio do século XX, o capital
metropolitano impôs um processo de "desindustrialização" sobre o terceiro
mundo, não apenas sobre colónias tropicais como a Índia como também sobre
semi-colónias e dependências como a China. Ao mesmo tempo ele "drenou"
para longe uma parte do excedente económico destas sociedades através de
uma variedade de meios, que vão desde a simples apropriação sem qualquer
quid pro quo de commodities utlizando rendimentos fiscais das colónias
administradas directamente até à extracção de lucros de monopólio no
comércio. As populações das economias do terceiro mundo, as quais se
haviam empobrecido através destes mecanismos, foram entretanto forçadas a
permanecer onde estavam, presas dentro dos seus próprios universos.
Mas, em breve, dois fluxos de migração desenvolveram-se no século XIX
sob o comando do capital metropolitano. Um era das regiões tropicais do
mundo para as outras regiões tropicais, ao passo que a outra foi das
regiões temperadas do mundo para as outras regiões temperadas, em
particular da Europa para as regiões temporadas de colonização branca tais
como os Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Aos migrantes
das regiões tropicais não foi permitido entrar livremente nas regiões
temperadas (na verdade ainda não lhes é permitido). Eles foram
transportados como coolies ou trabalhadores contratados (indentured
labourers) dos seus habitats em países tropicais e sub-tropicais como a
Índia e a China para os lugares onde o capital metropolitano os desejava,
para trabalharem nas minas e plantações em outras terras tropicais. Seus
destinos incluíam as Antilhas, Fiji, Ceilão, América Latina e Califórnia
(onde trabalhadores chineses foram empregados na extracção de ouro).
A migração de região temperada para região temperada foi uma parte do
processo de difusão do capitalismo industrial das metrópoles europeias
para estas novas terras. Era uma migração de alto rendimento, no sentido
de que os migrantes vinham de regiões de rendimento relativamente alto e
moviam-se também para regiões onde desfrutavam altos rendimentos. A
migração trópicos-para-trópicos em contraste nada tem a ver com qualquer
difusão do capitalismo industrial; e foi uma migração de baixo rendimento.
A razão para esta diferença, o facto de que a migração de região
temperada era de alto rendimento enquanto a migração tropical era de baixo
rendimento, tem sido muitas vezes atribuída à produtividade do trabalho
mais alta dos migrantes europeus em comparação com os migrantes indianos e
chineses. Mas isto é erróneo. Os rendimentos dos trabalhadores sob o
capitalismo são dificilmente determinados pelo nível da produtividade do
trabalho per se. Ao contrário, o que importa é a dimensão relativa do
exército de reserva de trabalho: mesmo com aumentos rápidos na
produtividade do trabalho, os salários reais dos trabalhadores podem
estagnar a um nível de subsistência se o exército de reserva for
suficientemente grande. Além disso, a produtividade do trabalho relevante
que se deve examinar no contexto deste argumento não é aquela dos
trabalhadores empregados na indústria capitalista mas sim a daqueles que
estão fora dela, uma vez que eles é que provavelmente vão migrar. E não há
razão para acreditar que a produtividade dos últimos fosse mais alta do
que a dos seus equivalente nos trópicos se ignorarmos o impacto da
"drenagem" e "desindustrialização" infligida às terras tropicais.
A razão real para a diferença de rendimento dos dois fluxos migratórios
está alhures, no facto de que nas regiões temperadas para as quais estavam
a migrar os migrantes europeus podiam simplesmente deslocar os habitantes
locais (como os ameríndios) e apossar-se da sua terra para cultivo. Isto
não só deu altos rendimentos a tais migrantes como também manteve altos os
salários nos países de origem dos quais estavam a afastar-se, pelo
aumento do que economistas chamam a "restrição salarial". Ninguém
naturalmente trabalharia por uma ninharia na Europa se ele ou ela pudessem
migrar para as regiões temperadas de colonização externa e ganhar um
rendimento muito mais alto na terra tomada aos ameríndios. Foi esta
perspectiva que manteve alto o salário real também na Europa.
A migração de trópicos para trópicos, em contraste, era migração de baixo
salário uma vez que os migrantes vinham de populações que haviam sido
empobrecidas pela "drenagem" e "desindustrialização" e não tinham
perspectivas de se estabelecerem como agricultores sobre terra arrebatada
aos seus habitantes originais nos seus novos habitats.
W Arthur Lewis, o bem conhecido economista de origem antilhana, estima
que cada um destes fluxos migratórios no século XIX foi da ordem das 50
milhões de pessoas. Mas não importa se se aceita ou não esta estimativa,
os números envolvidos foram indubitavelmente grandes. Utsa Patnaik estima
que quase a metade do número que representa o aumento da população a cada
ano na Inglaterra entre 1815 e 1910 migrou para o "novo mundo" no qual o
capitalismo industrial estava a difundir-se a partir da Europa.
O terceiro grande fluxo migratório foi no período pós segunda guerra
mundial. Este período, que vai do princípio dos ano 50 até o princípio dos
70, tem sido chamado por alguns como a "Idade de ouro do capitalismo", uma
vez que assistiu a altas de crescimento do Produto Interno Bruto nas
economias metropolitanas, especialmente as europeias, por conta do boom de
reconstrução do pós guerra e da instituição da intervenção do Estado na
"administração da procura". Muito embora as taxas de crescimento da
produtividade do trabalho também fossem altas, elas não eram tão altas
quanto as de crescimento do PIB, o que significava um aumento na procura
de trabalho. Contudo, na maior parte dos países europeus as populações
dificilmente estavam a aumentar. O aumento da procura de trabalho foi
portanto atendido pela importação de trabalhadores das regiões tropicais.
Ainda não havia migração livre do trabalho dos trópicos para as
metrópoles mas era permitida migração em números especificados para
atender a procura de trabalho crescente. Os migrantes, consistindo de
turcos na Alemanha, argelino e outros das antigas colónias francesas em
França e asiáticos do sul e antilhanos no Reino Unidos, ficaram com
empregos de baixo pagamento, libertando os trabalhadores locais que
anteriormente detinham tais empregos e que agora podiam subir na
hierarquia dos empregos. O capitalismo do pós guerra, em suma, testemunhou
um grande crescimento de uma subclasse de trabalhadores migrantes nas
metrópoles.
Mas quando o boom do pós guerra, ou a assim chamada "Idade de ouro",
entrou em colapso, os trabalhadores migrantes e seus descendentes
descobriram uma representação desproporcional nas fileiras dos
desempregados e dos sub-empregados. Com o início da crise capitalista no
século actual, a posição deles tornou-se ainda mais precária. As
consequências sociais deste fenómeno têm sido muito discutidas e não
precisamos estender-nos acerca dela aqui.
09/Outubro/2016
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2016/1009_pd/migration-revolt-against-capital
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/patnaik/migracao_09out16.html
11/10/2016
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