Pedagogia alternativa e suas vicissitudes em uma escola de ensino
fundamental I
Candido G. Vieitez
A
chama do MST aqui ainda é muito forte. Acho que muitos assentamentos perdem o
foco. Às vezes vendem a terra e vão para a cidade. Perdeu o foco. Nós ainda
somos muito fortes nisso. (Neudi[1], dirigente da
Cooperunião).
O
movimento operário e popular (MOP), desde tempos pretéritos tem se preocupado em
oferecer aos trabalhadores alguma modalidade de educação. Essa pode ser
simplesmente supletiva ou complementar à educação oficial, como ocorre, por
exemplo, quando um sindicato organiza um curso profissionalizante para seus
associados (MANFREDI; BASTOS, 1997). Ou essa atividade educativa reveste um
caráter militante no sentido de que as organizações buscam proporcionar aos
estudantes sua concepção sobre o que fazer político, assim como habilidades
específicas. Esta variante, usualmente constituída por cursos de curta duração
é prática relativamente frequente entre partidos políticos, sindicatos ou
movimentos.
O
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é nacionalmente conhecido
por sua luta pela reforma agrária. Contudo, também é muito significativa sua
atividade educacional, que é extensa e diversificada. A maior parte dessa
atividade está possivelmente constituída pelo que é clássico no âmbito do MOP,
vale dizer, cursos livres[2] que envolvem sobretudo
ativistas ou pessoas já sensibilizadas pelo Movimento. Entretanto, o Movimento,
num procedimento um tanto insólito[3], está também comprometido
com a educação oficial certificadora.
O que é a educação escolar certificadora? Os termos educação e escola se
tornaram populares e fazem parte do entendimento geral como se fossem
categorias universais. Se um partido ou sindicato promove uma atividade
educativa discreta, de curto prazo, chama-a de curso. Porém, uma atividade
educacional recorrente geralmente faz jus ao título de escola. Por isso, são comuns e tradicionais designações tais como
escola sindical, escola de cooperativismo e assim por diante.
Esse procedimento denominativo atende às necessidades de comunicação na
vida cotidiana. No entanto, devemos ter em mente que, na ordem social burguesa,
escola propriamente dita é apenas a
escola oficial. Ou seja, aquela instituição educativa que está habilitada pelo
Estado a fornecer diploma ou certificação legal. Este tipo de certificação, observadora
dos cânones estabelecidos pela lei, constitui um pré requisito tanto para a
progressão no sistema escolar, quanto para o acesso às mais diversas profissões
ou carreiras. Em suma, na sociedade subsistem muitas atividades educativas,
cursos e escolas, no entanto só a escola
oficial certificadora estatal ou privada, possui a propriedade de atuar
como habilitadora universal da força de
trabalho, que é ao que se refere, efetivamente, de modo esópico, a
consagrada expressão formar para a
cidadania.
É óbvio que esse monopólio de atribuição de mérito faz com que a escola
seja uma instituição de importância crucial para os trabalhadores e, portanto,
também para o MOP. Tanto é assim que nos últimos tempos, problemas escolares
vários tem propiciado a eclosão de greves docentes e mobilizações estudantis
dentre outros eventos.
Ainda assim, os diversos entes do MOP se situam perante essa estratégica
instituição de modo diverso. Os sindicatos de docentes, por exemplo, têm estado
focados sobretudo na questão salarial, em questões relativas às condições de
trabalho e, subsidiariamente, na luta pelo ensino público. O movimento
estudantil, por seu lado, mais sensível às questões da organização do sistema
escolar, preocupa-se com assuntos relativos à oferta de vagas, à qualidade e
gratuidade do ensino, etc.
Podemos afirmar que partidos, sindicatos e movimentos têm lutado pela
escola estatal gratuita e por incrementos escolares quantitativos e
qualitativos. No entanto, em geral, esses entes não desenvolveram uma crítica sistemática
da escola oficial e tampouco criaram um projeto pedagógico alternativo. Isso é possivelmente mais circunstancial do
que fato ossificado[4],
mas, de qualquer modo, é a atividade pedagógica do MST que tem aparecido como sendo
a exceção.
Voltemos, pois, ao MST. Este movimento, praticamente desde que surgiu em
1984, tem atribuído grande importância à educação. As suas atividades
educativas livres são inúmeras. Porém, como observado, o mesmo também tem investido
na educação certificadora.
As razões para esse posicionamento são várias e mencionamos apenas o primordial.
Acampamentos e assentamentos da “reforma
agrária” situam-se comumente em lugares excêntricos, o que pode fazer com que o
acesso à escola se torne inviável ou dificultoso. Essa situação, quando se
verifica, constitui um problema para o MST uma vez que, evidentemente, é um
desastre se crianças e adolescentes ficam sem escola.
Esse problema tem sido enfrentado pelo Movimento de várias maneiras. O
essencial consiste na conclamação do Estado para que este exerça sua atribuição
educacional, enquanto que, ao mesmo tempo, também se empenha na criação de
escolas supletivas provisórias e escolas próprias[5]. Concomitantemente, o Movimento sempre busca influir na atividade educacional dessas
escolas. Neste caso, o seu leitmotiv decorre
basicamente de seu interesse em socializar sua concepção de mundo e seu
programa de ação[6],
bem como em implementar conhecimentos e habilidades específicas demandadas pela
realidade dos acampamentos e assentamentos que, não são atendidos pela escola
oficial. Com esses objetivos em vista o setor de educação do MST elaborou sua
própria concepção pedagógica. Esta, que abarca as várias dimensões da vida
escolar é crítica, divergente da pedagogia oficial e, em parte, antitética à mesma
(DAL RI; VIEITEZ, 2010).
Nenhuma atividade educacional desenvolvida por organizações de trabalhadores
consegue neutralizar completamente as injunções imanentes à ordem social. Em se
tratando da escola, essas injunções apresentam uma formatação muito concreta
uma vez que, a maior parte da atividade escolar se encontra duplamente determinada:
de um lado pelas funções que a escola desempenha na estrutura social, e de
outro, pelas determinações escolares legais postas pelo Estado.
Em razão dessas determinantes, o estabelecimento de uma pedagogia
alternativa à oficial na escola é sempre um fenômeno bastante relativo. Porém,
o fato de que seja relativo não quer dizer que seja ineficaz. E este é o motivo
pelo qual os adeptos da pedagogia do Movimento lutam para ter o maior controle[7] possível sobre a produção
pedagógica nas escolas em que conseguem estabelecer uma ascendência política.
Essa observação aplica-se às escolas estatais
e é válida também para as do MST. É claro que nestas, o Movimento pode ter um
controle muito maior do que tem em escolas do Estado. Ainda assim, a sua
liberdade é bem relativa uma vez que não é possível uma prática educacional
integralmente diferente da existente. Afora esse aspecto, a possibilidade de
estabelecer um controle, o que sempre implica qualidade, intensidade e
abrangência determinadas, depende de circunstâncias variáveis que envolvem
tanto a vida civil e estatal, quanto a vida do próprio Movimento,
especificamente, ou, do MOP em geral .
O objeto de análise neste trabalho é a escola Construindo o Caminho de ensino fundamental I, situada no assentamento
da reforma agrária Conquista na Fronteira (Cooperunião), em Dionísio Cerqueira,
Santa Catarina, Brasil.
Por que a Construindo
o Caminho (ECC), uma escola de crianças? Dentre outras razões porque em 2002, quando lá
realizamos a primeira investigação de campo, a ECC era possivelmente a única
escola de crianças no país cujos alunos não eram estritamente infantes sob a tutela de adultos, uma
vez que em função do princípio de auto-organização dos alunos, e da vigência da
Assembleia Geral, ostentavam certa capacidade de autogoverno (Mandel; Vogt, 1973). No entanto,
cerca de treze anos mais tarde, quando voltamos a observar a escola[8], tudo estava mudado, pois,
a pedagogia alternativa que caracterizara a escola desde o início de suas
atividades, ainda que não tivesse desaparecido, encontrava-se apreciavelmente retraída.
Aqui assinalamos apenas as mudanças mais importantes que
ocorreram na prática pedagógica da escola. Portanto, sem qualquer pretensão de
realizar uma apresentação inclusiva do assunto. E indicamos também alguns dos elementos que
foram decisivos, ou, pelo menos, que contribuíram para a viragem observada.
Para a consecução deste estudo, além dos procedimentos usuais de pesquisa
bibliográfica e documental, valemo-nos de observação da escola in situ, assim como da realização de
seis entrevistas semi-estruturadas com professor, alunos, funcionário e um dos
dirigentes da Cooperunião.
Acrescentemos que esta investigação foi realizada como parte de um amplo projeto
de pesquisa coletiva sobre a educação em escolas com influência do MST. O mesmo
foi coordenado pela Professora Neusa Maria Dal Ri, e desenvolvido no âmbito do
Grupo de Pesquisa Organizações e Democracia (GPOD), que por sua vez é adstrito
ao programa de pós graduação em educação da Universidade Estadual Paulista
(UNESP) campus de Marília.
A
ECC é uma escola municipal. Mas, foi erigida em seu próprio terreno pela Cooperunião,
que é a cooperativa de produção agropecuária que se formou no assentamento.
Em 1990 a escola de ensino fundamental
municipal foi formalizada atendendo alunos de 1ª e 4ª séries. [...]. Houve um
embate de anos entre a comunidade assentada e a Secretaria de Educação e o poder
Municipal para implantar e manter a proposta educacional que orienta a ECC.
As dependências da escola estão
divididas em: duas salas de aula; uma sala de reunião; três banheiros, uma
cozinha e refeitório conjugados; uma biblioteca. Possui, ainda, equipamentos
utilizados como recursos pedagógicos, tais como, televisão, vídeo e um
mimeógrafo a álcool. Na área externa há um parquinho infantil com vários
brinquedos jardins e um amplo gramado (DAL RI; VIEITEZ, 2008).
A parte física da escola continua
sendo basicamente a mesma. Quanto ao mais, como observado, ocorreram mudanças
significativas.
Enumeramos
os principais elementos afetados pelas mudanças que ocorreram na ECG
posteriormente a 2002.
A escola esteve a pique de ser
fechada. O motivo principal foi a política do Estado de fechamento de escolas
rurais. Porém, houve também uma razão endógena. Normalmente, a escola atendia
por volta de trinta alunos, a maioria dos quais do próprio assentamento. Num dado momento, porém, esse número chegou a ficar
reduzido a quatro alunos.
Essa
redução decorreu da dinâmica de funcionamento da própria cooperativa. De uma
parte, muitas famílias deixaram a cooperativa, embora esta seja bem sucedida. “Tivemos
bastantes mudanças na Cooperativa”, afirma Neudi. “Uns 20% das famílias
preferiram sair da cooperativa e ir para lote individual”. E de outra parte,
verificou-se forte movimento de migração dos jovens do assentamento para a
cidade (GUINDANI, 2015).
A atuação reivindicativa tenaz dos assentados
junto às autoridades municipais possibilitou a manutenção da EEC. Além disso é
plausível supormos que a qualidade do trabalho pedagógico realizado pela escola
tenha incidido sobre a decisão do município. Com efeito, a ECC ganhou vários
prêmios. E, independentemente das querelas sempre presentes entre o
assentamento e a secretaria da educação por causa da pedagogia do Movimento, as
autoridades educacionais reconheciam a seriedade e qualidade do trabalho que se
realizava na ECC. É o que sugere o testemunho da professora Vanda: “A educação
aqui é bem melhor. Pelas notas da provinha Brasil. E quando as crianças vão
para o Estado [terminam a ECC] elas vão bem, são espontâneas, discutem, estão
bem preparadas”.
No entanto, para a manutenção da
escola as autoridades exigiram uma contrapartida. A ECC deveria completar suas
vagas com alunos do meio rural exógenos ao assentamento.
O ingresso desses alunos, filhos de
agricultores comuns, sem ligação com o MST, foi um dos vetores que levou ao arrefecimento
da pedagogia originariamente praticada na escola.
A
ECC conta com duas educadoras que são funcionárias municipais. Em 2002 a
Cooperativa conseguia negociar com a Prefeitura a indicação dos professores, de
modo a garantir que os educadores designados tivessem pelo menos certa
afinidade com a pedagogia do Movimento. Há tempo que esse procedimento foi
encerrado e o resultado é desfavorável àquela pedagogia.
O assentamento não mais consegue ter o
controle que tinha sobre os professores. Antes tinha duas professoras que
fizeram o magistério nas escolas do MST e tinham uma inserção no setor da
educação. Quando é uma professora concursada do Município que entra na escola
tem um impacto. Tem uma professora que enxerga a ECC como convencional. A X é
uma professora concursada. Ela não é do assentamento. Ela não foi formada pelo
MST. Ela fez um curso, mas não foi suficiente[9] .
No que pudemos apurar. o
afrouxamento da relação entre os professores e assentamento é relativo. No
entanto, não podemos descartar a possibilidade de que esse descolamento tenha efetivamente incidido na ECC em desfavor da
aplicação do método pedagógico do Movimento.
A união da educação com o trabalho
real é um princípio da pedagogia do MST. É também o mais difícil de realizar na
vigência da ordem social atual. A dificuldade é ainda maior em se tratando de
uma escola de crianças. Ainda assim, nos “bons tempos” a ECC buscava ao menos
uma aproximação com esse princípio, o que de acordo com Dal Ri e Vieitez (2008,
p. 256) expressava-se no seguinte:
O trabalho realizado pelas crianças na
Cooperunião é real, porém, fortuito, ou seja, não há uma ligação orgânica entre
o ensino e a produção.
Na cooperativa dos educandos, as
crianças trabalham de fato. Entretanto, essa cooperativa caracteriza-se mais
como uma organização para fins pedagógicos do que econômicos. A maior parte da
produção é de valores de uso, embora a cooperativa estabeleça algumas relações
mercantis e gere uma pequena renda também, como por exemplo, a venda de mudas
de plantas e flores.
A cooperativa Construindo o Caminho [praticamente
indissociável da escola] é constituída por quatro equipes de trabalho que são:
serviços gerais; subsistência; limpeza; e pedagógica e comunicação.
Isso
foi em 2002. Em 2015, não havia nada da mencionada organização, nem tampouco de
suas atividades. Qual a razão?
O maior problema parece ter sido a posição dos pais da maioria das
crianças, ou seja, agricultores não ligados ao MST. Para eles, a escola devia
ensinar e as crianças estudar. De acordo com a professora Vanda[10]: “Aqui todos os pais
sabiam da importância do trabalho das equipes. Havia um entendimento dos pais.
Só que quando entraram as crianças de outra comunidade [os pais] não
aceitaram”.
Os pais questionaram as
autoridades educacionais do município sobre essa prática. E as professoras, diretamente
responsáveis pelo funcionamento da escola, interromperam essa atividade.
Em 2002, com base nos ensinamentos
de Paulo Freire, a comunidade escolar escolhia o tema gerador a ser desenvolvido
durante certo tempo. Hoje em dia o setor de educação do Movimento está revendo
a utilização dessa técnica pedagógica. Porém, à época era um dos preceitos de
sua pedagogia. Seja como for, em 2015 o tema gerador continuava a ser
trabalhado pelos alunos, porém, o mesmo passou a ser designado diretamente pela
secretaria de educação do município.
Juntamente com o princípio de união
do ensino com o trabalho, a gestão democrática é um princípio fundamental da
pedagogia do Movimento.
Em 2002, a ECC era imediatamente
dirigida pelas duas professoras que respondiam à secretaria de educação. Mas,
uma comissão formada por pais de alunos associados da Cooperunião, muito ativa,
trabalhando em estreita cooperação com as professoras, constituía um importante
vetor na determinação da prática educacional da ECC.
O mais importante, porém, era a existência de uma assembleia geral (AG) da
escola, usualmente formada pelas professoras, funcionários e alunos, na qual
todos tinham direito a voz e voto.
A AG operava informalmente. E embora
as professoras tivessem o domínio da pauta a ser examinada, o processo
deliberativo da mesma não era meramente formal. Ao contrário, a maior parte das
questões da vida cotidiana da escola eram ali apresentadas, discutidas e
votadas.
É possível que para os pais exógenos à cooperativa, o fato de que
crianças do ensino fundamental estivessem o tempo todo tomando decisões sobre o
que fazer da escola soasse como um desatino. Mas, em contraposição a esse tipo
plausível de senso comum, o que a pesquisa pôde apurar à época foi que nenhum
desatino resultava das deliberações da AG.
De qualquer modo, em 2015, essa prática democrática, tão estratégica na
pedagogia do MST, também não mais estava presente na ECC. Os motivos pelos quais foi abandonada essa
prática não ficaram claros para esta pesquisa, ainda que como vamos ver à
frente, voltando a esta questão, seja possível conjecturar que as razões foram
tanto de ordem endógena quanto exógena.
Acrescentemos que a comissão formada pelos pais, que fora tão ativa e
importante tanto para a definição, quanto para a implementação da política
pedagógica da escola, tampouco permaneceu imune aos acontecimentos,
transmutando da condição de um formulador de política educacional ao papel de
simples apoiador das atividades escolares, como é usual que ocorra com as
associações de país na escola oficial.
As
disciplinas ministradas na ECC eram as disciplinas oficiais. No entanto, em
2002, os conteúdos das disciplinas de humanidades, sobretudo, iam além do
convencional. Naturalmente, a trajetória do MST enquanto lutador coletivo, bem
como do próprio assentamento, estava bem presente. Mas, também estava presente
uma narrativa a respeito da atuação histórica das classes trabalhadoras, suas
personagens e suas lutas, a qual ao menos é mencionada na escola oficial.
Nessa época, o MST já tinha iniciado uma revisão do seu programa. Não
obstante, a ideia clássica de reforma agrária, ainda constituía o cerne
teleológico de sua atividade. Assim sendo, as categorias ligadas à luta pela
reforma agrária, tais como movimento social, acampamento, assentamento e
cooperação, dentre outras, também faziam parte da formação dos estudantes.
Afora a parte escolar propriamente,
a Cooperunião – uma organização de trabalho associado que em 2002 já contava
com um pequeno setor industrial – era uma fonte de experiências e aprendizados
para as crianças[11].
Também essa parte estava mudada em
2015. O problema principal teria sido, uma vez mais, a necessidade de adaptar o
ensino aos estudantes que vinham de fora do assentamento. Os pais das crianças
chegavam à Construindo Caminho com os estereótipos a respeito do Movimento que
a propaganda oficial costuma divulgar. Assim, os conteúdos originários,
críticos em relação à ordem social, e favoráveis aos camponeses e trabalhadores
em geral, ficaram sob pressão.
A nossa escola mudou bastante. Antes
atendia crianças só do assentamento. Hoje atendemos outras comunidades. Houve
uma mudança radical. Daí você envolve pessoas que politicamente não se envolvem
com o Movimento. A gente comenta a luta do Movimento, mas a gente tem que ter
outro olhar também. A gente tem que ter cautela no que falar. No começo [quando
chegaram os alunos exógenos] a gente ficou meio assim. Não aceitaram a mística.
A gente cantava o hino do Movimento, mas não canta mais. Mas, foi se encaixando
devagar. Mas, a maioria dos pais aceitam numa boa. A gente fala da bandeira do
MST, fala tudo e os pais vão aceitando. E gostam de nossa maneira de trabalhar
(VANDA).
Acima
apresentamos os principais tópicos que marcavam a pedagogia da ECC em 2002, bem
como as mudanças que tinha sofrido quando voltamos a observá-la in loco em 2015. Embora sumária,[12] acreditamos que a narrativa satisfaça o
propósito informativo deste trabalho.
A
reforma agrária foi defendida pelo MST em sua variante clássica, assim como a
defende hoje em dia em sua variante popular. Embora a reforma agrária implique
a distribuição de terras entre os trabalhadores o seu significado para o
Movimento vai além disso.
Os assentamentos da “reforma
agrária”[13]
são constituídos basicamente a partir da pequena propriedade rural familiar.
Nesta, deve prevalecer, em princípio, o trabalho autônomo. No entanto, o perigo
do trabalho autônomo cair sob a dependência e exploração de algum
empreendimento capitalista é muito real, e quando isto ocorre o que resta dele
não é muito mais que a forma.
O Movimento busca superar tanto o trabalho
alienado em sua forma típica, o assalariamento, quanto em suas expressões
mediadas, que tantas vezes assumem as formas fantasmagóricas de pseudotrabalho
autônomo.
Essa é a razão pela qual nas duas variantes de reforma agrária
encontramos o conceito de cooperação[14] (BEAVOIS, 2008; VIEITEZ,
DAL RI, 2015). Na visão do Movimento, a cooperação, que contempla diversas
modalidades, seria o modo de pelo menos dar início à superação das limitações
da pequena propriedade agrária, dentre as quais se encontra, inclusive, a
possibilidade de ser reabsorvida pelo empreendimento capitalista.
Sob a bandeira da reforma agrária tradicional, o MST procurou impulsionar
uma forma de cooperação avançada, a cooperativa agropecuária de trabalho
associado. Sob essa modalidade os agricultores reuniriam seus lotes individuais
para constituir a propriedade de um coletivo, dando origem, portanto, a um
trabalhador coletivo democraticamente autogovernado e tendente à igualdade
social.
Essa proposição não teve muito sucesso. E, em seu VI Congresso, o MST
enunciou um novo programa denominado Reforma Agrária Popular, no qual tem centralidade
a agroecologia. Tudo indica que o
conceito de agroecologia está, todavia, por ser melhor clarificado. Porém, não
há dúvida que em seu cerne está a propositura de superação do trabalho
alienado, o que de um modo ou outro conclama, uma vez mais, à implementação de
formas diversas de cooperação, ainda que na prática isso seja contraditório e
de difícil viabilização.
Desde o acampamento o MST sempre
priorizou fazer o debate da cooperação. É um dos primeiros trabalhos que o MST
e o setor de produção faz no Movimento. Tem várias formas de cooperação. Não
precisa ser necessariamente a Cooperativa de Produção Agropecuária, que é a
forma mais difícil e mais avançada. Mas não é fácil. Quem está no acampamento
almeja a pequena propriedade (GUINDANI)
.
Na pedagogia do Movimento reencontramos a problemática do trabalho. Essa o
vê como uma categoria ontológica do ser social, o fundamento das relações dos
homens com a natureza e consigo mesmos. Mas, o trabalho está sujeito a
desenvolvimentos e contradições e na sociedade burguesa encontra-se alienado (MÉSZARÓS,
2006) no capital, de modo que em vez de ser a razão do engrandecimento do
trabalhador, é a razão de sua miséria, de sua opressão e exploração pela classe
dominante.
A escola capitalista está encarregada de formar os cidadãos com vistas à
reprodução do capital, isto é, à habilitação da força de trabalho para que esta
possa vir a ser consumida de modo produtivo pelo capital como força de trabalho
assalariada, ou, como ocorre frequentemente hoje em dia, como força de trabalho
pseudo-autônoma.
Mas, não se trata somente de que a escola prepara desse modo para o
exercício da denominada cidadania, se não que, ela própria, enquanto unidade de
produção pedagógica, opera mediante a utilização de trabalho alienado de professores
e funcionários, assim como dos alunos enquanto trabalhadores potenciais[15].
Os conceitos de trabalho em geral, de trabalho alienado e de sua virtual
antítese, a (des)alienação do trabalho, formam a matriz seminal da pedagogia do
Movimento. O seu objetivo precípuo é o de propiciar aos alunos uma formação
polissêmica, humanística. Uma formação que lhes permita reconhecer a existência
do trabalho alienado; que os arme para realizar sua crítica. E, em última
análise, que abra a possibilidade de que esses educandos adiram ao movimento
social que visa sua superação, o que no âmbito do MST significa a luta pela
reforma agrária.
Como é que a pedagogia do Movimento imagina produzir essa inflexão educacional?
Essa inflexão se produz mediante ações no plano simbólico (teórico) e no plano
das práticas escolares.
No plano simbólico se realiza por meio dos conteúdos socializados pelas
disciplinas acadêmicas. Em particular, é estratégico possibilitar que os
estudantes tenham acesso à visão do mundo do proletariado, uma vez que essa concepção
se encontra escamoteada no ensino oficial.
No plano prático trata-se de
modificar o modus operandi da própria
escola. Esta encontra-se em termos imediatos dissociada tanto do mundo do
trabalho quanto da vida social em geral, sendo regida por uma rigorosa hierarquia burocrática. Não é possível
transmudar radicalmente esse padrão sob o regime do capital. Mas é possível
introduzir mudanças visando aproximar a escola o mais possível da vida social
real e, em especial, implementando processos democráticos de tomada de decisões.
A presença de sujeitos escolares interessados
em promover essa pedagogia alternativa em uma unidade escolar é imprescindível,
nomeadamente no segmento docente. Mas, essa presença por si mesma é
insuficiente. É necessário que se constitua uma vontade político-pedagógica, e
que esta seja capaz de se traduzir no estabelecimento de certo controle sobre a
escola. A conquista desse controle, bem como, a manutenção do mesmo através do
tempo encontra-se sujeito à interveniência de muitos fatores cambiantes,
endógenos ou exógenos, de modo que, em última instância, esse controle possível
ou real está sujeito à dinâmica da luta social.
Em 2002, os professores da ECC juntamente com os pais dos alunos, tinham
conquistado um controle importante sobre a atividade da escola, e em virtude
disso, a pedagogia do Movimento inspirava vigorosamente o que fazer pedagógico.
Porém, em 2015, como observamos
anteriormente, o controle sobre a instituição tinha arrefecido, e consequentemente
a influência daquela pedagogia na ECC também se contraíra apreciavelmente.
Apontamos anteriormente que as causas principais da perda de controle do
assentamento sobre a ECC foram: a política do Estado de fechamento de escolas e
a crise demográfica da própria cooperativa. Contudo, esses fatores como causas
explicativas finais não são totalmente convincentes, uma vez que deixam
questões sem resposta ou com resposta dubitativa. Não ficou claro porque foi
abandonada a prática das esquipes de trabalho e a assembleia geral. As equipes
poderiam ser adaptadas à situação e, em princípio, a assembleia geral também. Estas dúvidas nos sugerem que uma terceira causa
do enfraquecimento da pedagogia alternativa na ECC pode estar no relativo debilitamento
da militância pedagógica dos próprios associados da cooperativa[16].
Tem um elemento que é a reduzida
juventude no assentamento. Isso influencia muito. Hoje, o coletivo de educação
está fragilizado porque o número de pessoas que tem para tocar todas essas
tarefas ...É muito difícil. E a comissão [de educação] tampouco tem mais a
mesma força. A quantidade de filhos diminuiu. Querendo ou não as prioridades
são outras. Antes tinha um monte de juventude atuando dentro do setor e agora
não mais. Acho que é o cotidiano das coisas. Tem época que a gente tem mais
ânimo e tem épocas que o desânimo vem e as coisas acontecem. Uma coisa é ter a
escola cheia de Sem Terrinha e outra é ter a escola cheia de agricultores (GUINDANI).
Devemos ressaltar, entretanto, que a
situação de 2015 não é necessariamente irreversível. Diversos entrevistados
testemunharam que os pais dos alunos exógenos à cooperativa não só passaram a
respeitar o trabalho pedagógico realizado na ECC, como também, passaram a ter
uma posição compreensiva em relação ao Movimento. Por outro lado, uma das
professoras entrevistadas declarou que há cogitações no sentido de retomar mais
cabalmente os originários princípios pedagógicos.
Enfim, há cerca de cinquenta anos a
escola capitalista era um reduto para a habilitação da força de trabalho. E os
professores eram seus leais guardiães. Nos dias atuais, o trabalho docente,
assim como o dos demais funcionários, está precarizado devido a salários baixos
ou irrisórios e a condições de trabalho neotaylorizadas. Observadas as
proporções algo semelhante atinge o alunado, uma vez que as condições de estudo
se deterioram e as perspectivas pós escolares são desanimadoras. O resultado é que emergiu um movimento da
educação com lutas várias que grassam nos sistemas escolares mundo afora.
Até o presente, salvo falha, essas lutas situam-se no campo tradicional
de reivindicações por melhores salários e melhores condições de estudo e
trabalho. Tudo leva a crer, no entanto, que está na hora de que o movimento da
educação se coloque a questão do controle da instituição escolar. Isso foi o que professores e pais fizeram na
ECC, quando foi possível. E é possivelmente o que voltarão a fazer quando as
circunstâncias o permitirem.
Na escola, possivelmente de modo até
mais acentuado do que em outros setores, a hegemonia da burguesia e seus
funcionários está a tornar-se altamente contraditória, o que dá origem a
crescentes problemas e descontentamentos.
Devemos considerar como válidas
todas as formas de luta travadas pelo movimento da educação. No entanto, a luta
pelo controle da escola revelará a passagem do um estágio a outro, a passagem da
luta econômica-corporativa para o estágio da luta pela hegemonia
político-social.
Os partidários e ativistas da pedagogia elaborada pelo setor de educação
do MST praticamente abriram uma senda no front
da educação. O caso da ECC, aqui tratado, é apenas um exemplo, uma vez que
são muitas as escolas nas quais os partidários dessa impostação pedagógica,
para além das escolas próprias do Movimento, conseguiram articular uma
ascendência pedagógica.
Mas, tão importante quanto isso é o fato de que, atualmente, os
partidários de uma pedagogia alternativa à oficial não se restringem às pessoas
ligadas ao MST. Aparentemente, e ainda que de modo incipiente, outros sujeitos
e entidades, como professores e sindicatos docentes, começam a compreender o
quão estratégico é, também, a luta pelo controle na escola. É ocioso
acrescermos que esse é um fato auspicioso, pois, por mais importante que seja a
atividade pedagógica do MST, a pedagogia alternativa só poderá vir a ter uma
estatura compatível com o potencial político do MOP se transcender seu caráter
setorial e converter-se em fenômeno geral no movimento operário e popular.
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Expressões, 2015. p. 105-128
[1]
- Entrevista com Neudi, um dos dirigentes da Cooperunião, realizada em julho de
2015.
[2]
- Entendemos por cursos livres aqueles
que prescindem da chancela do Estado e que não estão aptos a emitirem
certificação legal.
[3]
- Há indicadores de que, no Brasil, os primeiros a tentarem este caminho foram
os anarquistas (MORAES, S/D).
[4]
- Nos anos 1980, no bojo da luta contra a ditadura militar, o movimento da
educação pleiteou a gestão democrática da educação, o que veio a ser
parcialmente atendido pela Constituição de 1988 (VIEITEZ, 2015). No entanto, o movimento da educação, de facto, não deu seguimento à luta pela
gestão democrática da educação.
[5] - Escolas que, mutatis
mutandis, funcionam com um grau de autonomia semelhante ao das escolas particulares.
[6]
- O programa atual do MST é sinteticamente expresso na ideia de reforma agrária popular, que é um
desdobramento do anterior programa de reforma
agrária tradicional ou clássica.
[7]
- O que estamos entendendo por controle? Qualquer ação do MOP que incida sobre
a organização ou processus da escola
é uma forma de controle, como por exemplo, quando uma greve de trabalhadores da
educação consegue extrair dos patrões uma melhoria salarial. Porém, o controle
ao qual nos referimos aqui é de outra natureza. Esta modalidade de controle,
ainda rarefeita na escola, apresenta uma vocação totalizadora devido à qual
tende a incidir sobre a organização e o processus
educativo de maneira recorrente e mais abrangente. Quando esse controle
chega a ser significativo, ou seja, eficaz, o seu efeito sobre a produção
escolar torna-se político, técnico,
diretivo, didático, ou, numa palavra, pedagógico.
[8]
- Na pesquisa de campo realizada em 2002, os investigadores foram Neusa Maria Dal
Ri e o autor destas linhas. E em 2015, este autor e o doutorando Cláudio Rodrigues
da Silva, do Programa de Educação em Educação do campus Marília da UNESP.
[9]
- Entrevista realizada com Carla Guindani em setembro de 2015. Carla é
associada da Cooperunião e na data da
entrevista encontrava-se em licença da cooperativa para o exercício de funções
de coordenação no MST.
[10]
- Entrevista coma professora Vanda da ECC, realizada em Julho de 2015.
[11]
- As crianças podiam transitar de modo organizado ou mais ou menos livremente
no assentamento. E podiam, inclusive, participar da assembleia geral da
cooperativa com direito à palavra e, dependendo do tema discutido, com direito
a voto.
[12] - Uma exposição mais detalhada das práticas de 2002 pode ser consultada
em Dal Ri e Vieitez (2010) e Paludeto (2018).
[13]
- Convém que esclareçamos que, estrito senso, nunca houve reforma agrária no
país. O que tem havido é uma certa distribuição de terras.
[14]
- Segundo Beauvois, a cooperação foi uma das maiores descobertas da humanidade
em todos os tempos.
[15]
- Trabalhadores porque em algum momento os estudantes estão fadados a
ingressarem massivamente no mercado de trabalho na condição de assalariados em
sua forma típica, ou, na condição de pseudo-autônomos.
[16]
- Durante a visita à escola soubemos que acabara
de se encerrar um grande debate e processo deliberativo na cooperativa. Esta, estava ampliando e modernizando sua
fábrica de processamento de aves. E o dilema que emergiu foi a respeito de se a
cooperativa deveria empregar ou não assalariados para tocar a fábrica. O debate
encerrou-se com a maioria dos associados votando pelo não ao assalariamento. Porém,
o acontecimento pode estar indicando que com o passar do tempo, o pragmatismo
mercantil, uma das “tentações” a que estão sujeitas as organizações de trabalho
associado sob o regime capitalista, ganhou espaço na cooperativa, o que por sua
vez pode ter incidido sobre o nível da militância pedagógica dos associados.
SCS, 4/4/2018
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