sexta-feira, 31 de outubro de 2014
Revolucionários sem rosto: Uma história da Ação Popular
por Edmilson Costa [*]
O golpe militar no Brasil, em 1964, implantou uma longa ditadura que
durou 21 anos, sufocou as liberdades democráticas, criou um modelo
econômico concentrador de renda, prendeu milhares de pessoas, implantou a
tortura como método de investigação e assassinou centenas de militantes
nos porões de repressão, existindo hoje mais de 350 desaparecidos
políticos. Também ao longo da ditadura o povo brasileiro resistiu de
diversas formas, desde o voto nos partidos de oposição, às manifestações
de ruas, às greves operárias e estudantis até a luta armada.
A luta mais efetiva contra o regime militar envolveu dezenas de
organizações revolucionárias, todas clandestinas e com os mais variados
métodos de luta. Algumas organizações, como o PCB, optaram pelo trabalho
de massas e a constituição de uma ampla frente democrática contra a
ditadura; outras foram para o campo organizar as guerrilhas rurais e a
grande maioria, optou pela guerrilha urbana como primeiro passo para
construir as condições para a organização da guerrilha no campo. A maioria
dessas organizações era constituída por jovens estudantes, a grande
maioria saídos de dissidências do PCB. Todas essas organizações foram
massacradas pelo regime militar, tanto do ponto de vista militar quanto na
tortura e tiveram breve existência.
Entre as organizações que lutaram contra a ditadura, uma delas tem uma
historia singular, tanto pela origem dos seus militantes, quanto pelo
trabalho de massas que realizou, além do fato de ter se constituído numa
organização que chegou a ter cerca de 25 mil membros, entre militantes
orgânicos e simpatizantes, com atuação em todos os Estados do País, sendo
que pelos menos mil de seus militantes foram deslocados para o trabalho
nas fábricas e no campo, processo que denominavam de proletarização.
Trata-se da Ação Popular (AP), uma organização inicialmente vinculada à
igreja católica e que depois foi evoluindo ideologicamente até absorver o
marxismo.
A Ação Popular foi constituída a partir de organizações da igreja
católica, com o a Juventude Estudantil Católica (secundaristas), Juventude
Universitária Católica, Juventude Operária Católica e Juventude Agrária
Católica e do trabalho junto ao Movimento de Educação de Base. Sua
evolução política teve a influência dos teóricos católicos Emanuel
Mounier, Jacques Maritain, Teilhard de Chardin e do padre brasileiro
Henrique Vaz, além de pensadores progressistas da igreja presbiteriana.
Nasceu como movimento, depois se transformou em organização política e,
influenciada pela visita de seus militantes à China, optou pelo maoísmo.
No início da década de 70, grande parte dos seus militantes ingressaram no
PC do B e hoje compõe a sua direção, enquanto outra parte continuou na
resistência à ditadura até se dissolver posteriormente nos anos 80.
Essa história da Ação Popular agora está publicada num trabalho de
excelente qualidade e resgate histórico, de autoria do jornalista Otto
Filgueiras. O trabalho foi produzido em dois volumes, com 85 capítulos,
cujo primeiro volume agora está sendo publicado pelas Edições ICP.
Trata-se de uma pesquisa de mais de duas décadas, no qual o autor realizou
entrevistas com mais de 200 ex-dirigentes e ex-militantes da AP, pesquisou
nos arquivos da polícia política brasileira, nos arquivos pessoais de
ex-dirigentes, nos processos a que os militantes responderam na justiça
militar e nos acervos documentais da Universidade de Campinas, que reúne a
mais ampla documentação sobre o movimento operário brasileiro e sobre o
período da ditadura.
Portanto, trata-se de um trabalho de fôlego e uma enorme contribuição para
a história da resistência à ditadura, especialmente porque este é um
período muito pouco conhecido pela geração atual, uma vez que o povo
brasileiro ainda não conseguiu fazer o ajuste de contas com seu passado
ditatorial, como já ocorreu nos outros países da América Latina que também
viveram períodos de repressão e ditadura. Até hoje os militares resistem
em abrir os arquivos do período ditatorial. O primeiro volume, com 561
páginas e uma galeria de fotos com momentos importantes da resistência ao
golpe, está dividido em 41 capítulos e envolve o período pré-1964 até os
anos 1968. Com prefácio do historiador Mario Maestri, o livro reconstrói
de maneira rigorosa a trajetória de uma das mais importantes organizações
revolucionárias brasileiras na resistência à ditadura.
O livro começa relatando os primórdios da organização, quando os jovens
ainda estavam envolvidos pela doutrina da igreja e, aos poucos, foram
despertando para o entendimento da realidade brasileira e para a luta
contra as injustiças sociais. Essa nova visão da realidade levou esses
jovens militantes a ir rompendo aos poucos com o conservadorismo da
igreja, participando das lutas estudantis junto com os marxistas,
realizando o trabalho de alfabetização no interior do País e
posteriormente se constituindo em movimento político com atuação
independente da igreja, mas sem nunca perder os contatos com os membros
dessa instituição que estavam participando dos trabalhos junto à
população.
Inicialmente constituída como sociedade civil Ação Popular , a primeira
reunião de pré-fundação foi realizada em 1962, no Convento dos
dominicanos, em Belo Horizonte, sob forte influência do padre Henrique
Vaz, onde foi eleita uma coordenação nacional e elaborado o Estatuto
Ideológico da organização. No entanto, a fundação oficial da AP como
organização política só veio a ocorrer em 1963, em Salvador, na Bahia,
ocasião em que foi aprovado o Documento Base da organização, ainda com
base filosófica idealista, como constata o autor, e onde se elegeu um
Comitê Nacional, coordenado por Herbert de Souza, O Betinho, figura
carismática imortalizada em uma bela música de João Bosco e Aldir Blanc.
Vale destacar que a Ação Popular, a partir de sua organização, passou a
ter uma grande influência no movimento estudantil brasileiro e, em aliança
com o PCB, dirigiu a União Nacional dos Estudantes (UNE) no período
anterior ao golpe e manteve essa influência, chegando a eleger vários
presidentes da UNE no período após o golpe militar. Influenciada pelas
teses maoístas, a AP decidiu proletarizar seus militantes e cerca de um
milhar deles foram deslocados para trabalhos de base nas fábricas e entre
os camponeses brasileiros.
Nas mais duras condições de clandestinidade, a AP contribuiu de forma
militante para um conjunto de lutas contra a ditadura, como a
reorganização da UNE, as comemorações do primeiro de maio, no qual
expulsou do palanque em São Paulo os pelegos e o governador Abreu Sodré, o
atentado no aeroporto de Guararapes, as lutas camponesas pelo interior do
País e nas lutas do ABC paulista, muito embora o forte da organização
fosse mesmo o trabalho entre a juventude estudantil.
A partir de meados da década de 60, a AP começou a enviar delegações para
a China com o objetivo de realizar treinamento militar e cada vez mais
começou a ser influenciada pelas ideias do Partido Comunista Chinês e sua
estratégia de guerra popular prolongada, o que levou a organização a um
impasse, uma vez que nem todos concordavam com essa orientação, o que
levaria ao primeiro dos muitos rachas que a organização enfrentaria ao
longo de sua história. O primeiro racha ocorreu no segundo semestre de
1968 quando a organização fez sua opção pela luta armada.
A origem desta grande cisão ocorreu a partir do debate no interior da
organização sobre as duas teses que disputavam os rumos da AP: a Tese 1,
foi elaborada pela corrente majoritária e fortemente influenciada pelas
teses maoístas, avaliava que "a sociedade brasileira é semifeudal e
semicolonial, que as forças produtivas são entravadas pelo monopólio da
terra, pelas formas de exploração do trabalho, resultando numa ditadura do
conjunto do poder latifundiário burguês". Por isso, "a guerra
revolucionária é total e prolongada, cercando as cidades a partir do
campo, para toma-las em conjugação com as forças da cidade".
Já a Tese 2, Duas Posições, tinha visão completamente diferente do Brasil.
Para a corrente minoritária, o Brasil era um país com a dominância do modo
de produção capitalista, onde há " a subordinação da agricultura pela
indústria e ao mercado capitalista, pela dominação do campo pela cidade,
pela predominância da grande produção sobre a pequena, tanto na indústria
quanto na agricultura ... pela predominância do capital financeiro sobre
as outras formas de capital e pelo grau de transformação da propriedade
fundiária em uma forma de propriedade correspondente ao modo capitalista
de produção ... Opera-se um poderoso movimento de concentração e
centralização do capital que aumenta a dependência da agricultura ao
capital financeiro". Com essas características diz a Tese 2, a revolução
seria de cunho marcadamente antimperialista e democrática e a força
principal da revolução brasileira era o proletariado urbano e rural e seus
aliados, os camponeses, trabalhadores explorados e a pequena burguesia em
processo de proletarização.
Eram duas interpretações do Brasil radicalmente diferentes e é natural que
não poderiam conviver na mesma organização, tanto que a corrente
minoritária foi expulsa. Lendo com os olhos de hoje pode-se dizer que,
mesmo derrotados, aquela corrente estava mais próxima da realidade
brasileira que os jovens apaixonados pelas teses maoístas. Com essa cisão,
a AP perdeu importantes dirigentes históricos da organização, além de
militantes em várias regiões do País.
Para se ter ideia da importância que a Ação Popular teve no Brasil, vale
ressaltar que uma parcela expressiva dos personagens que militam na
política brasileira, independente de suas posições da juventude, são até
hoje figuras de expressão nacional. Muito embora estejam do outro lado das
barricadas, foram ou são ministros, grandes empresários, executivos de
grandes empresas, governadores, senadores e deputados.
Por isso, o primeiro volume de Revolucionários sem rosto: uma história da
Ação Popular deve ser lido por todos aqueles que querem compreender a
história da resistência à ditadura no Brasil. Escrito de maneira
envolvente, com um rigor documental extraordinário, recupera para a
história as lutas e a trajetória de uma geração de brasileiros que doou
generosamente o melhor de suas vidas, inclusive sacrificando a própria
vida, para a conquista da democracia e de uma sociedade próspera e justa.
Aguardem o segundo volume.
Nota:
Dentro em breve resistir.info disporá deste livro para venda em Portugal.
Os interessados podem desde já reservar o seu exemplar através do email
resistir[arroba]resistir.info.
[*] Diretor do Instituto Caio Prado Junior
Esta resenha encontra-se em http://resistir.info/ .
http://www.resistir.info/brasil/resenha_revolucionarios_sem_rosto.html
31/Out/14
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