terça-feira, 14 de março de 2017
Novas formas de produção ou um novo modo de produção por Daniel Vaz de Carvalho
Se as máquinas destruíssem por inteiro a classe dos trabalhadores
assalariados que espantoso seria isto para o capital que sem
trabalho assalariado deixaria de ser capital.
Marx, Trabalho assalariado e capital
1 - Novas formas de produção
A economia digital prossegue avanços tecnológicos anteriores como não
podia deixar de ser. Traz contudo elementos de certo modo novos e leva os
anteriores a níveis críticos.
A aceleração do desenvolvimento tecnológico na segunda metade do século
XX deu origem a um enorme crescimento do capital fixo investido por posto
de trabalho (nos últimos 40 anos do século XX terá sido multiplicado por
10). O que coloca problemas quer económicos, pelos montantes necessários
para concretizar a chamada "4ª revolução industrial", quer sociais pelo
desemprego que origina.
O aprofundamento da automação leva a que as instalações poderão operar
praticamente sem presença humana: apenas um trabalhador sentado numa sala
de comando que pode estar a milhares de quilómetros e verificar – sem se
mover – os painéis de controlo e condução de toda uma unidade fabril ou
serviço.
No limite, teríamos mesmo robots a construírem robots, a vigiarem robots,
a programarem robots, etc. Mesmo a manutenção dos equipamentos pode ser
processada por computador e realizada por robots através de cálculos RAMS
ou equivalente. [1] Seria o tão desejado fim da classe operária e do
proletariado em geral, o fim da luta de classes, o enterro do marxismo – o
domínio absoluto do grande capital.
O neoliberalismo aparece como a manobra ideológica mais adequada ao
domínio das transnacionais (TN). As tecnologias avançadas acentuam a
concentração monopolista devido aos capitais em jogo e ao domínio dos
mercados necessário para concretizar e tornar rentável a "revolução"
tecnológica.
As TN detêm uns 90% das patentes das tecnologias ligadas a estes
processos. Em seu apoio a OMC e os tratados de "comércio livre" impõem
políticas em que o saber e o conhecimento são mercantilizados mesmo quando
essenciais à vida humana e à sobrevivência dos povos, impedindo a
transferência tecnológica e uma nova ordem mundial de cooperação.
Assim, regra geral, após dominada a investigação aplicada e avançado ou
mesmo concluído o desenvolvimento experimental com apoios estatais, os
processos tecnológicos passam a ser dominados pelas grandes empresas onde
têm lugar ações de inovação, regra geral limitando-se a alguns pormenores
nas características dos produtos, que a publicidade em larga escala
exalta.
As tecnologias mais avançadas foram e são conseguidas a partir da ação
governamental direta ou indireta, através de subsídios, encomendas,
designadamente no campo militar, legislação e proteções de vária ordem,
como a regulamentação sobre patentes já referida.
2 – Que sociedade, que capitalismo
Um estudo da Universidade de Oxford considera que 47% dos postos de
trabalho estão em risco. Outros estudos concluem que um terço dos postos
de trabalho será perdido para robots durante os próximos 10 anos. [2] Há
quem conteste dizendo que novos postos serão criados…pelo menos até outros
computadores e robots não desempenharem essas funções.
De qualquer forma milhões de trabalhadores serão dispensados com estas
tecnologias. Porém, se o desenvolvimento tecnológico (DT) exige
trabalhadores mais qualificados também dá origem à desqualificação do
trabalho de muitos outros: "Dizem-nos que os trabalhadores a quem a
maquinaria torna desnecessários encontram novos ramos em que trabalhar (…)
uma massa de trabalhadores expulsos de um ramo industrial não vai
encontrar refúgio noutro a não ser com salários mais baixos, piores".
(Marx, Trabalho assalariado e capital)
Os defensores desta "revolução digital" não deixam de exigir que seja
servida por "pessoal qualificado e flexível", quem não se adaptar
enfrentará "o desemprego e a desigualdade salarial". Nos planos do
patronato o conceito de segurança no emprego tem de ser eliminado. O
trabalhador tem de estar preparado para mudar de empresa, ter horário
parcial, estar no desemprego.
É uma "revolução tecnológica" que vê a flexibilidade laboral como uma
virtude. Mas para isto não era necessário nenhuma "revolução", foi desde
sempre o objetivo do grande capital. O patronato e os ideólogos da CIP
dizem que a relação com o trabalho tem de ser muito diferente do passado e
que "os sistemas de segurança social estão desatualizados". Mas isto é
afinal o retorno ao século XIX referido por Marx em O Capital: "
(segundo a burguesia) abaixamento do salário e longas horas de trabalho é
este o núcleo do comportamento racional e saudável que há de elevar o
operário à dignidade de consumidor racional".
O patronato parece consciente dos problemas sociais que esta louca
corrida ao aumento da taxa de lucro irá criar. A CIP considera
"fundamental preservar as reformas implementadas nos últimos anos, no
sentido de favorecer a competitividade das empresas e a sua adaptabilidade
às constantes alterações dos mercados, bem como avançar com novas medidas
que reforcem esse objetivo", as alterações ao Código do Trabalho devem ser
"absolutamente irreversíveis".
Por outras palavras, a "virtude" laboral propugnada pela política de
direita consiste no fim da contratação coletiva, na precariedade
permanente. Como disse Engels: "com o capitalismo a insegurança (dos
trabalhadores) aumenta sempre. (Critica ao Programa de Erfurt).
Ora esta "revolução" tecnológica coloca o capital perante a perspetiva de
mais crise. Se o lucro não for utilizado na esfera produtiva é a crise, se
for utilizado corresponde a uma maior composição orgânica do capital e
daqui à baixa da taxa de lucro e à crise. Se não houver uma transferência
de rendimentos (salário direto e indireto) para os trabalhadores
acompanhado de planeamento económico temos desemprego e…crise.
Para evitar a queda da taxa de lucro o capitalismo procura lançar-se numa
insensata busca de "competitividade", assumida como um bem, mas que não é
outra coisa senão uma guerra mundial económica e financeira que o sistema
lança para sobreviver à sua decadência à custa dos trabalhadores e MPME.
O mais chocante é que para os defensores deste "progresso", não existem
pessoas dotadas de vontade e aspirações. Os trabalhadores têm de ser uma
espécie de "plasticina" moldada ao sabor de uns seres superiormente
iluminados que, como no fascismo, sabem "o que é melhor para Portugal e os
portugueses". Mas é evidente que não é possível qualquer progresso na base
de uma pretensa elite que se limita a reproduzir as últimas especulações
dos centros imperialistas.
Admitem contudo que a maior dificuldade para os seus planos é o
sindicalismo de classe. Assim, o ideal seria um Estado sem poder
democrático, sem sindicatos (ou sindicatos como a direção da UGT),
partidos cujo papel que lhes é atribuído é iludir as massas populares –
reprimi-las se necessário – e gerir os interesses da oligarquia,
servindo-se da austeridade para compensar tudo o que a "desmotiva".
3 - Um novo modo de produção pós-capitalista ou uma nova forma de
capitalismo.
Em "Utopia 14", Kurt Vonegut apresenta uma sociedade tecnologicamente
muito desenvolvida em que uma reduzida elite de técnicos comandava todos
os processos. À restante população, praticamente abandonada à sua sorte,
eram dados trabalhos desqualificados para a sua sobrevivência, como varrer
ruas, limpezas, etc. O livro trata da revolta destes seres "excedentes".
É perante o cenário da Utopia 14 que esta "economia digital" nos coloca.
Que espécie de sociedade resultará deste processo? O quê e em quem reside
o saber quando este estiver (quase) totalmente alojado nos circuitos dos
computadores?
Que aconteceria num sistema em que o capital variável (os trabalhadores)
fosse eliminado? Como disse Marx, sem operários o capital deixaria de ser
capital. Na expressão C' = c+v+m, se v= 0 também m=0 e a taxa de
mais-valia t = m/v viria t= 0/0, portanto uma indeterminação com valor
qualquer de zero a infinito. O levantamento desta indeterminação e o
cálculo de t dependerá da análise das funções m e v que contudo não
podem considerar-se contínuas e lineares (erro habitual na econometria),
dado que dependem de factores políticos, económicos (crises) sociais
(lutas dos trabalhadores).
Sem aprofundar esta questão podemos considerar que uma sociedade
globalmente sem intervenção de trabalho humano é um absurdo. Porém, se em
capitalismo é impossível v=0 e m=0, podemos admitir uma sociedade em que
embora haja trabalho humano sejam v=0 e m=0, será a sociedade comunista,
embora tal não se verifique ainda no socialismo.
Em termos capitalistas, certas empresas e certos sectores intensificarão
mais que outros a automação dos processos, obtendo maiores taxas de
lucro, o que contudo só será possível durante um limitado espaço de tempo
à medida que as de menor produtividade desapareçam. Como se sabe o
crescimento do capital constante impõe a nível macroeconómico a descida da
taxa de lucro.
Mas para haver lucro é preciso haver quem compre e a questão é: quem
compra produtos à medida que se reduz a força de trabalho? Claro que
haverá sempre trabalho passado incorporado nos equipamentos, na
configuração dos sistemas, na I e D, na avaliação de aspetos da qualidade
Estamos porém perante um cenário idêntico ao de "Utopia 14", uma sociedade
que se afasta do anterior quadro capitalista e penetra num caos de
sobreprodução, guerras comerciais e tecnológicas, em que grandes TN
sobrenadam num oceano de pobreza e desigualdades, mesmo nos países
dominantes, levando ao limite os cenários e situações que se têm agravado
constantemente.
4 – Economia política e política económica
O neoliberalismo eliminou a economia política não só do seu léxico,
também da sua maneira de pensar, reduzindo a política, e portanto a
sociologia e a própria democracia, a técnicas supostamente perfeitas e sem
alternativa, camuflando políticas conservadoras e reacionárias.
Não podemos confundir economia política com políticas económicas. Para o
marxismo a economia política estuda as leis do desenvolvimento das
relações de produção e de distribuição. É a partir daqui que a política
económica estabelece os seus objetivos.
Não são apelos e boas intenções metafísicas para contentar os "mercados",
que resolverão quaisquer problemas económicos e sociais, pelo contrário
têm-nos agravado. A implementação dos processos tecnológicos tem de ser
avaliada nas consequências para as pessoas, para a sociedade em geral,
para os povos. Para que o DT não cause desemprego, desigualdades, crises,
é necessário que seja suportado por uma estrutura económica e social
coerente, e isto é do domínio da economia política.
Para a social-democracia a luta de classes e a exploração capitalista
seria substituída pela "qualificação", ou seja: uma categoria secundária,
a profissional, é sobreposta à categoria fundamental: a condição
proletária. Ora o que se tem verificado é que dentro do sistema
capitalista a formação representa a disponibilidade de força de trabalho
mais qualificada e mais barata. Entre 2011 e 2015 o salário médio dos
jovens licenciados (25-34 anos) reduziu-se 12,4%. [3]
Será correto dizer que o DT provoca o desemprego? Pode provocar, como
pode provocar poluição e degradação do ambiente. Pode provocar, mas
também pode evitar, reduzir, melhorar. O problema não são as tecnologias
em si mesmas, mas o sistema económico e social que as utiliza, portanto as
formas de economia política adotadas.
As tecnologias de elevada produtividade (um máximo de produção para um
mínimo de trabalho) exigem consumo massivo. Mas o consumo exige que a
riqueza produzida entre rapidamente no circuito de distribuição por
acrescida repartição de riqueza. O planeamento económico e a
redistribuição do rendimento são fundamentais.
Por consequência, o DT não só permite como exige para o progresso atual e
futuro, a melhoria da qualidade de vida, a eliminação da pobreza, a
difusão da cultura, a redução do tempo de trabalho, uma maior abundância
de bens e serviços para as camadas trabalhadoras. No sistema capitalista
estes objetivos tornam-se contraditórios.
O DT tem de ser considerado não só uma forma de criação de riqueza mas um
fenómeno cultural, e desta forma incentivado, protegido e difundido. O
apoio às atividades de I e DT significa prestigiar o trabalho dos que se
dedicam a estas atividades.
Um Plano de DT não é apenas uma prioridade é uma emergência. O DT terá de
fazer-se em função das necessidades sociais e não da maximização do lucro.
O DT torna ainda mais evidente a necessidade de planificação económica em
função dos benefícios sociais.
Para o capitalismo o DT é necessário para obstar à queda da taxa de
lucro, mas é também factor de crise; para o socialismo o DT é condição
necessária à passagem a fases socialmente superiores da sua própria
evolução.
Ver também:
Tecnologia: uma questão política central
A digitalização da indústria e dos serviços
[1] RAMS : Reliability, Availability, Maintainability and Safety. Um dos
elementos base deste cálculo é o MTBF, Mean Time Between Failures
[2] The Dying Institutions Of Western Civilization , Paul C. Roberts
[3] INE, Inquérito ao emprego
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/v_carvalho/forma_modo_producao.html
14/3/2017
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