segunda-feira, 30 de abril de 2018

Acerca da natureza do sistema económico chinês


     
   
       por Tony Andreani [*] , Rémy Herrera [**] e Zhiming Long [***] 
      

Hoje em dia, os dirigentes chineses não negam a existência na sua
economia um importante sector privado capitalista, autóctone ou
       estrangeiro. Em geral, eles o consideram antes como um dos componentes de
      uma economia mista em que a predominância é concedida ao sector público e
      em que o poder do Estado deve ser reforçado. Os discursos de numerosos
      líderes avançam que a China ainda se encontraria na "fase primária do
      socialismo", etapa considerada incontornável para desenvolver as forças
      produtivas e que exige muito tempo até a sua conclusão. O objectivo
       histórico permaneceria entretanto o do socialismo desenvolvido – mesmo
      se, é verdade, seus contornos estarem longe de serem claramente definidos.
      Serão tais declarações apenas de fachada, a roupagem de uma forma de
      capitalismo? Mereceriam elas serem tomadas a sério? O socialismo estaria
      morto e enterrado na China? Não pensamos assim.
       Entretanto, nos debates entre autores marxistas, uma clara maioria deles
      afirma que a economia chinesa seria agora capitalista. Assim, Harvey
      (2005) crê detectar desde as reformas de 1978 um "neoliberalismo com
       características chinesas" em que um tipo singular de economia de mercado
      teria incorporado cada vez mais componentes neoliberais accionados no
       quadro de um controle centralizado muito autoritário. Arrighi (2009),
       para explicar o êxito da economia chinesa, mobiliza por sua vez uma
       releitura a contra-corrente da obra de Adam Smith, mais progressista do
      que o reconhecem seus discípulos partidários do liberalismo. Segundo ele,
      as elites chinesas utilizariam "o mercado como ferramenta de governo".
      Panitch e Gindin (2013) analisam as implicações da integração da China nos
      circuitos da economia mundial e vêem nisso menos a oportunidade de
      reorientar o capitalismo global do que a duplicação pela China do papel de
      "complemento" outrora mantido pelo Japão, fornecendo aos Estados Unidos os
      fluxos de capitais necessários para conservar sua hegemonia mundial, de
      onde uma tendência à liberalização dos mercados financeiros conduzindo ao
      desmantelamento dos instrumentos de controle dos movimentos de capitais e
      minando as bases do poder do Partido Comunista Chinês (PCC). [1] Outros
      marxistas, certamente mais raros, mas não menos importantes, chineses ou
      estrangeiros, [2] continuam entretanto a defender a ideia de que o sistema
      em vigor na China, ainda que assimilável a um capitalismo de Estado,
      deixaria aberto um vasto leque de trajectórias possíveis para o futuro. No
      presente artigo, levaremos mais adiante esta ideia, ao ponto de sustentar
      que o sistema chinês hoje contém ainda elementos chaves do socialismo.
      Assim, a interpretação da sua natureza torna-se compatível com a de um
      socialismo de mercado, ou com mercado, repousando sobre pilares que o
       distinguem ainda bastante claramente do capitalismo.
       Características do socialismo de mercado à chinesa 
       Para Marx, o capitalismo implica uma separação muito forte entre o
      trabalho e a propriedade dos meios de produção, enquanto os detentores do
      capital seriam eles próprios tendencialmente colectivos, já não efectuando
      trabalho na produção. Isso se realiza plenamente no capitalismo
      financiarizado actual em que a gestão é delegada a administradores e o
      lucro da empresa assume a forma de valor accionista. De acordo com este
      critério fundamental de definição do capitalismo, verifica-se que
      numerosas pequenas empresas chinesas têm mais a ver com a produção
      familiar ou artesanal do que com o modo de produção capitalista estrito.
       Além disso, a lógica do capitalismo é a da maximização do lucro
      distribuível aos proprietários. Ora, não é isto que se observa nas grandes
       empresas públicas chinesas, como mostra a fraqueza (mesmo a inexistência)
      dos dividendos entregues ao Estado, assemelhando-se ao invés a um imposto
      sobre o capital. A separação capital-trabalho é muitas vezes relativa na
      China: ela é limitada nas empresas públicas, o que impede de considerá-las
       rigorosamente como uma forma de capitalismo de Estado, e mais ainda na
      economia dita "colectiva" onde os trabalhadores participam na propriedade
      do capital ou têm mesmo a propriedade como nas cooperativas (por acções ou
      não) e nas comunas populares preservadas. Naturalmente, mesmo nestas
      entidades colectivas os trabalhadores permanecem "separados" da gestão,
      mas toda esta economia colectiva não estatal não pode ser ignorada e não
      poderia ser classificada sob a bandeira do "capitalismo".
       Fazemos uma leitura do sistema chinês como um socialismo de mercado, ou
       com mercado. Assim, este socialismo repousaria sobre os dez pilares
      seguintes, em grande medida estranhos ao capitalismo:
       i) a persistência de uma planificação poderosa e modernizada, que assume
      modalidades diversas e mobiliza instrumentos distintos conforme os
      sectores a que se refere;
       ii) uma forma de democracia política tornando possíveis as escolhas que
      estão na base desta planificação;
       iii) serviços públicos muito extensos, que condicionam a cidadania
      política, social e económica e, enquanto tais, estão fora do mercado ou
      fracamente mercantilizados;
       iv) uma propriedade da terra e dos recursos naturais que permanece no
       domínio público, estatal ao nível nacional, colectivo ao nível local,
      garantindo assim o acesso à terra pelos camponeses;
       v) formas de propriedade diversificadas adequadas à socialização das
      forças produtivas: empresas públicas (diferindo das firmas capitalistas,
      nomeadamente pela participação dos trabalhadores na gestão), pequena
       propriedade privada individual ou propriedade socializada – sendo a
       propriedade capitalista, durante uma transição socialista longa, mantida
      e mesmo encorajada, para dinamizar a actividade e incitar as outras formas
      de propriedade à eficácia;
       vi) uma política geral consistente em aumentar os rendimentos do trabalho
      em relação às outras fontes de rendimentos;
       vii) a promoção manifestada da justiça social numa perspectiva
      igualitarista;
       viii) a preservação da natureza, considerada como indissociável, não
      antagónica do progresso social, como objectivo do desenvolvimento a fim de
      maximizar a riqueza efectiva,
       ix) relações económicas entre Estados fundamentadas sobre um princípio
      ganhador-ganhador;
       x) relações políticas entre Estados repousando na busca da paz e das
      relações mais equilibradas entre os povos.
       A análise de cada um destes pontos não é indiscutível e é objecto de
      debates ásperos tanto na China como no exterior – debates que estão longe
      de estarem resolvidos, mas que existem e devem ser aprofundados sem  a
      priori  nem ideias preconcebidas. Apesar das críticas, veremos que ao
       confrontar o "socialismo à chinesa" com esta grelha de leitura, ele não
      está muito afastado. [3]
       Empresa públicas, serviços públicos, planificação 
       Na China, a justificação das empresas públicas é tripla: elas podem
      distribuir mais a seus assalariados; o Estado é livre para nelas definir o
      modo de gestão (em matéria salarial nomeadamente); e ele pode mais
      facilmente colocá-las ao serviço dos seus projectos. Através das
      ferramentas ao dispor do organismo de gestão das participações, o Estado
      afecta os dividendos recebidos a um fundo especial de sustentação das
      empresas públicas, as quais beneficiam igualmente de vantagens em matéria
       de crédito e de taxa de juro. Isto se inscreve portanto numa via
       socialista.
       Uma explicação para a força destas empresas públicas é que elas não são
      geridas como as firmas privadas ocidentais, cotadas em Bolsa e orientadas
      para a maximização do valor das acções por distribuição de dividendos,
      valorização das acções e retorno sobre o investimento porque pressionam
       sub-contratantes, locais ou deslocalizados. Se elas se comportassem de
      modo tão predatório, estas empresas públicas chinesas agiriam em
      detrimento do tecido industrial local, o que manifestamente não é o caso.
      Teríamos então negócios sob uma forma selvagem de "capitalismo de Estado"
      (como se pretende frequentemente) e não se vê como ele poderia produzir um
      crescimento económico tão dinâmico. Estas empresas públicas chinesas são
      (ou são tornadas) rentáveis porque a bússola que as guia não é o
      enriquecimento dos accionistas, mas sim o investimento produtivo e o
      serviço prestado aos seus clientes. Pouco importa que os seus lucros sejam
      menos elevados que os dos seus concorrentes ocidentais se eles servem
      parcialmente para estimular o resto da economia.
       Uma das especificidades destas empresas públicas é, assim, a de entregar
      apenas poucos dividendos ao Estado accionista (cerca de 10%). Hoje,
       numerosos peritos internacionais preconizam aumentar estes dividendos e a
       Comissão de Regulação da Bolsa parece por vezes estar de acordo. Esta
      orientação, inspirada nas práticas capitalistas ocidentais, não parece a
      boa fórmula, pois as empresas públicas ficariam então privadas dos seus
      trunfos principais e, mesmo controladas pelo Estado, teriam tendência a
       distribuir sempre mais para obterem os favores dos accionistas privados,
      como fazem as firmas ocidentais – que dependem elas próprias muito
       frequentemente das estratégias de carteira dos oligopólios financeiros
      mundialmente dominantes. Aqui, mais valeria que o Estado chinês
      instaurasse um imposto sobre o capital, na forma de renda  (loyer)  pela
      colocação à disposição dos seus bens e que as empresas lucrativas pudessem
      conservar uma parte maior dos benefícios para fins de investimento e de
      I&D.
       Na nossa opinião, as empresas públicas chinesas não devem ser geridas
      como firmas privadas. O "socialismo de mercado à chinesa" repousa sobre a
      manutenção de um poderoso sector público com papel estratégico na
      economia. Tudo leva a pensar que esta é uma das explicações essenciais dos
      desempenhos da economia chinesa, não obstante os neoliberais exaltarem a
      propriedade privada e a maximização do lucro individual. Isto sem dúvida
      também está ligado ao porte destas empresas, mastodontes a engendrarem
      economias de escala que reduzem os custos a todos os níveis e fornecem a
      uma miríade de pequenas e médias empresas insumos  (intrants)  baratos que
      asseguram condições de fabricação competitivas no mercado.
       Uma "superioridade" das empresas públicas chinesas é a participação
      (limitada, mas real) do pessoal na gestão, através dos seus representantes
      no Conselho de Fiscalização e no Congresso dos Operários. A lógica
       accionista iria ao encontro de uma tal participação, que é preciso
      reforçar. Outra vantagem é que as empresas públicas podem mais facilmente
      responder aos objectivos da planificação. Não se trata de lhes impor
      tarefas políticas que poriam em causa a sua autonomia e onerariam os seus
       resultados. Mas ao controlar a nomeação e a gestão dos dirigentes, os
      poderes públicos, de que dependem empresas muito numerosas, têm os meios
      de assegurar que eles agem como convém aos serviços públicos – mas também
      aos sectores mercantis, que o plano pode orientar (por subvenções,
       fiscalidade, ...).
       Na China, os serviços sociais (educação, saúde, reformas, ...) estão na
      totalidade ou na grande maioria nas mãos do Estado – governo central ou,
      mais frequentemente, governos locais. Tais serviços não fornecem bens
      mercantilizados pelo sector privado, mas bens sociais, necessários ao
      exercício da cidadania, dando aos indivíduos a capacidade de serem
      simultaneamente sujeitos políticos, sociais e económicos (formados, em boa
      saúde, tendo acesso ao emprego, com equipamentos de transporte,
      informados, etc). Mas a concepção chinesa estende os serviços públicos aos
      "bens estratégicos", fornecendo insumos essenciais ao resto da economia:
      energia, infraestruturas, materiais de base e mesmo serviços bancários ou
      investigação. Se o sector privado serve de complemento ou estimulante, o
      sector público é favorecido pelo Estado no exercício da concorrência. Esta
       concepção ampla dos serviços públicos "estratégicos" constitui uma das
      maiores forças da economia chinesa. O que está aqui em causa é a soberania
      nacional.
       Um traço notável do sistema político-económico chinês é a sua possante
      planificação que, apesar de ter mudado seus objectivos e instrumentos no
      decorrer das últimas décadas, continua a ser aplicada. Os discursos
      apresentados a cada ano diante da Assembleia Nacional Popular indicam se
      os objectivos quantificados inscritos no plano quinquenal foram realizados
      – e frequentemente é o caso –, e dão a conhecer o que esperar para o ano
      seguinte. Esta planificação, que se projecta para o futuro num mundo de
       incertezas, é o lugar onde são elaboradas e decididas as escolhas
       colectivas, expressão de uma vontade geral. Ela é o espaço onde uma nação
      escolhe um destino comum e o meio de um povo de se tornar o mestre, em
      todos os domínios da existência: modo de vida, modos de consumir, de se
      alojar, de ocupar o espaço... É o PCC que, hoje, efectua estas escolhas
      para os cidadãos – o princípio da consulta estando cada vez mais colocado
      como necessidade. Esta planificação "estratégica" forte, com técnicas
      modernizadas, adaptadas às exigências do tempo presente e que têm eficácia
      (taxas bonificadas, controle dos preços, encomendas públicas, etc) é um
      traço distintivo de uma via socialista.
       Entretanto, com toda evidência, estamos hoje bem longe do ideal
       igualitarista do socialismo. A China é um país onde as desigualdades
      sociais são fortes. A aplicação da linha igualitarista foi "suspensa" para
      acelerar o crescimento (daí a palavra de ordem "enriquecer-se antes dos
      outros"), depois foi novamente retomada com a recente promoção de temas de
       justiça social. A defesa da "moral socialista" pelos responsáveis do PCC
      pode prestar-se ao cepticismo, mesmo aos sarcasmos, quando se sabe dos
      comportamentos da China actual: consumismo, negocismo, arrivismo, gosto do
      luxo, corrupção... Mas não se deve tomar este discurso moral com
      ligeireza: é o do Estado chinês, constantemente oposto a esta degradação
      dos costumes. Se ele se inscreve numa certa continuidade com a tradição,
      muitas vezes reivindicada, esta ética reclama-se da modernidade dos ideais
      do socialismo e não de uma justiça social restrita a uma redistribuição
      limitada dos rendimentos, de uma equidade justificando uma "justa
      desigualdade" e definida como ligeira melhoria da sorte dos destituídos e
      de uma democracia representativa que confisca de facto a participação do
      povo. Mas é no sector púbico que o Estado dispõe dos meios eficazes para
      reduzir realmente estas desigualdades. Podem aqui ser activados a
       participação dos trabalhadores na gestão e o papel de "locomotiva social"
      desempenhado pelas empresas públicas. Eis um argumento a mais que milita
      em favor de um reforço do sector público.
       Controle do sistema bancário e dos mercados financeiros 
       Alguns julgam o sistema financeiro chinês obsoleto e apelam à sua
       modernização, devido ao auge dos mercados financeiros que seria, segundo
      eles, indispensável ao crescimento. [4] A reformas deste sistema
      financeiro aceleraram-se desde 2005 e tomaram a forma de uma abertura do
      capital dos bancos do Estado e da criação de bolsas de valores. Elas
      seguiram as das empresas públicas, tomadas anteriormente. Estas últimas
      haviam sido autonomizadas em relação às orientações do Plano,
       transformadas em sociedades por acções e incitadas a adoptar critérios de
      gestão mercantis, a inspirarem-se em métodos da finança de mercado e a
      desenvolver parcerias com investidores externos. A introdução em bolsa dos
      grandes bancos (Bank of China, Industrial and Commercial Bank of China e
      China Construction Bank) foi antecedida pela entrada de instituições
      estrangeiras na sua estrutura de capital (respectivamente Goldmann Sachs,
      UBS et Bank of America), a fim de facilitar a aprendizagem da  corporate
      governance  . Entretanto, o sistema de financiamento da economia chinesa
      hoje continua fundamentado na intermediação bancária – ainda que tenda a
      afastar-se bastante rapidamente, pois as autoridades políticas pretendem
      encontrar um "equilíbrio" entre os sistemas de financiamento pelos
      mercados financeiros e pelo crédito bancário.
       Mas não se pode confundir "modernização" e adopção da via capitalista.
      Está longe de ser claro que uma opção em favor da finança de mercado tenha
      sido feita definitivamente, pois permanecem maciças as intervenções das
      autoridades monetárias no sistema financeiro e é perceptível o pragmatismo
      da sua actuação. Os poderes públicos chineses procedem de facto por
      solavancos, por avanços e recuos num contexto de integração mais
      aprofundado, mas contraditório, do país na mundialização. Isto aconteceu
      sobretudo nas fases de enfraquecimento do crescimento económico após 2007,
      marcadas por uma activação dos créditos bancários corrigindo as falhas da
      finança. Na viragem dos anos 1990, os bancos que se haviam empenhado em
       operações aventurosas (finança, seguros, imobiliário...) foram proibidos
      de o fazer entre 1992 e 1995, na sequência das desordens provocadas pela
      crise de 1989-1991 – ainda que tenham sido desde então autorizadas a
      efectuar operações mistas combinando crédito bancário e mercados
      financeiros. Mais recentemente, depois de 2008, como já vimos, as
      autoridades chinesas foram obrigadas a reagir firmemente para limitar o
       impacto social desestabilizador da crise mundial, fazendo evoluir o
      quadro institucional ao dotarem-se de instrumentos poderosos de controle e
       consolidarem suas estratégia de desenvolvimento.
       Na China, a tese da "eficiência dos mercados financeiros" não tem
      partidários, como testemunham os apelos a uma nova ordem monetária e
      financeira mundial lançados regularmente pelos líderes políticos do país,
      que conhecem as vantagens da intermediação bancária e estão conscientes
      das graves disfunções dos mercados financeiros. Estes dirigentes preferem
      conservar o essencial do sistema bancário sob o controle do Estado,
      esforçando-se por melhorá-lo, repugnando-lhes abandonar o modelo de "banco
      universal" e orientando-se antes para um esquema consistente em tolerar
      operações mistas, mas efectuadas nas filiais especializadas, separadas do
      holding público e colocadas sob a vigilância da Comissão de Regulação
      bancária.
       Além disso, as taxas de juro permanecem amplamente administradas, apesar
       das reformas iniciadas. Para aquelas que foram liberalizadas, a oferta de
       crédito é fortemente controlada pelo Banco Central, nomeadamente através
      das reservas obrigatórias. E o afrouxamento dos constrangimentos impostos
      aos bancos para fixar as taxas aplicadas aos depósitos não deve fazer
      esquecer que historicamente as autoridades monetárias voluntariamente
      reduziram ao mínimo (sob o ritmo da inflação) a remuneração destes
       depósitos – o que não influenciou a taxa de poupança nacional, muito
      elevada. Uma das especificidades (e forças) da China é a torção
      voluntarista dos preços dos factores. O governo teve razão em não deixar o
      mercado fixar "livremente" o preço do dinheiro de modo a continuar como
       mestre da oferta de crédito, difícil de controlar mas vital para a
      economia. As autoridades estatais, que têm uma visão macroscópica dos
      riscos, são as únicas em condições de guiar a economia no seu conjunto em
       função de um plano. Taxas de juros administradas não permitem ajustar
      rapidamente a oferta de poupança das famílias e as necessidades de
      financiamento das empresas, conviria talvez preferir um regime de taxas
      "semi-administradas", com tectos para a oferta de créditos e pisos para a
      remuneração da poupança – modificando estas taxas conforme as necessidades
      do plano. Mas neste debate sobre as taxas de juro, pendemos para a
      manutenção de um certo dirigismo.
       A ampliação da esfera privada implica logicamente uma expansão do mercado
      de acções. Mas segundo a nossa opinião, este último deveria permanecer
      limitado. Se ele tem a sua utilidade para o sector privado, as empresas
      públicas em contrapartida deveriam ter cada vez menos necessidade na
      medida em que expandem suas capacidades de auto-financiamento e dispõem
      dos fundos de Estado para realizar aumentos de capital. A abertura do
      mercado de acções aos actores internacionais está no momento restrita aos
      investidores "qualificados". Os poderes públicos, que desconfiam – com
      razão – dos movimentos de capitais especulativos, até agora têm proibido
      às firmas estrangeiras emitirem acções em yuans sobre o mercado interno.
       Afrouxar estes travões, em particular para avançar rumo à plena
      convertibilidade do yuan e das suas supostas vantagens, equivaleria a
       submeter-se aos oligopólios financeiros, especialmente estado-unidenses.
       O recurso ao mercado de acções deveria permanecer tão limitado quanto
      possível e não conduzir a um alinhamento na prática do valor accionista. A
      poupança chinesa é bastante abundante para ser mobilizada por investidores
      institucionais nacionais, aos quais além disso se pode impor limites de
      rentabilidade.
       Uma estratégia de desenvolvimento coerente e auto-centrada 
       Um traço frequentemente sublinhado para descrever o êxito desta economia
      é o florescimento das suas exportações de bens e serviços desde o
      princípio dos anos 1990 e, sobretudo, 2000. Conclui-se apressadamente que
      estas exportações seriam o motor do crescimento do país. Isto é esquecer
      que a estratégia de desenvolvimento, concebida e aplicada com regularidade
      e pragmatismo pelos dirigentes chineses, apoia-se num modelo mais
      auto-centrado do que parece, repousando – é um dos "segredos" dos seus
      desempenhos nos mercados mundiais, ainda que isso desagrade aos
      neoliberais – na manutenção de um sector estatal muito poderoso (na
      energia, nos transportes, nas telecomunicações, nos materiais de base e
       produtos semi-acabados, na construção, mas também no sistema bancário,
      etc), com papel dinamizador para o conjunto do tecido económico local.
       Na China, a grande maioria dos empresários dos sectores manufactureiros
       chineses interessa-se sobretudo pelos mercados internos para as suas
       produções. É sobretudo o florescimento da procura interna, estimulada por
      um consumo das famílias em crescimento acentuado e pelas importantes
      despesas de capital do Estado que conduz os seus programas de investimento
      rumo ao optimismo. Graças aos progressos da inovação tecnológica em todos
      os domínios (inclusive das telecomunicações, na robótica, no espaço, etc),
      cada vez mais dominados nacionalmente, o esquema produtivo do país pôde
      evoluir do  made in China  para o  made by China. 
       O ritmo acelerado dos ganhos de produtividade do trabalho permite
      acompanhar a alta rápida dos salários reais industriais, sem que o aumento
      de peso dos custos do trabalho chinês relativamente aos outros países
       concorrentes do Sul deteriore a competitividade. As exportações – tal
      como os investimentos directos estrangeiros, pois mais da metade das
       exportações são feitas por firmas estrangeiras implantadas na China –
      desempenham um papel complementar. Isso permite compreender porque em
      2011, por exemplo, a contribuição líquida negativa das exportações para o
      crescimento do PIB (-5,8%) não prejudicou o dinamismo deste último (cerca
      de +10%), nem entravou a alta das margens de lucro. A previsão de
      crescimento do PIB para 2018 é de 6,7% (com uma taxa de inflação de 1,5%),
       com contribuições estimadas de 4,5% para o consumo, 2,0% para o
       investimento, mas apenas 0,2% para as exportações.
       Ouve-se frequentemente dizer que o êxito das exportações chinesas seria
      devido ao custo muito baixo da mão-de-obra. O argumento é insuficiente: os
      custos de mão-de-obra não representam de facto senão uma parte fraca dos
      preços de venda (5% a 10% em média), o que não compensa – ainda que os
      salários chineses tenham tendência para crescer mais rapidamente que os
      dos concorrentes do Sul – os custos de transporte para os países
       importadores. O êxito da China na exportação deve-se numa grande medida
      aos custos menos pesados dos insumos fornecidos por empresas públicas a
      preços muito mais baixos, pois fixados ou fortemente controlados pelo
      Estado (exemplo: os combustíveis). Certamente os salários chineses são
      claramente mais baixos do que no Norte, mas bem mais elevados do que os
      pretensos "salários de miséria".
       Em resposta à crise de 2008, cujo impacto na China se fez sentir alguns
       anos mais tarde, as políticas anti-crise do Estado têm visado corrigir os
      desequilíbrios da economia, nomeadamente por um florescimento maciço das
      infraestruturas públicas (inclusive em zonas rurais), pela promoção de
      novos pólos urbanos de porte intermediário no interior do país e pela
       adopção de medidas favoráveis à população agrícola. [5] Os rendimentos
      líquidos das famílias rurais aumentaram assim, em termos reais e per
      capita, significativamente mais rápido que os das zonas urbanas. Portanto,
      as partes consagradas ao consumo no rendimento nacional aumentam em
      relação à do investimento. Os serviços às famílias e às empresas
      progridem. O imobiliário também está controlado, em particular pelo
       crédito.
       O destino do yuan 
       Ainda assim, o florescimento das exportações chinesas de bens e serviços
      – além das de capitais (refinanciamento do Tesouro estado-unidense,
      reestruturação de dívidas soberanas na Europa) [6] – cristaliza um outro
      ponto de tensão. A moeda chinesa, o renminbi, cuja unidade monetária é o
      yuan, estaria sub-avaliada, lê-se frequentemente no Ocidente, e portanto
      estaria na origem da persistência de défices comerciais bilaterais com a
      maior parte dos países do Norte, a começar pelos Estados Unidos [7] . As
      pressões exercidas por Washington no sentido de uma apreciação do renminbi
      frente ao dólar deparam-se com a resistência de Beijing, mas redundaram em
      várias reavaliações – a última datando de Abril de 2012, após a de Julho
      de 2005. Entre o Verão de 2005 (quando a China decide deixar de ligar as
      variação da sua moeda ao dólar) e a Primavera de 2012, o valor do renminbi
      apreciou-se em termos reais em 32% relativamente ao dólar. [8] Mas a
      lenga-lenga continuou: os produtos exportados pela China, já baratos,
      seriam tornados ainda mais competitivos por uma moeda depreciada
       artificialmente...
       Sabe-se que as discussões sobre o "justo valor" das moedas, articuladas
      sobre decisões de políticas comerciais, são polémicas. Ora, dentre os
      critérios disponíveis, a relação saldo da balança das contas correntes
      sobre PIB é a mais utilizada pela administração estado-unidense. O
       referencial assim considerado para definir a taxa de câmbio "de
       equilíbrio" é um rácio excedente ou défice da balança de pagamentos
      correntes sobre PIB no intervalo entre +/- 3 ou 4%. Ao aplicar este
      critério à China, marcado pelo peso das trocas bilaterais com os Estados
      Unidos, vê-se que o rácio retrocede de 10,6% em 2007 para 2,8% em 2011 e
      1,4% em 2012. A "sub-valorização" do renminbi não é evidente quando se
      utiliza o  benchmark  mais praticado nos Estados Unidos. O que não impede
      estes últimos, apesar dos graves desequilíbrios que caracterizam a sua
       economia, de prosseguir o que se assemelha a uma "guerra das moedas", por
      depreciação do dólar no mercado de câmbios, para impor a Beijing os termos
      daquilo que alguns chamam uma "capitulação" [9] – e um de cujos efeitos é
      desvalorizar as reservas em divisas da China, maioritariamente detidas em
      dólar.
       Um renminbi internacionalizado, especialmente para transformá-lo em moeda
      de reserva global, exigiria a adopção de condições muito estritas: a
      abertura da conta de capital, assim como a flexibilidade da taxa de
      câmbio; a integração dos mercados financeiros chineses no sistema mundial
      capitalista; políticas macroeconómicas (de luta contra a inflação, de
       limitação do endividamento público, etc) que visem a obtenção da
      "confiança" dos mercados; e uma dimensão crítica da economia que
      justificasse esta ambição de internacionalização da moeda. As duas
       primeiras condições são exigências  sine qua non;  as duas últimas, não –
      e aliás nem sempre têm sido respeitadas pelos países do Norte com moedas
      utilizadas como reservas internacionais.
       A dimensão crítica evidentemente já foi atingida: o peso da China
      coloca-a no segundo lugar mundial quanto ao PIB, atrás dos Estados Unidos,
      e entre estes últimos e a zona quanto às exportações. O critério relativo
      às políticas macroeconómicas parece igualmente cumprido, na medida em que
      a adopção das medidas anti-inflacionistas, de controle das contas públicas
      e de domínio do curso do renminbi trouxeram os seus frutos nestes últimos
      anos. Se as pressões inflacionistas permanecem um perigo, o índice de
      estabilidade dos preços é melhor na China do que nos outros BRICS. O
      endividamento das administrações públicas está contido a níveis menos
      elevados do que na maior parte dos próprios países ocidentais. Os índices
      de variabilidade da moeda nacional mostram também um renminbi menos
      instável que o real, a rupia, o rublo e o rand. Contudo, quanto à abertura
      da conta de capital e à integração mais profunda dos mercados financeiros
       chineses no sistema mundial, é forçoso reconhecer que, apesar da adopção
      de mecanismos de mercado em matéria de política monetária e da
      flexibilização das regulamentações relativas à conta de capital e à
       paridade do renminbi, as autoridades monetárias chinesas continuam a
       dispor de poderosas ferramentas de controle. Além disso, e sem estar
       totalmente ausente, o renminbi ainda é pouco utilizado nos mercados de
       produtos derivados over-the-counter , e concentrado nos instrumentos
      clássicos de cobertura (forwards)   [10] .
       A internacionalização da moeda traria benefícios à China, a começar por
      um  "direito de seignieuriage" , bem visível no caso dos Estados Unidos.
      Entretanto, uma tal orientação significaria uma submissão prejudicial do
       país à alta finança mundial dominante, portanto uma perda relativa de
      controle da política monetária. Como é que a China chegaria a tirar
      proveito de um renminbi internacionalizado sem pagar demasiado caro –
      renunciando ao pleno exercício da sua soberania nacional e vendo recusar a
      autonomia da sua estratégia de desenvolvimento? Hoje, as pressões internas
      em favor de uma liberalização dos mercados financeiros são fortes, mas
       ficam atenuadas por discursos oficiais tranquilizantes, críveis, sobre o
       controle do processo de reformas. Mas estas pressões tornam-se
       preocupantes quando coincidem com as recomendações dos peritos do FMI ou
      dos líderes ocidentais que convidam a China a escolher a via do
       neoliberalismo – e se necessário, integrando o renminbi no cabaz
       monetário dos  Direitos Especiais de Saque . Sobre o assunto, os
      dirigentes chineses, em geral com declarações nuançadas e prudentes, estão
       conscientes dos perigos que um renminbi internacionalizado implica para o
       futuro do socialismo de mercado. Esperamos que saibam resistir às sereias
      do liberalismo. Nesse meio tempo, eles reforçam suas parcerias com o Sul e
      o Leste, em particular no quadro do grupo de Shangai, e reabrem uma rota
      da sede para afrouxar a morsa do cerco agressivo dos Estados Unidos.
       Conclusão 
       A evolução das relações entre, por um lado, o PCC no poder e o bloco
      social sobre o qual ele se apoia – classes médias beneficiárias do
      crescimento e empresários privados –, e, por outro, massas operárias e
      camponesas, que vão no sentido de uma restauração do capitalismo ou então
      de uma reactivação de um compromisso social mais favorável às classes
      populares, opera sobre perspectivas de confrontações de grande amplitude
      entre as forças políticas em presença, e sobre trajectórias divergentes de
       estruturas da economia. [11] Uma questão subsiste: como as elites
      dirigentes, cuja legitimidade se vê reforçada pelas repercussões positivas
      geradas pelo crescimento, chegariam a renovar as condições da  "success
      story"  do país sem se apoiarem sobre uma modificação da correlação de
      forças interna em favor das classes populares e sem reorientar o "projecto
      nacional" para uma prioridade às políticas sociais? Pois a escolha da via
      capitalista assumida francamente por estas elites, conducente a quebrar o
      equilíbrio dinâmico do sistema e a perder o controle sobre contradições
      crescentes, não garantiria o fracasso da estratégia adoptada até agora?
      Uma outra preocupação surge: qual será a atitude dos Estados Unidos,
       inclusive do ponto de vista militar, frente ao reforço de poder da China?
      O futuro desta última permanece em grande medida indeterminado, pela sua
      dinâmica própria, mas também porque o capitalismo dos oligopólios
      financeiros do Norte parece querer entrar frontalmente em conflito com ela
      – apesar da sua estreita interdependência. Por isso, continuamos a pensar,
      o sistema político-económico em vigor na China continua a conter elementos
      (e potencialidades de reactivação) do socialismo, assim como
      possibilidades de transformação da ordem global, no sentido da construção
      lenta e progressiva de um mundo multipolar, frente ao hegemonismo
      estado-unidense.

      26/Abril/2018
       [1] Ver: Harvey D. (2005),  A Brief History of Neoliberalism,  New York:
      Oxford University Press; Arrighi G. (2009),  Adam Smith in Beijing:
      Lineages of the 21st Century,  London: Verso; Panitch L. and S. Gindin
      (2013), "The Integration of China into Global Capitalism",  International
      Critical Thought,  (3)2, 146-158.
       [2] Por exemplo: Wen T. (2001), "Centenary Reflections on the '  Three
      Dimensional Problem,  ' of Rural China",  Inter-Asia Cultural Studies  ,
      2(2), 287-295. Amin S. (2013), "China 2013",  Monthly Review  , 64(10),
      online.
       [3] Andreani T. and R. Herrera (2015), "Which Economic Model for China?",
       International Critical Thought,  5(1), 111-125.
       [4] Mishkin F. (2010),  The Economics of Money Banking and Financial
      Markets,  Upper Saddle River: Pearson.
       [5] Wong E. e T. Sit (2015), "Rethinking 'Rural China'",  in  Herrera R.
      and K.-C. Lau (dir.),  The Struggle for Food Sovereignty,  83-108, London:
      Pluto Press.
       [6] Ler: "More UK equities for China?",  Financial Times,  3 June 2011.
       [7] Ver os relatórios do US Congressional Research Service.
       [8] Bank for International Settlements (BIS).
       [9] Wolff M. (2010), Financial Times, 12 October 2010.
       [10] Herrera R. (2014), "A Marxist Interpretation of the Current Crisis",
       World Review of Political Economy,  5(2), 128-148.
       [11] Amin S. (2010), "Prefacio",  in  Herrera R.,  Avances
      revolucionarios en América Latina,  Quito: FEDAEPS.
       NR: A seriedade dos autores deste artigo e os elementos informativos que
       contém levou à sua publicação por resistir.info.  Isso não significa
      necessariamente endossar o optimismo dos mesmos quando consideram que o
      socialismo continua dentro do leque das possibilidades no futuro
      previsível da China.  A presente acumulação de reservas ouro pelo banco
      central da China – no momento em que já se antevê o fracasso das moedas
      fiduciárias que servem de reserva mundial, nomeadamente o US dólar – pode
      ter duas explicações alternativas:  1) uma garantia  (hedging)  contra a
      previsível ruína do dólar; ou  2) que as autoridades chinesas poderiam
      estar a preparar o renminbi para vir a substituir o dólar no papel de
      moeda de reserva mundial.  Se esta última explicação se verificasse a
      possibilidade da retomada do caminho socialista pela China ficaria
      comprometida. 
       [*] Professor Emérito de Ciência Política na Universidade de Paris 8
      Saint-Denis, Saint-Denis, França.
       [**] Investigador do Centro Nacional de Investigação Científica (CNRS),
      Centre d'Économie de la Sorbonne, Paris, França.
       [*** ] Professor Assistente na Escola de Marxismo da Universidade
      Tsinghua, Beijing, República Popular da China. 
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/asia/herrera_china_26abr18.html
26/4/2018

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