segunda-feira, 30 de abril de 2018
Acerca da natureza do sistema económico chinês
por Tony Andreani [*] , Rémy Herrera [**] e Zhiming Long [***]
Hoje em dia, os dirigentes chineses não negam a existência na sua
economia um importante sector privado capitalista, autóctone ou
estrangeiro. Em geral, eles o consideram antes como um dos componentes de
uma economia mista em que a predominância é concedida ao sector público e
em que o poder do Estado deve ser reforçado. Os discursos de numerosos
líderes avançam que a China ainda se encontraria na "fase primária do
socialismo", etapa considerada incontornável para desenvolver as forças
produtivas e que exige muito tempo até a sua conclusão. O objectivo
histórico permaneceria entretanto o do socialismo desenvolvido – mesmo
se, é verdade, seus contornos estarem longe de serem claramente definidos.
Serão tais declarações apenas de fachada, a roupagem de uma forma de
capitalismo? Mereceriam elas serem tomadas a sério? O socialismo estaria
morto e enterrado na China? Não pensamos assim.
Entretanto, nos debates entre autores marxistas, uma clara maioria deles
afirma que a economia chinesa seria agora capitalista. Assim, Harvey
(2005) crê detectar desde as reformas de 1978 um "neoliberalismo com
características chinesas" em que um tipo singular de economia de mercado
teria incorporado cada vez mais componentes neoliberais accionados no
quadro de um controle centralizado muito autoritário. Arrighi (2009),
para explicar o êxito da economia chinesa, mobiliza por sua vez uma
releitura a contra-corrente da obra de Adam Smith, mais progressista do
que o reconhecem seus discípulos partidários do liberalismo. Segundo ele,
as elites chinesas utilizariam "o mercado como ferramenta de governo".
Panitch e Gindin (2013) analisam as implicações da integração da China nos
circuitos da economia mundial e vêem nisso menos a oportunidade de
reorientar o capitalismo global do que a duplicação pela China do papel de
"complemento" outrora mantido pelo Japão, fornecendo aos Estados Unidos os
fluxos de capitais necessários para conservar sua hegemonia mundial, de
onde uma tendência à liberalização dos mercados financeiros conduzindo ao
desmantelamento dos instrumentos de controle dos movimentos de capitais e
minando as bases do poder do Partido Comunista Chinês (PCC). [1] Outros
marxistas, certamente mais raros, mas não menos importantes, chineses ou
estrangeiros, [2] continuam entretanto a defender a ideia de que o sistema
em vigor na China, ainda que assimilável a um capitalismo de Estado,
deixaria aberto um vasto leque de trajectórias possíveis para o futuro. No
presente artigo, levaremos mais adiante esta ideia, ao ponto de sustentar
que o sistema chinês hoje contém ainda elementos chaves do socialismo.
Assim, a interpretação da sua natureza torna-se compatível com a de um
socialismo de mercado, ou com mercado, repousando sobre pilares que o
distinguem ainda bastante claramente do capitalismo.
Características do socialismo de mercado à chinesa
Para Marx, o capitalismo implica uma separação muito forte entre o
trabalho e a propriedade dos meios de produção, enquanto os detentores do
capital seriam eles próprios tendencialmente colectivos, já não efectuando
trabalho na produção. Isso se realiza plenamente no capitalismo
financiarizado actual em que a gestão é delegada a administradores e o
lucro da empresa assume a forma de valor accionista. De acordo com este
critério fundamental de definição do capitalismo, verifica-se que
numerosas pequenas empresas chinesas têm mais a ver com a produção
familiar ou artesanal do que com o modo de produção capitalista estrito.
Além disso, a lógica do capitalismo é a da maximização do lucro
distribuível aos proprietários. Ora, não é isto que se observa nas grandes
empresas públicas chinesas, como mostra a fraqueza (mesmo a inexistência)
dos dividendos entregues ao Estado, assemelhando-se ao invés a um imposto
sobre o capital. A separação capital-trabalho é muitas vezes relativa na
China: ela é limitada nas empresas públicas, o que impede de considerá-las
rigorosamente como uma forma de capitalismo de Estado, e mais ainda na
economia dita "colectiva" onde os trabalhadores participam na propriedade
do capital ou têm mesmo a propriedade como nas cooperativas (por acções ou
não) e nas comunas populares preservadas. Naturalmente, mesmo nestas
entidades colectivas os trabalhadores permanecem "separados" da gestão,
mas toda esta economia colectiva não estatal não pode ser ignorada e não
poderia ser classificada sob a bandeira do "capitalismo".
Fazemos uma leitura do sistema chinês como um socialismo de mercado, ou
com mercado. Assim, este socialismo repousaria sobre os dez pilares
seguintes, em grande medida estranhos ao capitalismo:
i) a persistência de uma planificação poderosa e modernizada, que assume
modalidades diversas e mobiliza instrumentos distintos conforme os
sectores a que se refere;
ii) uma forma de democracia política tornando possíveis as escolhas que
estão na base desta planificação;
iii) serviços públicos muito extensos, que condicionam a cidadania
política, social e económica e, enquanto tais, estão fora do mercado ou
fracamente mercantilizados;
iv) uma propriedade da terra e dos recursos naturais que permanece no
domínio público, estatal ao nível nacional, colectivo ao nível local,
garantindo assim o acesso à terra pelos camponeses;
v) formas de propriedade diversificadas adequadas à socialização das
forças produtivas: empresas públicas (diferindo das firmas capitalistas,
nomeadamente pela participação dos trabalhadores na gestão), pequena
propriedade privada individual ou propriedade socializada – sendo a
propriedade capitalista, durante uma transição socialista longa, mantida
e mesmo encorajada, para dinamizar a actividade e incitar as outras formas
de propriedade à eficácia;
vi) uma política geral consistente em aumentar os rendimentos do trabalho
em relação às outras fontes de rendimentos;
vii) a promoção manifestada da justiça social numa perspectiva
igualitarista;
viii) a preservação da natureza, considerada como indissociável, não
antagónica do progresso social, como objectivo do desenvolvimento a fim de
maximizar a riqueza efectiva,
ix) relações económicas entre Estados fundamentadas sobre um princípio
ganhador-ganhador;
x) relações políticas entre Estados repousando na busca da paz e das
relações mais equilibradas entre os povos.
A análise de cada um destes pontos não é indiscutível e é objecto de
debates ásperos tanto na China como no exterior – debates que estão longe
de estarem resolvidos, mas que existem e devem ser aprofundados sem a
priori nem ideias preconcebidas. Apesar das críticas, veremos que ao
confrontar o "socialismo à chinesa" com esta grelha de leitura, ele não
está muito afastado. [3]
Empresa públicas, serviços públicos, planificação
Na China, a justificação das empresas públicas é tripla: elas podem
distribuir mais a seus assalariados; o Estado é livre para nelas definir o
modo de gestão (em matéria salarial nomeadamente); e ele pode mais
facilmente colocá-las ao serviço dos seus projectos. Através das
ferramentas ao dispor do organismo de gestão das participações, o Estado
afecta os dividendos recebidos a um fundo especial de sustentação das
empresas públicas, as quais beneficiam igualmente de vantagens em matéria
de crédito e de taxa de juro. Isto se inscreve portanto numa via
socialista.
Uma explicação para a força destas empresas públicas é que elas não são
geridas como as firmas privadas ocidentais, cotadas em Bolsa e orientadas
para a maximização do valor das acções por distribuição de dividendos,
valorização das acções e retorno sobre o investimento porque pressionam
sub-contratantes, locais ou deslocalizados. Se elas se comportassem de
modo tão predatório, estas empresas públicas chinesas agiriam em
detrimento do tecido industrial local, o que manifestamente não é o caso.
Teríamos então negócios sob uma forma selvagem de "capitalismo de Estado"
(como se pretende frequentemente) e não se vê como ele poderia produzir um
crescimento económico tão dinâmico. Estas empresas públicas chinesas são
(ou são tornadas) rentáveis porque a bússola que as guia não é o
enriquecimento dos accionistas, mas sim o investimento produtivo e o
serviço prestado aos seus clientes. Pouco importa que os seus lucros sejam
menos elevados que os dos seus concorrentes ocidentais se eles servem
parcialmente para estimular o resto da economia.
Uma das especificidades destas empresas públicas é, assim, a de entregar
apenas poucos dividendos ao Estado accionista (cerca de 10%). Hoje,
numerosos peritos internacionais preconizam aumentar estes dividendos e a
Comissão de Regulação da Bolsa parece por vezes estar de acordo. Esta
orientação, inspirada nas práticas capitalistas ocidentais, não parece a
boa fórmula, pois as empresas públicas ficariam então privadas dos seus
trunfos principais e, mesmo controladas pelo Estado, teriam tendência a
distribuir sempre mais para obterem os favores dos accionistas privados,
como fazem as firmas ocidentais – que dependem elas próprias muito
frequentemente das estratégias de carteira dos oligopólios financeiros
mundialmente dominantes. Aqui, mais valeria que o Estado chinês
instaurasse um imposto sobre o capital, na forma de renda (loyer) pela
colocação à disposição dos seus bens e que as empresas lucrativas pudessem
conservar uma parte maior dos benefícios para fins de investimento e de
I&D.
Na nossa opinião, as empresas públicas chinesas não devem ser geridas
como firmas privadas. O "socialismo de mercado à chinesa" repousa sobre a
manutenção de um poderoso sector público com papel estratégico na
economia. Tudo leva a pensar que esta é uma das explicações essenciais dos
desempenhos da economia chinesa, não obstante os neoliberais exaltarem a
propriedade privada e a maximização do lucro individual. Isto sem dúvida
também está ligado ao porte destas empresas, mastodontes a engendrarem
economias de escala que reduzem os custos a todos os níveis e fornecem a
uma miríade de pequenas e médias empresas insumos (intrants) baratos que
asseguram condições de fabricação competitivas no mercado.
Uma "superioridade" das empresas públicas chinesas é a participação
(limitada, mas real) do pessoal na gestão, através dos seus representantes
no Conselho de Fiscalização e no Congresso dos Operários. A lógica
accionista iria ao encontro de uma tal participação, que é preciso
reforçar. Outra vantagem é que as empresas públicas podem mais facilmente
responder aos objectivos da planificação. Não se trata de lhes impor
tarefas políticas que poriam em causa a sua autonomia e onerariam os seus
resultados. Mas ao controlar a nomeação e a gestão dos dirigentes, os
poderes públicos, de que dependem empresas muito numerosas, têm os meios
de assegurar que eles agem como convém aos serviços públicos – mas também
aos sectores mercantis, que o plano pode orientar (por subvenções,
fiscalidade, ...).
Na China, os serviços sociais (educação, saúde, reformas, ...) estão na
totalidade ou na grande maioria nas mãos do Estado – governo central ou,
mais frequentemente, governos locais. Tais serviços não fornecem bens
mercantilizados pelo sector privado, mas bens sociais, necessários ao
exercício da cidadania, dando aos indivíduos a capacidade de serem
simultaneamente sujeitos políticos, sociais e económicos (formados, em boa
saúde, tendo acesso ao emprego, com equipamentos de transporte,
informados, etc). Mas a concepção chinesa estende os serviços públicos aos
"bens estratégicos", fornecendo insumos essenciais ao resto da economia:
energia, infraestruturas, materiais de base e mesmo serviços bancários ou
investigação. Se o sector privado serve de complemento ou estimulante, o
sector público é favorecido pelo Estado no exercício da concorrência. Esta
concepção ampla dos serviços públicos "estratégicos" constitui uma das
maiores forças da economia chinesa. O que está aqui em causa é a soberania
nacional.
Um traço notável do sistema político-económico chinês é a sua possante
planificação que, apesar de ter mudado seus objectivos e instrumentos no
decorrer das últimas décadas, continua a ser aplicada. Os discursos
apresentados a cada ano diante da Assembleia Nacional Popular indicam se
os objectivos quantificados inscritos no plano quinquenal foram realizados
– e frequentemente é o caso –, e dão a conhecer o que esperar para o ano
seguinte. Esta planificação, que se projecta para o futuro num mundo de
incertezas, é o lugar onde são elaboradas e decididas as escolhas
colectivas, expressão de uma vontade geral. Ela é o espaço onde uma nação
escolhe um destino comum e o meio de um povo de se tornar o mestre, em
todos os domínios da existência: modo de vida, modos de consumir, de se
alojar, de ocupar o espaço... É o PCC que, hoje, efectua estas escolhas
para os cidadãos – o princípio da consulta estando cada vez mais colocado
como necessidade. Esta planificação "estratégica" forte, com técnicas
modernizadas, adaptadas às exigências do tempo presente e que têm eficácia
(taxas bonificadas, controle dos preços, encomendas públicas, etc) é um
traço distintivo de uma via socialista.
Entretanto, com toda evidência, estamos hoje bem longe do ideal
igualitarista do socialismo. A China é um país onde as desigualdades
sociais são fortes. A aplicação da linha igualitarista foi "suspensa" para
acelerar o crescimento (daí a palavra de ordem "enriquecer-se antes dos
outros"), depois foi novamente retomada com a recente promoção de temas de
justiça social. A defesa da "moral socialista" pelos responsáveis do PCC
pode prestar-se ao cepticismo, mesmo aos sarcasmos, quando se sabe dos
comportamentos da China actual: consumismo, negocismo, arrivismo, gosto do
luxo, corrupção... Mas não se deve tomar este discurso moral com
ligeireza: é o do Estado chinês, constantemente oposto a esta degradação
dos costumes. Se ele se inscreve numa certa continuidade com a tradição,
muitas vezes reivindicada, esta ética reclama-se da modernidade dos ideais
do socialismo e não de uma justiça social restrita a uma redistribuição
limitada dos rendimentos, de uma equidade justificando uma "justa
desigualdade" e definida como ligeira melhoria da sorte dos destituídos e
de uma democracia representativa que confisca de facto a participação do
povo. Mas é no sector púbico que o Estado dispõe dos meios eficazes para
reduzir realmente estas desigualdades. Podem aqui ser activados a
participação dos trabalhadores na gestão e o papel de "locomotiva social"
desempenhado pelas empresas públicas. Eis um argumento a mais que milita
em favor de um reforço do sector público.
Controle do sistema bancário e dos mercados financeiros
Alguns julgam o sistema financeiro chinês obsoleto e apelam à sua
modernização, devido ao auge dos mercados financeiros que seria, segundo
eles, indispensável ao crescimento. [4] A reformas deste sistema
financeiro aceleraram-se desde 2005 e tomaram a forma de uma abertura do
capital dos bancos do Estado e da criação de bolsas de valores. Elas
seguiram as das empresas públicas, tomadas anteriormente. Estas últimas
haviam sido autonomizadas em relação às orientações do Plano,
transformadas em sociedades por acções e incitadas a adoptar critérios de
gestão mercantis, a inspirarem-se em métodos da finança de mercado e a
desenvolver parcerias com investidores externos. A introdução em bolsa dos
grandes bancos (Bank of China, Industrial and Commercial Bank of China e
China Construction Bank) foi antecedida pela entrada de instituições
estrangeiras na sua estrutura de capital (respectivamente Goldmann Sachs,
UBS et Bank of America), a fim de facilitar a aprendizagem da corporate
governance . Entretanto, o sistema de financiamento da economia chinesa
hoje continua fundamentado na intermediação bancária – ainda que tenda a
afastar-se bastante rapidamente, pois as autoridades políticas pretendem
encontrar um "equilíbrio" entre os sistemas de financiamento pelos
mercados financeiros e pelo crédito bancário.
Mas não se pode confundir "modernização" e adopção da via capitalista.
Está longe de ser claro que uma opção em favor da finança de mercado tenha
sido feita definitivamente, pois permanecem maciças as intervenções das
autoridades monetárias no sistema financeiro e é perceptível o pragmatismo
da sua actuação. Os poderes públicos chineses procedem de facto por
solavancos, por avanços e recuos num contexto de integração mais
aprofundado, mas contraditório, do país na mundialização. Isto aconteceu
sobretudo nas fases de enfraquecimento do crescimento económico após 2007,
marcadas por uma activação dos créditos bancários corrigindo as falhas da
finança. Na viragem dos anos 1990, os bancos que se haviam empenhado em
operações aventurosas (finança, seguros, imobiliário...) foram proibidos
de o fazer entre 1992 e 1995, na sequência das desordens provocadas pela
crise de 1989-1991 – ainda que tenham sido desde então autorizadas a
efectuar operações mistas combinando crédito bancário e mercados
financeiros. Mais recentemente, depois de 2008, como já vimos, as
autoridades chinesas foram obrigadas a reagir firmemente para limitar o
impacto social desestabilizador da crise mundial, fazendo evoluir o
quadro institucional ao dotarem-se de instrumentos poderosos de controle e
consolidarem suas estratégia de desenvolvimento.
Na China, a tese da "eficiência dos mercados financeiros" não tem
partidários, como testemunham os apelos a uma nova ordem monetária e
financeira mundial lançados regularmente pelos líderes políticos do país,
que conhecem as vantagens da intermediação bancária e estão conscientes
das graves disfunções dos mercados financeiros. Estes dirigentes preferem
conservar o essencial do sistema bancário sob o controle do Estado,
esforçando-se por melhorá-lo, repugnando-lhes abandonar o modelo de "banco
universal" e orientando-se antes para um esquema consistente em tolerar
operações mistas, mas efectuadas nas filiais especializadas, separadas do
holding público e colocadas sob a vigilância da Comissão de Regulação
bancária.
Além disso, as taxas de juro permanecem amplamente administradas, apesar
das reformas iniciadas. Para aquelas que foram liberalizadas, a oferta de
crédito é fortemente controlada pelo Banco Central, nomeadamente através
das reservas obrigatórias. E o afrouxamento dos constrangimentos impostos
aos bancos para fixar as taxas aplicadas aos depósitos não deve fazer
esquecer que historicamente as autoridades monetárias voluntariamente
reduziram ao mínimo (sob o ritmo da inflação) a remuneração destes
depósitos – o que não influenciou a taxa de poupança nacional, muito
elevada. Uma das especificidades (e forças) da China é a torção
voluntarista dos preços dos factores. O governo teve razão em não deixar o
mercado fixar "livremente" o preço do dinheiro de modo a continuar como
mestre da oferta de crédito, difícil de controlar mas vital para a
economia. As autoridades estatais, que têm uma visão macroscópica dos
riscos, são as únicas em condições de guiar a economia no seu conjunto em
função de um plano. Taxas de juros administradas não permitem ajustar
rapidamente a oferta de poupança das famílias e as necessidades de
financiamento das empresas, conviria talvez preferir um regime de taxas
"semi-administradas", com tectos para a oferta de créditos e pisos para a
remuneração da poupança – modificando estas taxas conforme as necessidades
do plano. Mas neste debate sobre as taxas de juro, pendemos para a
manutenção de um certo dirigismo.
A ampliação da esfera privada implica logicamente uma expansão do mercado
de acções. Mas segundo a nossa opinião, este último deveria permanecer
limitado. Se ele tem a sua utilidade para o sector privado, as empresas
públicas em contrapartida deveriam ter cada vez menos necessidade na
medida em que expandem suas capacidades de auto-financiamento e dispõem
dos fundos de Estado para realizar aumentos de capital. A abertura do
mercado de acções aos actores internacionais está no momento restrita aos
investidores "qualificados". Os poderes públicos, que desconfiam – com
razão – dos movimentos de capitais especulativos, até agora têm proibido
às firmas estrangeiras emitirem acções em yuans sobre o mercado interno.
Afrouxar estes travões, em particular para avançar rumo à plena
convertibilidade do yuan e das suas supostas vantagens, equivaleria a
submeter-se aos oligopólios financeiros, especialmente estado-unidenses.
O recurso ao mercado de acções deveria permanecer tão limitado quanto
possível e não conduzir a um alinhamento na prática do valor accionista. A
poupança chinesa é bastante abundante para ser mobilizada por investidores
institucionais nacionais, aos quais além disso se pode impor limites de
rentabilidade.
Uma estratégia de desenvolvimento coerente e auto-centrada
Um traço frequentemente sublinhado para descrever o êxito desta economia
é o florescimento das suas exportações de bens e serviços desde o
princípio dos anos 1990 e, sobretudo, 2000. Conclui-se apressadamente que
estas exportações seriam o motor do crescimento do país. Isto é esquecer
que a estratégia de desenvolvimento, concebida e aplicada com regularidade
e pragmatismo pelos dirigentes chineses, apoia-se num modelo mais
auto-centrado do que parece, repousando – é um dos "segredos" dos seus
desempenhos nos mercados mundiais, ainda que isso desagrade aos
neoliberais – na manutenção de um sector estatal muito poderoso (na
energia, nos transportes, nas telecomunicações, nos materiais de base e
produtos semi-acabados, na construção, mas também no sistema bancário,
etc), com papel dinamizador para o conjunto do tecido económico local.
Na China, a grande maioria dos empresários dos sectores manufactureiros
chineses interessa-se sobretudo pelos mercados internos para as suas
produções. É sobretudo o florescimento da procura interna, estimulada por
um consumo das famílias em crescimento acentuado e pelas importantes
despesas de capital do Estado que conduz os seus programas de investimento
rumo ao optimismo. Graças aos progressos da inovação tecnológica em todos
os domínios (inclusive das telecomunicações, na robótica, no espaço, etc),
cada vez mais dominados nacionalmente, o esquema produtivo do país pôde
evoluir do made in China para o made by China.
O ritmo acelerado dos ganhos de produtividade do trabalho permite
acompanhar a alta rápida dos salários reais industriais, sem que o aumento
de peso dos custos do trabalho chinês relativamente aos outros países
concorrentes do Sul deteriore a competitividade. As exportações – tal
como os investimentos directos estrangeiros, pois mais da metade das
exportações são feitas por firmas estrangeiras implantadas na China –
desempenham um papel complementar. Isso permite compreender porque em
2011, por exemplo, a contribuição líquida negativa das exportações para o
crescimento do PIB (-5,8%) não prejudicou o dinamismo deste último (cerca
de +10%), nem entravou a alta das margens de lucro. A previsão de
crescimento do PIB para 2018 é de 6,7% (com uma taxa de inflação de 1,5%),
com contribuições estimadas de 4,5% para o consumo, 2,0% para o
investimento, mas apenas 0,2% para as exportações.
Ouve-se frequentemente dizer que o êxito das exportações chinesas seria
devido ao custo muito baixo da mão-de-obra. O argumento é insuficiente: os
custos de mão-de-obra não representam de facto senão uma parte fraca dos
preços de venda (5% a 10% em média), o que não compensa – ainda que os
salários chineses tenham tendência para crescer mais rapidamente que os
dos concorrentes do Sul – os custos de transporte para os países
importadores. O êxito da China na exportação deve-se numa grande medida
aos custos menos pesados dos insumos fornecidos por empresas públicas a
preços muito mais baixos, pois fixados ou fortemente controlados pelo
Estado (exemplo: os combustíveis). Certamente os salários chineses são
claramente mais baixos do que no Norte, mas bem mais elevados do que os
pretensos "salários de miséria".
Em resposta à crise de 2008, cujo impacto na China se fez sentir alguns
anos mais tarde, as políticas anti-crise do Estado têm visado corrigir os
desequilíbrios da economia, nomeadamente por um florescimento maciço das
infraestruturas públicas (inclusive em zonas rurais), pela promoção de
novos pólos urbanos de porte intermediário no interior do país e pela
adopção de medidas favoráveis à população agrícola. [5] Os rendimentos
líquidos das famílias rurais aumentaram assim, em termos reais e per
capita, significativamente mais rápido que os das zonas urbanas. Portanto,
as partes consagradas ao consumo no rendimento nacional aumentam em
relação à do investimento. Os serviços às famílias e às empresas
progridem. O imobiliário também está controlado, em particular pelo
crédito.
O destino do yuan
Ainda assim, o florescimento das exportações chinesas de bens e serviços
– além das de capitais (refinanciamento do Tesouro estado-unidense,
reestruturação de dívidas soberanas na Europa) [6] – cristaliza um outro
ponto de tensão. A moeda chinesa, o renminbi, cuja unidade monetária é o
yuan, estaria sub-avaliada, lê-se frequentemente no Ocidente, e portanto
estaria na origem da persistência de défices comerciais bilaterais com a
maior parte dos países do Norte, a começar pelos Estados Unidos [7] . As
pressões exercidas por Washington no sentido de uma apreciação do renminbi
frente ao dólar deparam-se com a resistência de Beijing, mas redundaram em
várias reavaliações – a última datando de Abril de 2012, após a de Julho
de 2005. Entre o Verão de 2005 (quando a China decide deixar de ligar as
variação da sua moeda ao dólar) e a Primavera de 2012, o valor do renminbi
apreciou-se em termos reais em 32% relativamente ao dólar. [8] Mas a
lenga-lenga continuou: os produtos exportados pela China, já baratos,
seriam tornados ainda mais competitivos por uma moeda depreciada
artificialmente...
Sabe-se que as discussões sobre o "justo valor" das moedas, articuladas
sobre decisões de políticas comerciais, são polémicas. Ora, dentre os
critérios disponíveis, a relação saldo da balança das contas correntes
sobre PIB é a mais utilizada pela administração estado-unidense. O
referencial assim considerado para definir a taxa de câmbio "de
equilíbrio" é um rácio excedente ou défice da balança de pagamentos
correntes sobre PIB no intervalo entre +/- 3 ou 4%. Ao aplicar este
critério à China, marcado pelo peso das trocas bilaterais com os Estados
Unidos, vê-se que o rácio retrocede de 10,6% em 2007 para 2,8% em 2011 e
1,4% em 2012. A "sub-valorização" do renminbi não é evidente quando se
utiliza o benchmark mais praticado nos Estados Unidos. O que não impede
estes últimos, apesar dos graves desequilíbrios que caracterizam a sua
economia, de prosseguir o que se assemelha a uma "guerra das moedas", por
depreciação do dólar no mercado de câmbios, para impor a Beijing os termos
daquilo que alguns chamam uma "capitulação" [9] – e um de cujos efeitos é
desvalorizar as reservas em divisas da China, maioritariamente detidas em
dólar.
Um renminbi internacionalizado, especialmente para transformá-lo em moeda
de reserva global, exigiria a adopção de condições muito estritas: a
abertura da conta de capital, assim como a flexibilidade da taxa de
câmbio; a integração dos mercados financeiros chineses no sistema mundial
capitalista; políticas macroeconómicas (de luta contra a inflação, de
limitação do endividamento público, etc) que visem a obtenção da
"confiança" dos mercados; e uma dimensão crítica da economia que
justificasse esta ambição de internacionalização da moeda. As duas
primeiras condições são exigências sine qua non; as duas últimas, não –
e aliás nem sempre têm sido respeitadas pelos países do Norte com moedas
utilizadas como reservas internacionais.
A dimensão crítica evidentemente já foi atingida: o peso da China
coloca-a no segundo lugar mundial quanto ao PIB, atrás dos Estados Unidos,
e entre estes últimos e a zona quanto às exportações. O critério relativo
às políticas macroeconómicas parece igualmente cumprido, na medida em que
a adopção das medidas anti-inflacionistas, de controle das contas públicas
e de domínio do curso do renminbi trouxeram os seus frutos nestes últimos
anos. Se as pressões inflacionistas permanecem um perigo, o índice de
estabilidade dos preços é melhor na China do que nos outros BRICS. O
endividamento das administrações públicas está contido a níveis menos
elevados do que na maior parte dos próprios países ocidentais. Os índices
de variabilidade da moeda nacional mostram também um renminbi menos
instável que o real, a rupia, o rublo e o rand. Contudo, quanto à abertura
da conta de capital e à integração mais profunda dos mercados financeiros
chineses no sistema mundial, é forçoso reconhecer que, apesar da adopção
de mecanismos de mercado em matéria de política monetária e da
flexibilização das regulamentações relativas à conta de capital e à
paridade do renminbi, as autoridades monetárias chinesas continuam a
dispor de poderosas ferramentas de controle. Além disso, e sem estar
totalmente ausente, o renminbi ainda é pouco utilizado nos mercados de
produtos derivados over-the-counter , e concentrado nos instrumentos
clássicos de cobertura (forwards) [10] .
A internacionalização da moeda traria benefícios à China, a começar por
um "direito de seignieuriage" , bem visível no caso dos Estados Unidos.
Entretanto, uma tal orientação significaria uma submissão prejudicial do
país à alta finança mundial dominante, portanto uma perda relativa de
controle da política monetária. Como é que a China chegaria a tirar
proveito de um renminbi internacionalizado sem pagar demasiado caro –
renunciando ao pleno exercício da sua soberania nacional e vendo recusar a
autonomia da sua estratégia de desenvolvimento? Hoje, as pressões internas
em favor de uma liberalização dos mercados financeiros são fortes, mas
ficam atenuadas por discursos oficiais tranquilizantes, críveis, sobre o
controle do processo de reformas. Mas estas pressões tornam-se
preocupantes quando coincidem com as recomendações dos peritos do FMI ou
dos líderes ocidentais que convidam a China a escolher a via do
neoliberalismo – e se necessário, integrando o renminbi no cabaz
monetário dos Direitos Especiais de Saque . Sobre o assunto, os
dirigentes chineses, em geral com declarações nuançadas e prudentes, estão
conscientes dos perigos que um renminbi internacionalizado implica para o
futuro do socialismo de mercado. Esperamos que saibam resistir às sereias
do liberalismo. Nesse meio tempo, eles reforçam suas parcerias com o Sul e
o Leste, em particular no quadro do grupo de Shangai, e reabrem uma rota
da sede para afrouxar a morsa do cerco agressivo dos Estados Unidos.
Conclusão
A evolução das relações entre, por um lado, o PCC no poder e o bloco
social sobre o qual ele se apoia – classes médias beneficiárias do
crescimento e empresários privados –, e, por outro, massas operárias e
camponesas, que vão no sentido de uma restauração do capitalismo ou então
de uma reactivação de um compromisso social mais favorável às classes
populares, opera sobre perspectivas de confrontações de grande amplitude
entre as forças políticas em presença, e sobre trajectórias divergentes de
estruturas da economia. [11] Uma questão subsiste: como as elites
dirigentes, cuja legitimidade se vê reforçada pelas repercussões positivas
geradas pelo crescimento, chegariam a renovar as condições da "success
story" do país sem se apoiarem sobre uma modificação da correlação de
forças interna em favor das classes populares e sem reorientar o "projecto
nacional" para uma prioridade às políticas sociais? Pois a escolha da via
capitalista assumida francamente por estas elites, conducente a quebrar o
equilíbrio dinâmico do sistema e a perder o controle sobre contradições
crescentes, não garantiria o fracasso da estratégia adoptada até agora?
Uma outra preocupação surge: qual será a atitude dos Estados Unidos,
inclusive do ponto de vista militar, frente ao reforço de poder da China?
O futuro desta última permanece em grande medida indeterminado, pela sua
dinâmica própria, mas também porque o capitalismo dos oligopólios
financeiros do Norte parece querer entrar frontalmente em conflito com ela
– apesar da sua estreita interdependência. Por isso, continuamos a pensar,
o sistema político-económico em vigor na China continua a conter elementos
(e potencialidades de reactivação) do socialismo, assim como
possibilidades de transformação da ordem global, no sentido da construção
lenta e progressiva de um mundo multipolar, frente ao hegemonismo
estado-unidense.
26/Abril/2018
[1] Ver: Harvey D. (2005), A Brief History of Neoliberalism, New York:
Oxford University Press; Arrighi G. (2009), Adam Smith in Beijing:
Lineages of the 21st Century, London: Verso; Panitch L. and S. Gindin
(2013), "The Integration of China into Global Capitalism", International
Critical Thought, (3)2, 146-158.
[2] Por exemplo: Wen T. (2001), "Centenary Reflections on the ' Three
Dimensional Problem, ' of Rural China", Inter-Asia Cultural Studies ,
2(2), 287-295. Amin S. (2013), "China 2013", Monthly Review , 64(10),
online.
[3] Andreani T. and R. Herrera (2015), "Which Economic Model for China?",
International Critical Thought, 5(1), 111-125.
[4] Mishkin F. (2010), The Economics of Money Banking and Financial
Markets, Upper Saddle River: Pearson.
[5] Wong E. e T. Sit (2015), "Rethinking 'Rural China'", in Herrera R.
and K.-C. Lau (dir.), The Struggle for Food Sovereignty, 83-108, London:
Pluto Press.
[6] Ler: "More UK equities for China?", Financial Times, 3 June 2011.
[7] Ver os relatórios do US Congressional Research Service.
[8] Bank for International Settlements (BIS).
[9] Wolff M. (2010), Financial Times, 12 October 2010.
[10] Herrera R. (2014), "A Marxist Interpretation of the Current Crisis",
World Review of Political Economy, 5(2), 128-148.
[11] Amin S. (2010), "Prefacio", in Herrera R., Avances
revolucionarios en América Latina, Quito: FEDAEPS.
NR: A seriedade dos autores deste artigo e os elementos informativos que
contém levou à sua publicação por resistir.info. Isso não significa
necessariamente endossar o optimismo dos mesmos quando consideram que o
socialismo continua dentro do leque das possibilidades no futuro
previsível da China. A presente acumulação de reservas ouro pelo banco
central da China – no momento em que já se antevê o fracasso das moedas
fiduciárias que servem de reserva mundial, nomeadamente o US dólar – pode
ter duas explicações alternativas: 1) uma garantia (hedging) contra a
previsível ruína do dólar; ou 2) que as autoridades chinesas poderiam
estar a preparar o renminbi para vir a substituir o dólar no papel de
moeda de reserva mundial. Se esta última explicação se verificasse a
possibilidade da retomada do caminho socialista pela China ficaria
comprometida.
[*] Professor Emérito de Ciência Política na Universidade de Paris 8
Saint-Denis, Saint-Denis, França.
[**] Investigador do Centro Nacional de Investigação Científica (CNRS),
Centre d'Économie de la Sorbonne, Paris, França.
[*** ] Professor Assistente na Escola de Marxismo da Universidade
Tsinghua, Beijing, República Popular da China.
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/asia/herrera_china_26abr18.html
26/4/2018
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