segunda-feira, 10 de novembro de 2025

O agro não é pop

 


POR João Moreno


O latifúndio monoexportador, herdado do sistema escravocrata colonial,
se apresenta, hoje, para os donos do poder, como um pilar intocável do
modo de produção capitalista. Mas esse é apenas um modelo que nos mantém
preso ao velho subdesenvolvimento.

(Foto retirada do blog da Syngenta)

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O clipe da música “Agro é top”, da dupla de sertanejo universitário Léo
e Raphael, tem mais de 19 milhões de visualizações no YouTube.
Assistimos a picapes e grande extensão de terras agricultáveis,
maquinários ultratecnológicos para colheitas mecanizadas, bois, peões
selando cavalos, e mulheres, muitas mulheres, enquanto o refrão /“/Agro
é top/ agro é chique/ agro é show/ agro é nóis” toca. Nos mais de 1.700
comentários direcionados ao vídeo, encontramos concepções que destoam da
realidade do nosso país: “O clipe é uma aula de informação” e “Por isso
o Brasil e os brasileiros são abençoados; nunca saberemos o que é
fome!!! viva o agro, viva o brasil!!!!”.

É possível identificar quais são os mecanismos responsáveis por essa
alienação? Como se transforma uma atividade deletéria ao próprio
desenvolvimento capitalista, e que aprofunda o subdesenvolvimento
brasileiro, em sinônimo de riqueza e sucesso? Tentaremos aqui aglutinar
informações, furar bolhas e, por fim, indicar alternativas.

O latifúndio e a economia monoexportadora, as bases do sistema
escravocrata do Brasil colonial, se apresentam, hoje, para os donos do
poder, como um pilar intocável do modo de produção capitalista no país.
Sob a ótica da economia política, buscaremos compreender o imbricamento
entre a renda da terra e o poder político, e de que forma essa relação é
responsável pela atual configuração da realidade brasileira. A partir de
dados e estudos, apontaremos o vínculo entre o agronegócio e o
subdesenvolvimento.


    Eles nos disseram que “O agro é a riqueza do Brasil”

Em uma peça publicitária da Rede Globo, um tom de voz otimista anuncia 
“Agro, a indústria-riqueza do Brasil”. E, entre a frase “Agro é tech” e
“porque tudo que vem do campo é feito com tecnologia, que não para de
avançar”, tratores, ceifadeiras e drones ajudam o agricultor na colheita
do vastíssimo campo.

A peça mercadológica não para por aí. Mais uma vez, uma área cultivável
quase sem fim ganha a tela enquanto o texto conecta o agronegócio ao
cotidiano dos brasileiros. “Agro é pop porque está no dia a dia, nas
indústrias, no comércio e na vida das pessoas. Porque gera emprego”,
diz. A publicidade televisiva, além aproximar os universos urbano e
rural, apresenta uma suposta proximidade entre camponeses e agronegócio:
pouco depois do recorte de uma família de agricultores – pai, mãe e
filhos pequenos –, a imagem de um latifúndio produtivo aparece. Ao mesmo
tempo, o narrador afirma que o “Agro é tudo! É o sustento de famílias e
a riqueza do Brasil”.

“Na América Latina, 51,19% das terras agrícolas concentram-se sob o
poder de 1% dos proprietários rurais.”

A Rede Globo foi ainda mais longe em sua propaganda ideológica. Lançou
outra campanha institucional em 2021, mesmo ano em que o aumento
acumulado no preço das carnes, medido pelo Índice de Preços ao
Consumidor Amplo (IPCA), chegou a 69%. A campanha consistia em uma “ode”
aos ovos como substitutos da carne e como a indústria granjeira alcançou
a marca de 16 bilhões de reais. Tais números contrastam com os dados
levantados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional (Rede penssan) com o Inquérito Nacional sobre
Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.

Nos três últimos meses de 2020, “do total de 211,7 milhões de
brasileiros(as), 116,8 milhões conviviam com algum grau de Insegurança
Alimentar e, destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade
suficiente e 19 milhões de brasileiros(as) enfrentavam a fome”. A
pesquisa fala de um Brasil em que ossos de animais e farelos de arroz e
de feijão tornaram-se as únicas opções de alimentos disponíveis para
muita gente. <https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-25/arroz-
quebrado-bandinha-de-feijao-e-ossos-de-boi-vao-para-o-prato-de-um-
brasil-que-empobrece.html>

Como a mesma realidade pode comportar situações tão opostas? O “Agro, a
indústria-riqueza do Brasil” e a fome de milhões?


    Mau negócio

Segundo os pesquisadores Marco Antonio Mitidiero Junior e Yamila
Goldfarb, no estudo chamado “O agro não é tech, o agro não é pop e muito
menos tudo” (2021), o agronegócio pode ser definido como um “um modelo
de produção e gestão resultante da associação do capital agroindustrial
nacional e internacional com a grande propriedade fundiária”. Por meio
do sistema financeiro, do capital bancário e do uso de tecnologia
intensiva, o agro impõe um modelo único de produzir alimentos (não
destinados à alimentação dos brasileiros, aliás) e de enxergar a relação
com a terra.

Para além do consenso – construído pelos “aparelhos ideológicos” – , uma
análise detalhada do agronegócio demonstra que o setor está muito longe
de ser a “salvação” do Brasil, tal como ele se define. Segundo o estudo
de Mitidiero e Goldfarb, “A análise da balança comercial, da balança de
pagamentos e dos créditos recebidos pelo setor somados aos incentivos
fiscais, como é o caso da Lei Kandir, à baixa arrecadação, como no caso
do itr, e à constante renegociação e perdão das dívidas do setor mostra
um país atado a uma economia reprimarizada, de uso intensivo de recursos
naturais e profundamente dependente”. Ou seja, “até sobre o ponto de
vista do capitalismo, o agronegócio é um mau negócio”, como os
pesquisadoresresumiram em uma entrevista.

<https://www.camisacritica.com/collections/jacobin>

Em /Economia política: uma introdução crítica/, José Paulo Netto e
Marcelo Braz afirmam que a sociedade não pode existir sem a natureza,
“afinal, é a natureza, transformada pelo trabalho, que propicia as
condições da manutenção da vida”. Especialmente a partir da Revolução
Industrial, a sociedade capitalista revolucionou tal relação, primeiro
com uma nova forma de produzir energia, o carvão; depois, com o
desenvolvimento de novas matrizes de transportes, encurtando distâncias
e conectando mercados, agora globais.

Todavia, apesar de um “sistema global”, o capitalismo não se desenvolveu
em todo o globo de forma homogênea. No Sul Global ele está subordinado
ao centro capitalista, o que cria estruturas específicas de dominação,
nas diferentes áreas. Como sintetizou o escritor Eduardo Galeano, no
clássico /As veias abertas da América Latina/:

    “a América Latina nasceu para obedecer, quando o mercado mundial
    ainda não se chamava assim, e aos trancos e barrancos continuamos
    atados ao dever de obediência. Essa triste rotina dos séculos
    começou com o ouro e a prata, e seguiu com o açúcar, o tabaco, o
    guano, o salitre, o cobre, o estanho, a borracha, o cacau, a banana,
    o café, o petróleo. O que nos legaram esses esplendores? […] Agora é
    a vez da soja transgênica”.

Essa relação de dependência possibilitou o desenvolvimento de estruturas
específicas no capitalismo periférico brasileiro que permanecem até
hoje, como uma burguesia reacionária e o latifúndio de base escravista.
Galeano escreveu em 1971 que

    “as burguesias dessas terras nasceram como simples instrumentos do
    capitalismo internacional, prósperas peças da engrenagem mundial que
    sangravam as colônias e as semicolônias […] Por sua vez seus sócios,
    os donos de terras, não estavam interessados em resolver a ‘questão
    agrária’, a não ser na medida de suas próprias conveniências. O
    latifúndio se consolidou sobre a espoliação, tudo ao longo do século
    XIX”.

Na América Latina do presente, 51,19% das terras agrícolas concentram-se
sob o poder de 1% dos proprietários rurais, de acordo com levantamento
da Oxfam.

O século XX viu o Brasil abandonar o eixo do poder oligárquico agrário,
mesmo que momentaneamente, fruto dos impactos Revolução de 30 e da
ditadura do Estado Novo. Todavia, enquanto o país sustentou, entre os
anos de 1930 e 1980, notável desenvolvimento industrial, crescimento
econômico e aspirações modernizantes, o latifúndio permaneceu. Pode ser
apontado, inclusive, como uma das razões para o Golpe de 1964, pois,
como escreveu o historiador Moniz Bandeira, a reforma agrária proposta
por João Goulart “afetaria os interesses dos latifundiários”.

O poder do agronegócio não recrudesceu com a redemocratização. Muito
pelo contrário. Segundo a historiadora Adelaide Gonçalves, a Assembleia
Nacional Constituinte foi um dos lugares em que o lobby do agronegócio
mostrou o poder acumulado pela elite fundiária durante o Regime Militar.
Financiamento de milícias para “extermínio de trabalhadores sem-terra,
posseiros, sindicalistas, agentes de pastoral leigos e missionários e
advogados das causas camponesa”; arrecadação de fundos; financiamento de
Meios de Comunicação. O agronegócio, por meio da União Democrática
Ruralista (UDR), também lançou candidato à presidência, em 1989. Assim,
a estrutura da terra, herdada da escravidão, permaneceu e se multiplicou.


    É a parte que te cabe deste latifúndio

A extensão do latifúndio brasileiro é equivalente à da Arábia Saudita.
São 2,3 milhões de quilômetros quadrados. Do total de imóveis rurais,
0,91%  concentram 45% da área produtiva do país. E 10,9% da superfície
agrícola é composta de terras públicas “sem destinação”. A grilagem de
terras faz com que o Brasil tenha registrado 38 milhões de hectares a
mais do que seria possível existir em suas fronteiras. As terras
improdutivas alcançam 175,9 milhões de hectares e seriam suficientes
para conceder posse aos mais de 800 mil produtores rurais sem-terras,
conforme dados do /Atlas do Agronegócio 2018/ <https://rosalux.org.br/
product/atlas-do-agronegocio-fatos-e-numeros-sobre-as-corporacoes-que-
controlam-o-que-comemos/>, organizado pelas fundações Heinrich Böll e
Rosa Luxemburgo.

“Apenas a construção de alternativas populares ao agronegócio poderá
salvar o Brasil desse tiro no pé.”

Um exemplo dessa realidade de consenso e de poder é o Centro-Oeste
brasileiro, região em que o agronegócio representa 80% <https://
g1.globo.com/economia/noticia/2021/05/21/estados-atrelados-ao-
agronegocio-devem-liderar-alta-do-pib-em-2021-veja-ranking.ghtml> do PIB
e onde o discurso de que o “agro é pop” tem grande relevância econômica
e política. A extensão média de imóveis rurais no Centro-Oeste é de 339
hectares contra os 79 hectares da média nacional. O tamanho da
propriedade privada contrasta com as áreas públicas destinadas à
preservação ambiental. Característico da região, o cerrado tem 178
milhões de hectares sob propriedade particular de latifundiários; apenas
7% desse bioma, que está entre os mais devastados do mundo, é protegido.
De acordo com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), em
15 anos (2000-15), o cerrado perdeu 236 mil quilômetros quadrados de
cobertura vegetal. O /Atlas do Agronegócio/ calcula que 52% de sua área
vegetal sofreu perdas irreversíveis. No mesmo período, a agropecuária
expandiu suas fronteiras de 76 para 90 milhões de hectares.

A ofensiva às nossas terras pelo setor ruralista carrega em si
contradições fundamentais. Ao mesmo tempo que avança sobre recursos
naturais e sobre as formas de resistência à sua dominação, evidencia os
limites socioambientais de um sistema cuja prioridade é sempre o aumento
da produtividade, aceleradamente e a qualquer custo. Como resumem
Mitidiero e Goldfarb, o “agro” contribui para a reprimarização da
economia, com a desindustrialização do país e uma inserção subordinada
no mercado mundial. Ele tem pouca participação no crescimento do PIB,
sendo responsável por apenas 5% dele. Contudo, recebe muito subsídios e
paga pouco imposto, além de gerar pouco emprego e renda. Apenas a
construção de alternativas populares ao agronegócio poderá salvar o
Brasil desse tiro no pé, até para o capitalismo brasileiro, que é o
atual modelo produtivo.


          João Moreno <https://jacobin.com.br/author/41f26c7a50847ab4/>

Em
Jacobina
https://jacobin.com.br/2022/08/o-agro-nao-e-pop/
25/8/2022
/10/1/2025

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