sábado, 29 de julho de 2017

   A CIA e a contra-revolução na Venezuela



 
       por Atilio A. Borón [*] 

       A sociedade capitalista tem como um dos seus traços principais a
       opacidade. Se nos antigos modos de produção pré-capitalistas a opressão e
      a exploração dos povos saltava à vista e adquiria inclusive uma expressão
      formal e institucional com hierarquias e poderes, no capitalismo prevalece
      a obscuridade e, com ela, o desconcerto e a confusão. Foi Marx que com a
      descoberta da mais-valia descobriu o véu que ocultava a exploração a que
       eram submetidos os trabalhadores "livres", emancipados do jugo medieval.
      E foi ele também que denunciou o fetichismo da mercadoria numa sociedade
      onde tudo se converte em mercadoria e portanto tudo se apresenta de modo
      fantasmagórico perante os olhos da população.
       O que acaba de ser dito vem a propósito da negação do papel da CIA na
      vida política dos países latino-americanos, ainda que não só neles. O seu
      activismo permanente é inevitável e não pode passar desapercebido diante
      de um olhar minimamente atento. Apesar disso, quando se fala da crise na
      Venezuela – para tomar o exemplo que agora nos preocupa – e das ameaças
      que pairam sobre esse país irmão, nunca se nomeia a "Agência", salvo
      poucas e isoladas excepções. A confusão que com a sua opacidade e seu
      fetichismo gera a sociedade capitalista faz novas vítimas no campo da
      esquerda. Não deveria surpreender que a direita encoraje este encobrimento
      da CIA. A imprensa hegemónica – na realidade, a imprensa corrupta e
      canalha – nunca a menciona. É um tema tabu para estes impostores seriais.
      Nem a ela, a CIA, nem a nenhuma das outras quinze agências que constituem
      em conjunto o que nos Estados Unidos se denomina amavelmente como
      "comunidade de inteligência". Eufemismos à parte, é um terrível
      conglomerado de dezasseis bandos criminosos financiados com fundos do
      Congresso dos Estados Unidos e cuja missão é dupla: recolher e analisar
      informação e, sobretudo, intervir activamente nos diversos cenários
      nacionais com uma amplitude acção que vai desde o manejo e a manipulação
      da informação e o controle dos meios de comunicação até a captação de
      líderes sociais, funcionários e políticos, a criação de organizações de
      fachada dissimuladas como inocentes e insuspeitas ONGs dedicadas a causa
      humanitárias inobjectáveis até ao assassinato de líderes sociais e
      políticos incómodos e a infiltração – e destruição – em toda classe de
      organizações populares. Vários arrependidos e enojados ex-agentes da CIA
      descreveram tudo isto com todo pormenor, com nomes e datas, o que me
      dispensa de discorrer sobre o tema. [1]
       Que a direita seja cúmplice do encobrimento do protagonismo dos aparelhos
      de inteligência dos Estados Unidos é compreensível. Faz parte do mesmo
      bando e protege com um muro de silêncio seus apaniguados e sicários. O que
      é absolutamente incompreensível é que representantes de alguns sectores da
       esquerda – nomeadamente o trotsquismo –, o progressismo e certa
       intelectualidade presa nos embriagantes vapores do pós-modernismo
       inscreva-se neste negacionismo em que não só a CIA desaparece do
       horizonte da visibilidade como também o imperialismo. Estas duas
       palavras, CIA e imperialismo, nem por sombras irrompem nos numerosos
      textos escritos por personagens daquelas correntes acerca do drama que
      hoje se desenvolve na Venezuela e que, diante dos seus olhos, parece ter
      como único responsável o governo bolivariano. Aqueles que se inscrevem
       nessa errónea – insanavelmente errónea – perspectiva de interpretação
      esquecem-se também da luta de classes, que brilha pela sua ausência
      sobretudo nas análises de supostos marxistas que não são senão
      "marxólogos", isto é, cultos doutores embriagados pelas palavras, como por
      vezes dizia Trotsky, mas que não compreendem a teoria nem muito menos a
      metodologia na análise marxista e por isso, diante dos ataques que sofre a
       revolução bolivariana, exibem uma gélida indiferença que, de facto,
      converte-se em complacência com os planos reaccionários do império.
       Toda esta horrível confusão, estimulada como dizíamos a princípio pela
      própria natureza da sociedade capitalista, dissipa-se quando se recorda as
      infindáveis intervenções criminosas que a CIA executou na América Latina
      (e onde fosse necessário) para desestabilizar processos reformistas ou
       revolucionários. Uma enumeração sumária a voo de pássaro, inevitavelmente
      incompleta, destacaria o papel sinistro desempenhado pela "Agência" na
      Guatemala, em 1954, ao derrubar o governo de Jacobo Arbenz organizando uma
      invasão dirigida por um coronel mercenário, Carlos Castillo Armas, o qual,
      depois de fazer o que lhe fora ordenado, foi assassinado três anos depois
      no Palácio Presidencial. Continuemos: o Haiti, em 1959, sustentando o
      então ameaçado regime de François Duvalier e garantindo a perpetuidade e o
      apoio a essa dinastia criminosa até 1986. Nem falemos do envolvimento
      intenso da "Agência" em Cuba, desde o princípio das Revolução Cubana,
      actividade que continua até o dia de hoje e que regista como um dos seus
      feitos principais a invasão de Playa Girón em 1961. Ou no Brasil, em 1964,
      assumindo um papel activíssimo no golpe militar que derrubou o governo de
       João Goulart e afundou esse país sul-americano numa ditadura brutal que
      perdurou por duas décadas. Em Santo Domingo, República Dominicana, em
      1965, apoiando a intervenção dos  marines  lutando contra os patriotas
      dirigidos pelo coronel Francisco Caamaño Deño. Na Bolívia, em 1967,
      organizando a caça do Che e ordenando a sua execução covarde depois de
      caído ferido e capturado em combate. A CIA permaneceu no terreno e diante
      da radicalização política que se verificava na Bolívia conspirou para
      derrubar o governo de Juan J. Torres em 1971. No Uruguai, em 1969, quando
      a CIA enviou Dan Mitrione, um especialista em técnicas de tortura, para
      treinar os militares e a polícia a arrancar confissões aos Tupamaros.
      Mitrione foi justiçado por estes em 1970, mas a ditadura instalada pela
      "embaixada" desde 1969 perdurou até 1985. No Chile, desde princípios dos
      anos sessenta e intensificando a sua acção com a cumplicidade do governo
       democrata-cristão de Eduardo Frei. Na mesma noite em que Salvador Allende
      ganhou as eleições presidenciais de 4 de Setembro de 1970 o presidente
      Richard Nixon convocou com urgência o Conselho Nacional de Segurança e
      ordenou à CIA que impedisse por todos os meios a posse do líder chileno e,
      no caso de isso ser impossível, não poupar esforços nem dinheiro para
      derrubá-lo. "Nem um parafuso nem uma porca para o Chile" disse esse
      labrego que a seguir seria despejado da Casa Branca por um julgamento
      político. Na Argentina, em 1976, a CIA e a embaixada foram colaboradores
      activos da ditadura genocida do general Jorge R. Videla, contando
      inclusive com a ajuda descarada e o conselho do então secretário de Estado
      Henry Kissinger. Na Nicarágua, sustentando contra ventos e maré a ditadura
      somozista e, a partir do triunfo do sandinismo, organizado os "contra"
       recorrendo inclusive ao tráfico ilegal de armas e drogas a partir da
       própria Casa Branca para alcançar seus objectivos. Em El Salvador, desde
      1980, para conter o avanço da guerrilha da Frente Farabundo Marti de
      Libertação Nacional, envolvendo-se activamente durante os doze anos que
      durou a guerra civil a qual deixou um saldo de mais de 75 mil mortos. Em
      Granada, liquidando o governo marxista de Maurice Bishop. No Panamá, 1989,
      invasão orquestrada pela CIA para derrubar Manuel Noriega, um ex-agente
      que pensou poder tornar-se independente dos seus chefes, provocando pelo
      menos 3.000 mortos na população. No Peru, a partir de 1990, a CIA
      colaborou com o presidente Alberto Fujimori e seu chefe do Serviço de
      Inteligência, Vladimiro Montesinos, para organizar forças paramilitares a
      fim de combater o Sendero Luminoso, deixando um saldo fúnebre de milhares
      de vítimas. Dados estes antecedentes, alguém poderia pensar que a CIA
      permaneceu de braços cruzados diante da presença das FARC-EP e do ELN na
      Colômbia, onde os Estados Unidos contam com sete bases militares para a
      instalação das suas forças? Ou que não actua sistematicamente para corroer
       as bases de sustentação de governos como os de Evo Morales e, na altura,
      de Rafael Moreno e hoje de Lenin Moreno. O que se retirou para quartéis de
      inverno e deixou de actuar na Argentina, Brasil e em toda esta imensa
      região constituída pela América Latina e o Caribe, considerada como justa
      razão como a reserva estratégica do império. Só por um cúmulo de
      ignorância ou ingenuidade poderia pensar-se em tal coisa.
       Portanto, será alguém se pode surpreender com o protagonismo que a CIA
      está a ter hoje na Venezuela, o "ponto quente" do hemisfério ocidental?
      Podem os dirigentes norte-americanos – os reais, o  deep state  como dizem
      seus observadores mais lúcidos, não as carrancas de proa que despacham na
      Casa Branca – ser tão ineptos que se desinteressem da sorte que possa
      correr a luta colocada contra a Revolução Bolivariana no país que conta
      com a maiores reservas provadas de petróleo do mundo? Pode ser que para o
      trotsquismo latino-americano e outras correntes igualmente extraviadas na
      estratosfera política o MUD e o chavismo "sejam as mesma coisa" e [por
       isso] não provoque nessas correntes senão uma indiferença suicida. Mas os
      administradores imperiais, que sabem o que está em jogo, estão conscientes
      de que a única opção que têm para apoderar-se do petróleo venezuelano –
      objectivo não declarado mas excludente de Washington – é acabar com o
       governo de Nicolás Maduro deixando de lado qualquer escrúpulo a fim de
      obter esse resultado, desde queimar pessoas vivas a incendiar hospitais e
      infantários. Sabem também que a "mudança de regime" na Venezuela seria um
      triunfo extraordinário do imperialismo norte-americano porque, ao instalar
      em Caracas seus peões e lacaios, os mesmos que se orgulham da sua condição
      de lambe botas do império, esse país se converteria de facto num
      protectorado norte-americano, montando uma farsa pseudo-democrática – como
      a que já existe em vários países da região – que só uma nova onda
      revolucionária poderia chegar a desbaratar. E diante dessa opção, império
      versus chavismo, não há neutralidade que valha. Não nos é indiferente, não
      pode nos ser indiferente uma coisa ou a outra! Porque por mais defeitos,
      erros e deformações que haja sofrido o processo iniciado por Chávez em
      1999; por mais responsabilidade que tenha o presidente Nicolás Maduro em
      evitar a desestabilização do governo, os acertos históricos do chavismo
      superam amplamente seus desacertos e pô-lo a salvo da agressão
      norte-americana e dos seus serventuários é uma obrigação moral e política
      inescapável para aqueles que dizem defender o socialismo, a
      autodeterminação nacional e a revolução anti-capitalista. E Isto, nada
      menos que isto, é o que está em jogo nos próximos dias na terra de Bolívar
      e de Chávez e, nesta encruzilhada, ninguém pode apelar à neutralidade ou à
      indiferença. Seria bom recordar a advertência que Dante colocou à entrada
      do Sétimo Círculo do Inferno: "Este lugar, o mais horrendo e ardente do
       Inferno, está reservado para aqueles que em tempos de crise moral optaram
      pela neutralidade". Tomar nota.

      26/Julho/2017
       [1] Ver John Perkins,  Confesiones de un gángster económico. La cara
      oculta del imperialismo norteamericano  (Barcelona: Ediciones Urano,
      2005). Edição original: Título original:  Confessions of an Economic Hit
      Man  First publicado por Berrett-Koehler Publishers, Inc., San Francisco,
      CA, USA.   O livro de Perkins pode ser descarregado em 
      resistir.info/livros/livros.html .   Ver também o texto pioneiro de Philip
      Agee, de 1975,  Inside the company,  publicado na Argentina sob o título
       La CIA por dentro. Diario de un espía  (Buenos Aires: Editorial
      Sudamericana 1987) 
      [*] Sociólogo, argentino.
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/venezuela/boron_26jul17.html
28/7/2017

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