quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Para entender a Venezuela hoje é preciso saber como era antes da “revolução bolivariana”  


"Após o chavismo, a Venezuela tornou-se o segundo país da América Latina (o
primeiro é Cuba) e o quinto no mundo com maior proporção de estudantes
universitários. Em relação à saúde pública, é preciso ressaltar que a
mortalidade infantil diminuiu de 25 por mil, em 1990, para apenas 13 por 1000,
em 2010. Atualmente, 96% da população já tem acesso à água potável. Em 1998,
havia 18 médicos por 10.000 habitantes, atualmente são 58", diz o colunista
Marcelo Zero

por Marcelo Zero, especial para o Viomundo


 I – Antecedentes
Não é possível se entender a atual crise da Venezuela e tampouco o regime
chavista sem se compreender como era esse país antes da “revolução bolivariana”
e qual o seu significado geopolítico para os EUA.
A Venezuela está sentada na maior reserva provada de petróleo do mundo. São
298,3 bilhões de barris, ou 17,5% de todo o petróleo do mundo. Este petróleo
está a apenas 4 ou 5 dias de navio das grandes refinarias do Texas. Em
comparação, o petróleo do Oriente Médio está entre 35 a 40 dias de navio dos
EUA, maior consumidor de óleo do planeta.
Essas imensas reservas começaram a ser exploradas no governo de Juan Vicente
Gómez (1908-1935).
A renda gerada pela produção e exportação de hidrocarbonetos possibilitou a
construção de uma infraestrutura viária e portuária, assim como permitiu a
implantação de aparelho de Estado centralizado, que substituiu uma administração
fragmentada e difusa.
Contudo, essa consolidação do Estado Nacional venezuelano embasou-se apenas na
exportação de petróleo para o mercado norte-americano, o que levou à Venezuela a
desenvolver “relações privilegiadas” com os EUA. Tal vinculação econômica e
política marcou profundamente a política externa da Venezuela, bem como sua
política interna.
Na década de 50 do século passado, a Venezuela já havia se convertido no segundo
produtor e no primeiro exportador mundial de petróleo. No entanto, essa notável
afluência econômica, obtida numa relação de estreita dependência com os EUA, não
se refletia na diminuição de suas graves desigualdades sociais, na
diversificação de sua estrutura produtiva e na implantação de um regime
democrático estável. Tampouco numa política externa que combatesse seu alto grau
de dependência.
Na realidade, esse processo econômico e político marcado por tal profunda
dependência resultou em três grandes consequências que têm de ser levadas em
consideração em qualquer análise séria sobre a Venezuela:
1) Um sistema político formalmente democrático, porém profundamente oligárquico.
2) Uma política externa avessa à integração regional e a uma articulação com
outros países periféricos.
3) Uma estrutura social marcada pela desigualdade e a pobreza.
a) O sistema político oligárquico
Em 1957, foi celebrado o Pacto de Punto Fijo, articulado pelos EUA, pelo qual os
partidos tradicionais e conservadores aceitaram alternar-se no poder, sem
permitir a entrada de novos partidos. O objetivo, para os EUA, era garantir
alguma estabilidade política na Venezuela, diante de sua importância como
fornecedora de petróleo.
A realização de eleições presidenciais periódicas apenas entre os dois partidos
conservadores (Ação Democrática-AD, de orientação socialdemocrata, e o Comitê de
Organização Política Eleitoral Independente-COPEI, de tendência
democrata-cristã), fez com que a Venezuela fosse apresentada como um exemplo
raro de “democracia na América do Sul”.
Trata-se, é claro, de uma grosseira falácia. A bem da verdade, o sistema
político gerado pelo Pacto de Punto Fijo era muito semelhante à política do
“café-com-leite” da República Velha brasileira: por trás de uma fachada de
democracia, escondia-se um sistema fortemente oligárquico.
Avalia-se que cerca de 50% da população teria sido excluída do exercício do voto
desde os anos 60. Como o registro eleitoral era facultativo e como as zonas de
inscrição estavam situadas apenas nas zonas mais prósperas do país, a população
mais pobre não participava, na prática, de quaisquer decisões eleitorais.
Além disso, o federalismo venezuelano era profundamente autoritário. Cabia ao
Presidente da República nomear todos os governadores e prefeitos biônicos,
muitos dos quais hoje militam na oposição venezuelana.
Apenas em 1989 foram realizadas as primeiras eleições para prefeitos e
governadores. Não bastasse, eram comuns as prisões de jornalistas, em razão da
publicação de matérias que desgostassem o governo de plantão.
b) A política externa satélite dos interesses estratégicos do EUA
A “estabilidade” democrática, ainda que conservadora, formal e excludente, a
afluência econômica proporcionada pelo petróleo e as relações privilegiadas com
os EUA, mesmo que eventualmente contraditórias, fizeram com que Venezuela se
isolasse do restante da América do Sul e dos demais países em desenvolvimento.
Na década de 60, esse relativo isolamento foi exacerbado pela aplicação, no
plano das relações externas venezuelanas, da chamada Doutrina Betancourt, criada
em homenagem ao ex-presidente Rómulo Betancourt.
De acordo com essa doutrina, a Venezuela deveria restringir o estabelecimento ou
a manutenção de relações diplomáticas apenas a países que tivessem governos
eleitos democraticamente conforme regras constitucionais estáveis.
Criada para agradar os EUA, pois justificava o isolamento diplomático de Cuba, a
doutrina Betancourt, porém, complicou as relações com vários vizinhos da
Venezuela aliados de Washington, inclusive o Brasil.
Assim, durante vários anos, a Venezuela recusou-se manter relações diplomáticas
com o Brasil, que vivia uma ditadura. Por uma ironia da história, a “cláusula
democrática”, que hoje o Brasil do golpe tenta impor à Venezuela no Mercosul, já
foi usada contra nós pelos venezuelanos conservadores.
Após levar um “puxão de orelhas” de Washington, a Venezuela flexibilizou sua
cláusula democrática e passou a usá-la apenas contra Cuba, contemplando os
interesses dos EUA.
Esse isolacionismo da Venezuela, que privilegiava somente suas relações
bilaterais com os EUA, fez até que aquele país aderisse tardiamente ao GATT, à
Comunidade Andina e a outros organismos regionais e multilaterais, numa
demonstração de total falta de iniciativa própria no cenário mundial.
Tal isolacioanismo dependente da Venezuela só começou a ser parcialmente revisto
ao final da década de 80, quando a relativa abundância de petróleo no mercado
internacional, que fez diminuir o preço dessa commodity, somada à crise da
dívida, que viria a atingir aquele país ao final do decênio, produziu uma
modesta mudança na estratégia de sua política externa.
De fato, a política externa isolacionista, baseada na noção de uma suposta
superioridade político-democrática, na afluência econômica do petróleo e nas
relações privilegiadas com os EUA, principal comprador dessa commodity, passou a
ser substituída progressivamente por uma estratégia de inserção no cenário
externo mais realista, na qual o Caribe e a América do Sul passaram a ter lugar
de destaque.
Contudo, mesmo com essa mudança modesta e parcial, a Venezuela continuou a
orbitar em torno dos interesses estratégicos do EUA na região, constituindo-se,
junto com a Colômbia, no seu aliado mais fiel.
c)A estrutura social marcada pela desigualdade e a pobreza
Antes do “cruel e ditatorial” governo bolivariano, a Venezuela, o país com a
maior reserva de óleo do mundo, tinha 70% de sua população abaixo da linha da
pobreza e 40% do seu povo na pobreza extrema. Isso diz tudo sobre os governos
anteriores.
Antes do governo de Chávez, em 1998, 21% da população estavam subnutridos. É
isso mesmo. No país que, como Celso Furtado escreveu em 1974, tinha tudo para se
tornar a primeira nação latino-americana realmente desenvolvida, 1 em cada 5
habitantes passava fome. Essa era a Venezuela dos Capriles, dos López e da
“oposição democrática”.
Em relação à saúde pública, é preciso ressaltar que a mortalidade infantil era
de 25 por mil, em 1990, quase o dobro da brasileira de hoje (13,8 por mil). Em
relação à educação, apenas 70% das crianças concluía o ensino primário e o
acesso às universidades era restrito às elites e à pequena classe média.
Além disso, o Estado de Bem Estar venezuelano tinha alcance mínimo. Com efeito,
na era pré-Chávez, apenas 387.000 idosos venezuelanos tinham aposentadorias ou
pensões. A maioria simplesmente vivia à míngua.
Desse modo, a Venezuela chegava ao fim do século XX com uma contradição gritante
e insustentável: apesar das grandes riquezas derivadas da exportação de
petróleo, o país convivia com problemas sociais muito graves.
Em 1989, no contexto de uma crise econômica, manifestações populares se
multiplicaram por todo o país.
Uma delas, o “Caracazo”, foi duramente reprimida pelo Estado, cujas forças
mataram indiscriminadamente entre 1000 e 3000 pessoas. Em muitas ocasiões, as
manifestações estudantis foram também reprimidas, tendo sido ordenado o
fechamento da Universidade Central da Venezuela, que durou três anos, em 1968.
Durante vários meses, as favelas de Caracas foram cercadas por forças militares
e submetidas a toque de recolher.
Entretanto, isso não comoveu muito a “comunidade internacional”, que hoje chora
as cerca de 100 vítimas dos embates nas ruas da Venezuela.
Afinal, eram apenas pobres e excluídos sendo submetidos a um regular massacre na
América Latina. Em todo caso, já estava claro, na época, que o modelo econômico,
social e político plasmado no Pacto de Punto Fijo tinha atingido seu limite.
Pois bem, a eleição de Hugo Chávez, em 1998, se insere justamente no colapso do
Pacto de Punto Fijo: para uma população desprovida de sistemas públicos
includentes (saúde, educação, moradia, etc.), a plataforma política de Chávez
surgiu como proposta sem precedentes na história do país, o que explica, em
grande parte, a sua popularidade nas camadas historicamente excluídas do povo
venezuelano.
Embora o chavismo não tenha alterado, de forma significativa, a estrutura
produtiva da Venezuela, que permaneceu estreitamente dependente das exportações
do petróleo, Chávez implodiu as arcaicas estruturas sociais e políticas da
Venezuela, bem como a política externa de alinhamento automático aos EUA.
A desigualdade, medida pelo índice de Gini, foi reduzida em 54%. A pobreza
despencou de 70,8%, em 1996, para 21%, em 2010, e a extrema pobreza caiu de 40%,
em 1996, para 7,3%, em 2010.
O chavismo implantou as chamadas misiones, projetos sociais diversificados e
amplos que beneficiam cerca de 20 milhões de pessoas, e passou a criar um
verdadeiro Estado de Bem Estar Social na Venezuela. Hoje, 2,1 milhões de idosos
recebem pensão ou aposentadoria, ou seja, 66% da população da chamada terceira
idade.
Na Venezuela pós-chavismo, a desnutrição é de apenas 5%, e a desnutrição
infantil 2,9%.
Após o chavismo, a Venezuela tornou-se o segundo país da América Latina (o
primeiro é Cuba) e o quinto no mundo com maior proporção de estudantes
universitários.
Em relação à saúde pública, é preciso ressaltar que a mortalidade infantil
diminuiu de 25 por mil, em 1990, para apenas 13 por 1000, em 2010.
Atualmente, 96% da população já tem acesso à água potável. Em 1998, havia 18
médicos por 10.000 habitantes, atualmente são 58.
Os governos anteriores ao de Chávez construíram 5.081 clínicas ao longo de
quatro décadas, enquanto que, em apenas 13 anos, o governo bolivariano construiu
13.721, um aumento de 169,6%. Barrio Adentro, o programa de atenção primária à
saúde que recebe a ajuda de mais de 8.300 médicos cubanos, salvou cerca de 1,4
milhões de vidas.
Nove anos após as grandes inundações de 1999, que destruíram centenas de e
milhares de lares, o governo de Chávez deu início a um ambicioso programa de
habitações populares. Já foram construídas e entregues 2  milhões de casas.
Trata-se, proporcionalmente, do maior programa de habitação popular da América
Latina.
Esses amplos e inegáveis avanços sociais fizeram daquele nosso país irmão um
modelo de cumprimento dos Objetivos do Milênio da ONU.
No campo da política externa, Chávez rompeu com o paradigma anterior de país
periférico e dependente e investiu na integração regional e no eixo estratégico
da geoeconomia e geopolítica Sul-Sul, com destaque para as relações bilaterais
com o Brasil, o que acabou conduzindo à adesão da Venezuela como membro pleno do
Mercosul, algo que nos beneficia muito.
A Venezuela chavista tornou-se uma grande parceira do Brasil, comprando
vorazmente nossos produtos e recompensando-nos com elevados superávits
comerciais e com forte apoio político à integração do nosso subcontinente.
Chávez era, sobretudo, um grande amigo do Brasil.
Ademais, Chávez estabeleceu relações próximas com Rússia, China e Cuba e passou
a apoiar experiências políticas que divergiam da ordem mundial dominada pelos
interesses dos EUA.
Em contraste com o isolacionismo anterior, Chávez fundou a ALBA e criou a
Petrocaribe, objetivando fornecer petróleo a preços convidativos para os países
daquela região. Isso explica porque a OEA, apesar dos esforços febris dos EUA e
do Brasil, não consegue aprovar uma resolução forte contra o governo de Maduro.
Mas o principal mérito do chavismo foi ter implodido o conservador e excludente
modelo político venezuelano, baseado no Pacto de Punto Fijo.
Com Chávez, assim como com Lula, Morales, Rafael Correa e outros, aqueles que
não tinham voz e vez passaram a se fazer ouvir e a se fazer cidadãos. Passaram a
comer, a se educar, a morar. Deixaram de ser invisíveis, miseráveis anônimos, e
passaram a ser sujeitos da história.
O chavismo, entretanto, foi além e organizou e mobilizou as massas destituídas
da Venezuela, bem como passou a dominar setores importantes do aparelho de
Estado, como as Forças Armadas e o poder judiciário. Isso acabou privando as
oligarquias venezuelanas de seus principais instrumentos de intervenção
política.  São esses fatores que ajudam explicar a radicalidade do atual
processo político venezuelano.
II-A Reação
Com todos sabem, a reação das oligarquias ao chavismo não tardou. Além do
conhecido golpe de 2002, que quase resultou na execução de Chávez, houve também
o processo conhecido como “paro petrolero”, a suspensão das atividades da PDVSA,
a estatal do petróleo da Venezuela.
A suspensão das atividades da PDVSA, controlada então pelas oligarquias
venezuelanas, resultou numa contração do PIB de 18%, entre 2002 e 2003,
inflação, carestia de produtos básicos, desemprego, aumento do risco país, etc.
No país com a maior reserva de petróleo do mundo, houve até falta de gasolina.
 O governo brasileiro, ao final de 2002, enviou navio tanque com gasolina para
suprir parcialmente a carência de combustíveis na Venezuela.
O “paro petrolero” forçou o chavismo a intervir na PDVSA, dominando-a, assim
como o golpe de 2002 forçou o chavismo a controlar mais fortemente as forças
armadas.
Entretanto, essas ações antidemocráticas e destrutivas, das quais participaram
as atuais das oposições venezuelanas, como López, Capriles e Ledezma são
eloquentes da falta de compromisso real das oligarquias venezuelanas com a
democracia.
O “paro petrolero”, em particular, evidencia que tais oligarquias não têm
pruridos em arruinar a economia do país, desde que isso signifique uma
oportunidade para voltar a controlar o poder perdido.
Desde então, o processo político venezuelano permanece bastante radicalizado.
Ainda assim, há de se constatar que o chavismo manteve seus compromissos
democráticos. Desde a ascensão de Chávez e a implosão do Pacto de Punto Fijo,
foram realizadas nada menos que 21 eleições, inclusive a de um referendo
revogatório. Todas elas limpas e internacionalmente auditadas.
Ademais, na Venezuela há partidos de oposição que funcionam regularmente e
imprensa livre, mesmo após a cassação da concessão do canal RCTV, que articulou
o golpe de Estado de 2002.
A crítica de que o chavismo controla setores do aparelho de Estado, como o poder
judiciário, por exemplo, não deixa de ser curiosa.
Na Venezuela, como em quase toda a América Latina, os setores estratégicos do
aparelho de Estado sempre foram fortemente controlados pela direita. No entanto,
tal controle nunca foi questionado como algo antidemocrático.
Ao contrário, o caráter de classe desses segmentos estatais sempre foi
considerado como parte intrínseca e natural do modus operandi dos sistemas
políticos do subcontinente. O controle só se torna um “problema” quando passa a
ser exercido, ainda que parcialmente, pela esquerda.
Assim sendo, não se pode falar em quebra da ordem democrática na Venezuela,
apesar da radicalização do processo político e dos graves problemas
institucionais que acometem o país vizinho. A última vez em que houve realmente
quebra da ordem democrática na Venezuela foi no golpe militar de 2002.
III Desdobramentos Recentes
A situação da Venezuela atual é muito próxima da existente no período 2002-2003.
Com a morte de Chávez, em 2013, a oposição radicalizada da Venezuela, considerou
que poderia derrotar facilmente o sucessor na revolução bolivariana.
Entretanto, a vitória de Maduro sobre Capriles, ainda que por pequena margem,
frustrou as expectativas da oposição.
Pouco tempo depois, os setores mais radicalizados da oposição venezuelana,
liderados por Leopoldo López, iniciaram o processo denominado de “la salida”,
que consiste na utilização de manifestações violentas de rua, com a formação de
barricadas, as chamadas “guarimbas”, incêndio de edifícios públicos e até mesmo
de atos terroristas com o intuito de derrubar o governo eleito.
Trata-se de uma estratégia que teve êxito na chamada “revolução colorida da
Ucrânia”, diretamente financiada e estimulada pelos EUA.
Essas manifestações, muito concentradas nos bairros do leste de Caracas e
algumas outras poucas municipalidades dominadas pela classe média e pelas
classes afluentes da Venezuela são amplificadas por uma mídia nacional e
internacional comprometida com os interesses conservadores.
De um modo geral, as informações sobre as manifestações são produzidas com o
auxílio das agências de inteligência e propaganda norte-americanas, que as
repassam às agências internacionais de notícias, como a Reuters. A partir daí,
elas se disseminam para o mundo inteiro, gerando uma percepção falaciosa do
processo político venezuelano.
Entre 2013 e 2016, esse processo político radicalizado pela oposição de direita
acabou provocando a morte de pelos menos 46 pessoas, a maioria chavistas ou de
pessoas sem afiliação política, bem como danos milionários a equipamentos
públicos.
Tais “guarimbas” foram e são financiadas desde o exterior. Com efeito, há uma
conexão clara da direita venezuelana, particularmente dos setores ligados a
Leopoldo López, com a extrema direita da Colômbia, principalmente com Álvaro
Uribe e seus grupos de extermínio.
São essas conexões e os reiterados atos de violência que levaram à prisão de
López e Antonio Ledezma na Venezuela.
Caracterizá-los como presos políticos que tivessem cometido “crimes de
consciência”, como faz a imprensa brasileira, é desconhecer a realidade de uma
direita que não tem, de fato, qualquer compromisso com a democracia e os
direitos humanos e que aposta sistematicamente na violência como arma política
preferencial.
Concomitantemente, foi iniciado um processo econômico que visa produzir
carestia, desabastecimento e inflação, tal com o ocorreu, por exemplo, no Chile
de Allende ou mesmo na própria Venezuela dos anos 2002 e 2003.
De fato, a este respeito é necessário que a crise econômica da Venezuela tem
dois aspectos claros: um natural e outro artificial.
O natural, por assim dizer, tange ao fato óbvio de que a economia venezuelana,
apesar dos esforços de chavismo para diversificá-la, ainda é muito dependente
das exportações do petróleo e tem agricultura e indústria débeis.
A arrecadação tributária da Venezuela é muito baixa, apenas 13,5% do PIB, bem
abaixo da brasileira, por exemplo, que está em cerca de 35% do PIB. Assim, o
gasto público depende estreitamente da renda petroleira. Com a grande queda dos
preços dessa commodity a partir de 2012, a economia da Venezuela passou
enfrentar dificuldades reais graves, particularmente problemas cambiais.
Entretanto, há também aspectos artificialmente induzidos na crise econômica
venezuelana. Há uma guerra econômica em curso.
Entre os instrumentos utilizados dessa guerra econômica estão: 1) o
desabastecimento programado de bens essenciais; 2) a inflação induzida; 3) o
boicote a bens de primeira necessidade; 4) o embargo comercial disfarçado; e 5)
o bloqueio financeiro internacional.
O desabastecimento é produzido pela especulação cambial e pelo boicote político.
O governo fornece aos importadores e comerciantes dólares cotados, pelo câmbio
oficial, a apenas 10 bolívares. Entretanto, no câmbio negro, o dólar chega a ser
cotado a milhares de bolívares.  Na semana passada, cegou a 16 mil bolívares por
dólar.
O que acontece é que muitos importadores simplesmente não importam o que
deveriam. Fazem os contratos, mas importam apenas uma fração e depositam dólares
no exterior. Além disso, boa parte (cerca de 35%) dos alimentos comprados são
contrabandeados para o exterior, principalmente para a Colômbia, onde são
vendidos com muito lucro. Outra parte é vendida no mercado interno, mas a preços
excessivos, gerando carestia e inflação.
Ressalte-se que as importações de alimentos na Venezuela totalizaram US$ 7,7
bilhões em 2014, sendo que em 2004 elas foram de apenas US$ 2,1 bilhões. Ou
seja, nesse período elas cresceram 259%. E, no caso de medicamentos importados,
em 2014 as importações foram de US$ 2, 4 bilhões, enquanto que, em 2004, elas
somaram apenas 608 milhões. Um aumento de 309%.
Portanto, a falta de alimentos, medicamentos, kits de higiene, peças
sobressalentes para transporte e outros produtos, bem como as longas filas, não
podem ser explicadas porque o setor privado não conseguiu receber uma quantidade
suficiente de dinheiro para as importações. Esse dinheiro foi simplesmente
desviado. Dessa forma, os depósitos em dólares de empresas venezuelanas no
exterior cresceram 233% em apenas cinco anos.
Outro fator da guerra econômica tange à inflação induzida pela especulação. Em
2016, a economista venezuelana Pasqualina Curcio estimou, com base nas reservas
e na liquidez monetária, que taxa real de câmbio deveria ser de 84 bolívares por
dólar. No entanto, no câmbio negro o dólar já chegava a 1.212 bolívares por
dólar.   Essa discrepância dilatada e sem base real alimenta um índice
inflacionário inteiramente especulativo.
Além de tudo isso, Venezuela sofre, desde 2013, com uma espécie de bloqueio
financeiro não oficial. Ele consiste em tornar cada vez mais difícil e caro para
a República e, especialmente, PDVSA, o acesso ao crédito no mercado
internacional e em obstaculizar as transações financeiras.
Nesta área, as armas são invisíveis: tratam-se principalmente da publicação de
níveis elevados de índice de risco país e do retardamento das transações
financeiras costumeiras. Observe-se que, mesmo com a crise, a Venezuela vem
cumprindo estritamente as suas obrigações financeiras, de modo que tais
obstáculos não têm base racional e real.
No entanto, o fato concreto é que essa guerra econômica vem ajudando a
radicalizar ainda mais o processo político venezuelano.
Nos últimos 4 meses, morreram mais de 100 pessoas nos conflitos de ruas. Houve
linchamentos de chavistas, inclusive de um que foi queimado vivo, atentados
terroristas, incêndios de prédios públicos, inclusive de uma maternidade. Houve
também, é claro, a morte de manifestantes da oposição pelas forças de segurança.
A violência se generalizou.
Ao mesmo tempo, o impasse institucional entre o Poder Executivo e a Asamblea
Nacional, dominada pela oposição congregada na MUD, agravou-se, sem quaisquer
iniciativas de ambos os lados para um diálogo sério e construtivo.
Assim sendo, a Venezuela de hoje está à beira de uma guerra civil de proporções
calamitosas e consequências imprevisíveis.
Ante tal impasse, o governo chavista optou pela convocação de uma Assembleia
Nacional Constituinte, prontamente rejeitada pela oposição.
A oposição logo alegou que a convocação era inconstitucional e que visava
perpetuar o poder de Maduro.
Bom, em primeiro lugar, tal convocação não é inconstitucional. A convocação da
Assembleia Constituinte pelo presidente da república está prevista clara e
explicitamente no artigo 348 da Constituição da Venezuela.
Em segundo lugar, a Assembleia Constituinte não substitui a Asamblea Nacional (o
parlamento unicameral da Venezuela), como foi afirmado falsamente, a qual
continuará a funcionar e a cumprir suas funções legislativas.
Em terceiro lugar, a convocação de assembleias constituintes é um mecanismo
frequentemente usado em países democráticos como solução pacífica para impasses
políticos e institucionais como o que acomete a Venezuela atual.
Em quarto lugar, a convocação teve apoio expressivo da população. O número de
votantes para a assembleia (mais de 8 milhões) foi superior aos votos que teriam
sido obtidos pelo plebiscito informal que a oposição convocou uma semana antes
contra a assembleia ( cerca de 7,2 milhões de votos).
Observe-se que esse plebiscito é que foi, sim, inteiramente ilegal. Não fosse o
clima de violência criado pela oposição, as barricadas que impediram o acesso
aos centros de votação e o boicote ostensivo das empresas de transporte, que
fizeram locaute no dia da votação, a participação eleitoral poderia ter sido bem
superior.
Em quinto lugar, os objetivos estratégicos da Assembleia Constituinte são bem
mais amplos do que o suposto desejo de perpetuar Maduro no poder.
A Assembleia visa essencialmente constitucionalizar as misiones sociais, bem
como estabelecer as bases jurídicas e institucionais de uma economia
pós-petroleira.  A preocupação fundamental é impedir retrocessos sociais, como
os que ocorrem atualmente no Brasil, e criar mecanismos econômicos que levem a
Venezuela a ampliar a base produtiva de sua economia, de modo a superar
definitivamente a sua dependência dos hidrocarbonetos.
Há de se enfatizar, além disso, que o texto que sairá dessa Assembleia só terá
valor jurídico se for aprovado pela população em referendo.
Tal constatação minimiza a crítica da oposição de que o sistema de votação
estabelecido para a Assembleia Constituinte criava um “jogo de cartas marcadas”.
Na realidade, dos 545 membros da Assembleia, dois terços  (364) foram eleitos em
base territorial, e um terço (181) com base em setores organizados da sociedade
civil, como estudantes, agricultores, sindicatos de trabalhadores, organizações
empresariais, representantes das comunidades indígenas, etc.
Embora se possa argumentar que tal sistema gera uma distorção na
proporcionalidade do voto, é necessário se entender que tal distorção é menor do
que a distorção na proporcionalidade que se verifica em muitos países
democráticos que adotam o voto distrital.
No Reino Unido, por exemplo, o Partido Liberal tem sido frequentemente
prejudicado, pois o percentual de cadeiras que recebe é sempre inferior ao seu
percentual de votos. O partido foi sub-representado em todas as eleições para a
Câmara dos Comuns no pós-1945: com uma média de 12,4% dos votos, obteve uma
média de 1,9% das cadeiras. A diferença mais acentuada ocorreu em 1983, quando
recebeu 25,4% dos votos e elegeu apenas 3,5% dos representantes.
Entretanto, as distorções também se dão entre os partidos principais. Por
exemplo, nessas ultimas eleições britânicas, os conservadores tiveram apenas
2,4% a mais de votos entre os eleitores que o Partido Trabalhista (42,4% x
40,0%). Contudo, conseguiram eleger 55 representantes a mais que os trabalhistas
(317×262). Pela proporcionalidade do voto, tal diferença deveria ter resultado
em apenas 15 cadeiras a mais.
Na França moderna, nas duas eleições em que um partido obteve mais de 50% de
cadeiras, ele o fez por intermédio de maiorias manufaturadas por distorções: em
1968, os gaullistas (atual RPR) receberam 38% dos votos e 60% das cadeiras; em
1981, o Partido Socialista, com 37% dos votos, ficou com 57% das cadeiras.
Assim sendo, caracterizar a convocação da Assembleia Constituinte como um
“golpe” ou uma “ruptura da ordem democrática” é algo de evidente má-fé. Pode-se
não concordar com tal convocação, mas não se pode denominá-la de “golpe”. Golpe
foi que aconteceu no Brasil.
A alternativa à Assembleia Constituinte parece ser uma guerra civil aberta. Ao
menos, a Assembleia Constituinte cria uma oportunidade para que se estabeleça um
diálogo que supere o atual impasse político e institucional daquele país.
Lamentável, em todo esse processo, é a posição do governo golpista e sem voto do
Brasil. Desde que assumiu ilegitimamente o poder, esse governo fez da suspensão
da Venezuela do Mercosul e da derrubada do governo chavista a sua diretriz
principal em política externa, atuando como braço auxiliar dos EUA no
subcontinente.
Ao fazê-lo, o governo golpista apequenou o Brasil e retirou qualquer
possibilidade do nosso país atuar como mediador de conflitos na região, como
vinha fazendo nos governos do PT.
O empenho do Brasil contra a Venezuela foi de tal ordem que a suspendeu duas
vezes do Mercosul. Com efeito, antes da última decisão de utilizar a cláusula
democrática do Protocolo de Ushuaia, a Venezuela já estava suspensa, na prática,
do Mercosul desde dezembro do ano passado, sob a escusa, sem embasamento
jurídico, de que o país não havia internalizado todas as normas do bloco,
situação que se verifica em todos os Estados Partes.
Assim, a decisão de utilizar a cláusula democrática representa mera peça
propagandística contra o governo legitimamente eleito da Venezuela.
Além de empenhado nos retrocessos socais e políticos internos, o governo do
Brasil está empenhado também em forçar retrocessos na região.
Nosso principal produto de exportação é hoje o golpe.
*Marcelo Zero é sociólogo, especialista em Relações Internacionais e membro do
Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI).

In
BRASIL247
https://www.brasil247.com/pt/247/mundo/310787/Para-entender-a-Venezuela-hoje-é-preciso-saber-como-era-antes-da-“revolução-bolivariana”.htm
9/8/2017

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