segunda-feira, 26 de março de 2018
Mudança tecnológica e empobrecimento
por Prabhat Patnaik [*]
O facto de os efeitos sócio-económicos da mudança tecnológica dependerem
das relações de propriedade em que se verifica a mudança é óbvio, mas
muitas vezes é ignorado.
Considere-se um exemplo simples. Suponha-se que numa certa área 100
trabalhadores fossem contratados para efectuar a colheita a custo total
de 5000 rúpias, mas o capitalista dono da terra decide ao invés utilizar
uma ceifeira debulhadora. Assim, o rendimento dos trabalhadores cai em Rs
5000. O custo salarial do capitalista dono da terra cai em Rs 5000, os
quais são acrescidos aos seus lucros. Mas suponha que a ceifeira
debulhadora fosse possuída por um colectivo de trabalhadores. Então eles
podem ganhar as mesmas Rs 5000, agora não mais como trabalhadores como os
possuidores colectivos da ceifeira debulhadora; de modo que o que eles
perderiam como rendimento salarial obteriam de volta como rendimento do
lucro pela utilização da ceifeira. O seu rendimento permaneceria
inalterado ao passo que o seu tempo de lazer teria crescido e a labuta do
trabalho para eles teria diminuído.
A ceifeira debulhadora desloca trabalho vivo em ambos os exemplos; mas a
propriedade da mesma torna crucial a diferença quanto às implicações
sócio-económicas da sua utilização. A substituição de trabalho morto por
trabalho vivo, que tal mudança tecnológica implica, tem o efeito de
empobrecer trabalhadores quando ocorre sob a égide do capitalista
proprietário da terra. Mas ela tem o efeito de libertar os trabalhadores
do trabalho penoso sem comprometer o seu rendimento quando ocorre sob a
égide de um colectivo de trabalhadores, quando operam sob uma ética da
"partilha do trabalho, partilha do produto".
O exemplo acima foi de tipo microeconómico. Mas a sua conclusão mantém-se
poderosamente quando adoptamos uma perspectiva macroeconómica, isto é,
quando comparamos mudança tecnológica sob o capitalismo com mudança
tecnológica sob o socialismo, o qual é um sistema inspirado na sua
totalidade pela ética do "trabalho partilhado, produto partilhado".
Suponha-se que a produtividade do trabalho duplique através da introdução
de uma mudança tecnológica particular dentro de um cenário capitalista.
Antes, 100 trabalhadores estavam empregados para produzir 100 unidades de
produto, dos quais 50 recebiam como salários e 50 iam para os capitalistas
como lucros. Mas agora são precisos apenas 50 trabalhadores para produzir
as mesmas 100 unidades de produto; os 50 remanescentes portanto
tornar-se-ão desempregado. E por causa deste desemprego, a taxa de
salário real dos trabalhadores que continuam empregados possivelmente não
pode se elevar quando a produtividade aumenta; na verdade, de facto, ela
cairá, mas vamos assumir para maior simplicidade que permaneça inalterada.
Portanto, a duplicação da produtividade do trabalho deitará abaixo a
massa salarial dos 50 anteriores para 25, ao passo que o excedente dos
capitalistas subirá de 50 para 75.
Esta "mudança de salários para lucros" criará um problema de procura
agregada (uma vez que é consumida uma maior fatia de salários do que de
lucros), razão pela qual todo o excedente produzido de 75 não pode ser
"realizado". Em tal caso, haverá uma crise de "super-produção" e mesmo a
produção de 100 já não será mais realizada. Haverá portanto ainda maior
desemprego, isto é, o desemprego adicional provocado pela mudança
tecnológica não será apenas de 50 mais ainda maior.
Em contraste, uma vez que numa economia socialista não se põe o caso de
pessoas a quererem trabalhar nas condições prevalecentes estarem
desempregados involuntariamente, uma duplicação da produtividade do
trabalho terá um dos seguintes efeitos: ou a duplicação da produção total
para 200 enquanto mantêm como antes o emprego em 100 de modo que o
rendimento de cada trabalhador duplique (isto sem dúvida teria de ocorrer
ao longo de um certo período de tempo durante o qual o stock de
equipamento terá de duplicar); ou a manutenção do produto em 100 como
antes enquanto cortando pela metade a contribuição em trabalho de cada
trabalhador, o qual agora passa ter um maior quantidade de lazer com o
mesmo rendimento; ou provocará alguma combinação dos dois efeitos, isto é,
alguma combinação de maior rendimento e maior lazer para os trabalhadores.
Num caso, o do capitalismo, temos mudança tecnológica a causar
empobrecimento absoluto (com o rendimento dos trabalhadores na sua
totalidade caindo de 50 para 25 ou ainda menos), ao passo que no outro
caso a mesma mudança tecnológica melhora a condição dos trabalhadores. E
isto acontece devido à lógica do trabalho nos dois sistemas, não por causa
de qualquer malevolência ou maldade particular num caso em contraste com o
outro.
Nos dias de hoje muita gente manifesta preocupação sobre o desemprego que
provavelmente aumentará devido à automação que está a ocorrer nos
processos de produção. Tal preocupação é perfeitamente justificada dentro
do quadro do capitalismo; mas seria totalmente inadequada sob o
socialismo. Na verdade, tal automação constitui uma razão particularmente
poderosa para a espécie humana abraçar o socialismo. Se as sinistras
consequências de tal automação tiverem de ser evitadas, então não há
alternativa ao socialismo.
A lógica do capitalismo não só implica que a mudança tecnológica – a qual
tipicamente substitui trabalho – tem o efeito de provocar desemprego e
empobrecimento para os trabalhadores como também que a mudança tecnológica
ocorre a um ritmo que não pode ser controlado e é ditado inteiramente pela
competição entre capitais no mercado. E isto tem implicações muito
importantes para a nossa própria economia.
Frequentemente ouvimos líderes políticos e ministros exortarem o país a
aumentar a produtividade do trabalho de modo a que possa permanecer
competitivo no mercado mundial. Eles estão certos na medida em que sob o
capitalismo neoliberal, onde a economia está aberta à competição
estrangeira, não permanecer competitivo pode ter graves consequências. Mas
o que não é mencionado por eles é que quanto mais rápida for a taxa de
crescimento da produtividade do trabalho, maior será a escala do
desemprego e da pobreza na economia. Se a taxa de crescimento da economia
for, digamos, 8 por cento, então uma taxa de 7 por cento do crescimento da
produtividade do trabalho aumentaria o emprego na economia à taxa de 1
por cento ao ano, ao passo que uma taxa de 5 por cento da produtividade
do trabalho aumentará o emprego à taxa de 3 por ao ano.
Pode-se pensar que se a produtividade do trabalho crescesse rapidamente
então a própria taxa de crescimento do produto também aumentaria, de modo
que ninguém precisaria se preocupar quanto à questão do emprego. Mas de
qualquer forma há limites para a taxa de crescimento do produto,
especialmente numa economia aberta cujo dinamismo depende da taxa de
crescimento das exportações líquidas. Isto é assim porque outros países
não ficam simplesmente sentados e a observar seus mercados serem tomados
por alguma economia com crescimento particularmente rápido. Eles
retaliariam de diferentes maneiras a fim de restringir o crescimento da
exportação deste país e portanto o seu crescimento geral.
Assim, se a taxa de crescimento do produto for elevada, esta deve
permanecer dentro de certos limites. A taxa elevada de crescimento da
produtividade do trabalho que num universo neoliberal ocorre tipicamente
devido à competição no mercado mundial, muitas vezes garante que a taxa de
crescimento do emprego seja insuficiente para impedir uma ascensão do
desemprego e o empobrecimento.
Uma comparação entre a experiência da economia indiana sob o
neoliberalismo e a aquela sob [o período do] dirigismo é instrutiva
neste contexto. No período do neoliberalismo, enquanto a taxa de
crescimento do PIB supostamente acelerou-se a 7 por cento ao ano ou mais,
a taxa de crescimento do emprego foi de apenas 1 por cento, ao passo que
na era dirigista a taxa de crescimento do PIB era quase a metade do
número no período liberal, isto é, cerca de 3,5 por cento, mas a taxa de
crescimento do emprego era o dobro, ou seja, 2 por cento ao ano.
A taxa de crescimento do emprego sob o neoliberalismo está abaixo mesmo
da taxa natural de crescimento da força de trabalho. Ela está
claramente abaixo da taxa de crescimento da força de trabalho quando
adicionalmente nela incluirmos os camponeses e os pequenos produtores
deslocados, trazidos à penúria pelo ritmo grandemente acelerado do
processo de "acumulação primitiva de capital" desencadeado pelo
neoliberalismo e à procura de trabalho fora das suas ocupações
tradicionais.
Não é de surpreender que sob o neoliberalismo, longe de ter havido
qualquer enrijecimento do mercado de trabalho, aconteceu precisamente o
oposto: a dimensão relativa das reservas de trabalho expandiu-se muito,
as quais contribuíram para um agravamento absoluto das condições de vida
não só daqueles que faziam parte directamente das reservas de trabalho
como também daqueles que faziam parte do exército de trabalho na activa
mas cuja força negocial foi diminuída pela explosão das reservas de
trabalho.
O aumento galopante da desigualdade de rendimento e riqueza na era
neoliberal, o qual é um facto absolutamente inegável, é o resultado
directo disto. E assim também é o crescimento da "pobreza" absoluta, a
qual o governo nega constantemente, mas que é igualmente incontestável
mesmo quando "pobreza" é definida pelo próprio critério governamental, de
utilizar uma norma nutricional.
A este respeito, a razão para a diferença entre os períodos dirigista e
neoliberal verifica-se porque durante o período anterior houve certas
restrições à taxa de mudança tecnológica e estrutural, assim como à
magnitude das quedas de preços às quais foi submetida a maior parte do
campesinato (elas são uma causa importante da sua dívida actual e do seu
empobrecimento). Um exemplo óbvio da primeira foi a restrição a "teares
manuais" ("handlooms") e um exemplo óbvio da outra foi o isolamento dos
preços agrícolas internos em relação aos preços do mercado mundial que
flutuam de modo selvagem, através de tarifas, restrições comerciais
quantitativas, compras de cereais pela FCI e intervenção no mercado por
vários organismos de commodities no caso de colheitas comerciais.
O neoliberalismo remove todas estas restrições e restaura a
"espontaneidade" do capitalismo, inclusive na questão da introdução da
mudança tecnológica. Não é de admirar que a perspectiva de o capitalismo
estar sempre aberto a mudanças tecnológicas dando origem ao crescimento
relativo de reservas de trabalho e, portanto, ao empobrecimento que se tem
manifestado na nossa economia.
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2018/0318_pd/technological-change-and-impoverishment .
Tradução de JF.
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/patnaik/patnaik_18mar18.html
18/3/2018
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