segunda-feira, 25 de dezembro de 2017
Decifra-me ou te devoro: reflexões sobre a crise atual e as tarefas da esquerda revolucionária no Brasil
Edmilson Costa – Secretário Geral do PCB
O Brasil vive atualmente uma crise completa, a mais grave desde os momentos
finais da ditadura e o início do processo de democratização em meados dos anos
80. Trata-se de um processo no qual converge um conjunto de vetores que confluem
contraditoriamente retroalimentando-se e, ao mesmo tempo, repelindo-se
mutuamente, pois todos os agentes que influenciam essas variáveis buscam
encontrar saídas para os problemas colocados pela conjuntura, mas até agora,
apesar da brutal ofensiva do capital, ainda não se verificou um desfecho
definitivo da crise. Isso se explica em função da diversidade de projetos das
várias frações burguesas sobre os rumos da conjuntura aberta com o impeachment
da presidente Dilma, da impopularidade do governo golpista, assim como da
resistência da população e, especialmente, do temor de setores da burguesia de
um levante social provocado pela dramática conjuntura da qual não têm controle
pleno.
Forja-se assim um ambiente complexo, confuso e de difícil compreensão plena da
realidade. Nessa conjuntura, os diversos atores sociais e políticos buscam
saídas para a crise de acordo com seus interesses, mas as saídas são todas
problemáticas, pois envolve um conjunto de problemas de difícil solução na
conjuntura atual, tais como o rompimento de pactos institucionais amadurecidos
na consciência popular, como direitos e garantias que vêm desde a década de 40
do século passado, outros inscritos na constituição de 1988, além da necessidade
de uma derrota completa das forças populares, o que tem se mostrado problemático
na conjuntura atual. Num ambiente dessa ordem, deve-se levar em conta ainda que
mudanças institucionais bruscas, sem apoio da sociedade, podem desatar forças
que estavam latentes nos subterrâneos sociais e conflagrações sociais que não
estavam presentes ainda na subjetividade dos trabalhadores e da juventude e que
podem ficar fora de controle em função dos processos mais profundos da luta de
classes que tende a emergir de situações desse tipo, muitas delas sequer
imaginados quando se iniciou a crise.
Não se pode esquecer que cada uma das variáveis da conjuntura atual carrega
consigo elementos explosivos que, ao emergir bruscamente na superfície da vida
política, social e econômica, pode fazer surgir um conjunto de fenômenos
imponderáveis, de difícil controle, tanto para quem sempre esteve acostumado a
resolver os problemas sociais e políticos pelos velhos esquemas de dominação
(cooptação ou repressão), mas também para quem está debutando na luta de
classes. Gramsci dizia que nos intervalos em que o velho está morrendo e o novo
está nascendo, mas ainda não se consolidou, aparecem os monstros, que podem ser
expressos nos fatos e acontecimentos mais bizarros, imprevisíveis ou
imponderáveis, nunca vistos em tempos normais, mas também nessas conjunturas
pode se forjar o novo e também emergir dos subterrâneos da luta de classes
movimentos sociais e políticos até então inimagináveis pelos atores sociais e
políticos em disputa.
Nós estamos vivendo no Brasil um período típico descrito pelo célebre pensador
italiano, mas com um conjunto de características específicas de um país de
capitalismo maduro, com uma sociedade complexa, majoritariamente urbana,
concentrada nas grandes metrópoles, com perversa distribuição de renda e
elevados níveis de pobreza e miséria social, fruto de uma economia de baixos
salários e da truculência com que as classes dominantes sempre trataram a
questão social. Singularidades históricas também levaram à formação de uma
classe dominante antipopular e antidemocrática, viciada no autoritarismo, fruto
de uma tradição de mais de três séculos de escravidão, o que a torna resistente
a qualquer processo de mudança, por menor que seja. O acirramento da luta de
classes em sociedades com essas características (com o proletariado em um nível
de organização ainda insuficiente para realizar as mudanças e sem uma vanguarda
com força para avançar no sentido das transformações sociais) se expressa de
maneira diferente das lutas tradicionais do proletariado. É só observarmos as
batalhas diárias nos bairros, a repressão brutal contra os pobres, as ocupações
de terrenos nos centros urbanos e rurais, mobilizações mais organizadas nas
ruas, mas sem ainda a presença definitiva do proletariado no comando da luta.
De qualquer forma, em função dos problemas que se acrescentaram àqueles que
causaram as extraordinárias jornadas de lutas de 2013, da crise política
econômica e social que se estabeleceu nos últimos anos, do golpe parlamentar de
2016 e da ofensiva contra os trabalhadores e aposentados, além dos escândalos de
corrupção envolvendo toda a institucionalidade, acredito que estão maduras todas
as condições para um levante social no Brasil. Como há uma debilidade de
organização popular, isso pode acontecer ainda com elevado nível de
espontaneidade, não no mesmo nível que em 2013, tendo em vista o aprendizado
político das massas, mas ainda sem a direção de uma vanguarda classista e
revolucionária, o que significa que novamente as forças conservadoras farão tudo
para tentar manipular a indignação popular. Portanto, as forças revolucionárias
e classistas devem intensificar o trabalho de base e seus vínculos com os
trabalhadores, a juventude e o povo pobre dos bairros para disputar e organizar
a indignação popular, que em algum momento não muito distante poderá explodir
nas ruas.
As razões objetivas para o levante social
É necessário entender, como elemento mais de fundo de uma revolta social, a
contradição que há entre o nível de desenvolvimento das forças produtivas no
Brasil e as condições sociais da população. O Brasil está entre as 10 maiores
economias do mundo: possui um parque industrial integrado em condições de suprir
de bens e serviços a população. Tem ainda um setor de serviços, de comércio e de
finanças bem desenvolvidos, além de um setor agropecuário em plenas condições
não só de suprir o mercado interno, mas também de gerar excedentes para
exportação. Possui também terra e água em abundância, sol o ano inteiro, além de
praticamente todas as matérias-primas para a produção nacional. Mas é importante
ressaltar que, apesar do grau de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, em
sua essência, a economia está subordinada aos centros do capitalismo
internacional e seus ramos mais dinâmicos são controlados pelo capital
estrangeiro, com a parte mais orgânica da burguesia associada ao capital
internacional.
Mas o conjunto das forças produtivas construídas no Brasil está em contradições
com as relações sociais de produção atrasadas, um mercado interno restrito, uma
economia de baixos salários e a miséria social. O Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH) do Brasil é o 75º do mundo, fato que se assemelha aos países mais
pobres da África e América Latina e Ásia. Em algum momento, essa contradição
emergirá de forma explosiva, pelos seguintes motivos:
Nas grandes metrópoles e, especialmente nos bairros periféricos, está o
contraponto do grande desenvolvimento do capital no Brasil, que é um
proletariado numeroso, constituído de mais de 30 milhões de trabalhadores
ligados à produção e cerca de 60 milhões de assalariados, trabalhadores
precarizados ou desempregados. Trata-se de um proletariado com mais instrução
e nível técnico que os trabalhadores da década de 1970, sem ainda sem ter
passado pelas escolas da luta de classes. Mas é importante ressaltar que o
processo de urbanização, concentração empresarial, instrução dos assalariados,
além das precárias condições de vida da população constituem um caldo de
cultura de insatisfação que pode emergir à superfície com enorme potencial
explosivo, muito maior que em junho de 2013.
A riqueza e a pobreza travam uma luta surda e dramática nas grandes metrópoles
do país, especialmente naquelas do Sudeste, onde o capitalismo é mais
desenvolvido e onde a opulência da burguesia e a miséria da população são
visíveis para as grandes massas. Trata-se de uma situação que se assemelha a
uma guerra civil não declarada, com mais de 60 mil assassinatos por ano, em
sua grande maioria de pobres, pretos e periféricos. Parcela expressiva desse
contingente é assassinada nas favelas e periferias das cidades pelas polícias
militares que, sob o pretexto de combater o tráfico de drogas e pacificar as
comunidades, impõem o terror nos bairros, tratam os pobres como inimigos, agem
com truculência nas invasões de moradias e executam jovens e moradores com
enorme impunidade.
Os serviços públicos em geral, especialmente transporte, saúde e educação são
terrivelmente precários e levam à exaustão a paciência da população. Um
trabalhador gasta cerca de 3 horas ou mais no transporte para se locomover de
casa para o trabalho e voltar à sua residência, dentro de ônibus velhos,
desconfortáveis, lotados e sempre atrasados. A saúde pública prestada à
população é vexaminosa, com longas filas nos atendimentos de postos de saúde e
hospitais, com doentes em macas no chão, além da falta de remédios e pessoal
no atendimento. A educação foi mercantilizada: dois terços dos estudantes
universitários estudam no ensino privado e o ensino médio público é uma
calamidade. Tudo isso veio à tona em 2013, mas em vez dos problemas serem
solucionados, o governo resolveu radicalizar na precarização contra a
população.
As extraordinárias jornadas de luta de 2013 revelaram de forma explosiva esse
conjunto de problemas que todos sentiam, mas que ainda não tinham se tornado
público de forma coletiva. De maneira surpreendente, tendo como bandeira a
revogação do aumento das passagens do transporte público, centenas de milhares
de jovens, além de outros milhares de proletários precarizados, saíram às ruas
durante vários dias em mais de 600 cidades do país, enfrentaram a repressão
policial e derrotaram os principais governos estaduais e municipais. As
manifestações cresciam à medida em que a repressão aumentava e se
transformaram em verdadeiro levante social, o que levou o Congresso a prometer
um conjunto de medidas favoráveis à juventude. O próprio governo federal se
viu na obrigação de reconhecer a força do movimento e prometeu reformas para
atender as reivindicações, o que evidentemente não foi cumprido quando o
movimento arrefeceu. A revolta de 2013 já vinha sendo desenvolvida nos
subterrâneos da luta de classes: a luta contra o aumento das passagens foi
apenas o estopim de um processo mais profundo que estava amadurecendo.
Com a crise econômica que se abateu sobre o Brasil, cuja recessão já dura
quatro anos, vieram se juntar ao estoque de problemas identificados
anteriormente, novas e dramáticas questões sociais: cerca de 20 milhões de
desempregados (13 milhões que perderam o emprego de carteira assinada e mais
sete milhões que já não procuram mais emprego e não constam das listas de
desemprego), aumento da precariedade dos serviços públicos e queda na renda.
Levando-se em conta que cerca de uma a duas pessoas dependem de cada
desempregado, temos algo em torno de 40 a 50 milhões de pessoas em situação
social dramática. Imaginem uma conjuntura de prolongada recessão, com corte
dos gastos sociais, um ajuste predatório por 20 anos, degradação dos serviços
públicos e adicione a isso 40 a 50 milhões de pessoas desempregadas, sem renda
e próximo ao desespero. Numa situação dessa ordem torna-se fácil imaginar o
caldeirão social em efervescência que está sendo preparado no Brasil.
Em meio à estagnação do PIB e o desemprego, o governo vem propagandeando, como
compensação, constantes quedas na inflação, o que é explicável pelo próprio
ambiente recessivo do país. No entanto, a redução do processo inflacionário
para a população não é percebida como tem sido anunciado pelo governo, pois
ocorreu aumento generalizado dos preços administrados, como telefone, água,
energia elétrica e, especialmente, a gasolina e o gás de cozinha, esses dois
últimos em função dos constantes aumentos determinados pela nova gestão de
preços da Petrobrás. Para uma população com renda decrescente, com suas contas
aumentando, esse é mais um motivo para o crescimento da insatisfação popular
contra o governo. Não é à toa que os índices de popularidades de Temer nunca
ultrapassam a 5%, o que em qualquer país do mundo levaria o governo à
renúncia.
Para dramatizar ainda mais a situação, o governo se faz de surdo e avança com
a agenda neoliberal predatória, acirrando o descontentamento e a luta de
classes. Parece que as classes dominantes brasileiras resolveram brincar com
fogo. Já aprovaram o ajuste fiscal por 20 anos, que representa a barbaridade
social mais profunda que um governo já fez. Aprovaram ainda uma reforma
trabalhista que retroage os direitos dos trabalhadores para o período da
República Velha, quando não existiam direitos regulados na legislação
brasileira. Aprovaram também a lei das terceirizações, que precariza as
relações trabalhistas e leva a insegurança ao conjunto dos trabalhadores.
Agora, para completar a barbárie social, estão tentando de todas as formas
aprovar a reforma da previdência, que praticamente inviabiliza as
aposentadorias para a maioria dos trabalhadores e reduz o salário dos
aposentados, tudo isso para favorecer o grande capital, especialmente os
grandes bancos, seguradores e empresas de planos privados de aposentadoria.
A crise política, a corrupção e a desmoralização do sistema
A esse conjunto de problemas pode ser adicionada ainda uma crise política tão
profunda que está pondo em questionamento toda a credibilidade do sistema
político brasileiro, a partir das denúncias de corrupção que envolve não apenas
o Parlamento, os principais grupos empresariais do país, setores do Executivo
federal, estadual e municipal e parte do Judiciário. Em outras palavras, aos
olhos da população, todo o sistema está podre, afinal, cerca de 190
parlamentares estão indiciados na Justiça, a maior parte dos ministros e
ex-ministros, o próprio presidente da República, além de governadores,
prefeitos, dirigentes políticos e empresários das principais empresas. Quando
mais se aprofundam as investigações, mais a sociedade toma conhecimento de novas
falcatruas envolvendo personagens até então tidos como ilibados. Em síntese,
estamos diante do governo mais impopular, corrupto e odiado pela população
brasileira de todo o período republicano.
A conjuntura política está criando uma espécie de senso comum no imaginário
popular de que é preciso urgentemente uma faxina geral no país, muito embora a
população ainda não tenha encontrado forças para se expressar coletivamente,
superar a velha ordem e construir um novo rumo para a nação. Quais são os
principais elementos da crise política que, combinados com os elementos
objetivos da crise econômica e social, podem levar a uma explosão social contra
o sistema político brasileiro? Um conjunto de variáveis conflui para a
compreensão da dinâmica da crise política: a crise sistêmica global e seus
impactos no Brasil; o fim de um longo ciclo de lutas sociais e políticas no país
e as denúncias de corrupção que envolvem toda a institucionalidade e os grandes
conglomerados empresariais. Vejamos mais detalhadamente essas variáveis da
conjuntura explosiva que vivemos no Brasil:
A crise sistêmica global vem castigando o capitalismo há cerca de 10 anos e
até agora os gestores do capital ainda não encontraram uma saída para a
estabilização e retomada do crescimento nas economias centrais. Essa crise
impactou fortemente no Brasil e levou a burguesia a descartar o PT e seus
satélites e implantar um governo puro sangue com o objetivo de rebaixar os
salários, cortar direitos e gastos sociais e disciplinar o trabalho. A
burguesia descartou o PT porque este já não conseguia administrar o capital
como anteriormente, em função do aprofundamento da crise econômica e porque o
capital necessitava de ajustes radicais e imediatos, medida que o PT, em
função de sua base social, só poderia realizar de maneira lenta e gradual.
Além disso, o PT também já não controlava mais as massas, uma vez que as
jornadas de junho de 2013 foram realizadas por fora dos movimentos sociais que
o PT controlava. Dessa forma, o PT já não era funcional para capital e por
isso foi descartado de maneira desmoralizante.
O Brasil também está vivendo o final de um longo ciclo de lutas sociais e
políticas que se iniciaram com as greves do ABC no final dos anos 70 do século
passado e fecharam dramaticamente com o impeachment da presidente Dilma. Esse
ciclo foi profundamente pedagógico porque demonstrou mais uma vez o fracasso e
a desmoralização da política de conciliação de classes. Por mais que o PT e
seus satélites tenham governado essencialmente para o capital, com políticas
compensatórias que não representaram sequer 20% dos lucros dos rentistas, a
burguesia resolveu destituí-los quando achou necessário. Esse ciclo também
mostrou que a democracia representativa só interessa à burguesia quando está a
serviços de seus interesses. Quando é necessário mudar os rumos da
institucionalidade, não hesita em criar pretextos e violar as regras que eles
mesmos fizeram. Demonstrou também que as eleições no Brasil são compradas
pelos grandes grupos econômico-financeiros, tanto no Executivo quanto do
Legislativo, e que o sistema eleitoral tem sido uma fechada para justificar os
interesses da burguesia.
A instituição de um governo puro sangue aprofundou a crise política porque os
golpistas, para angariar apoio da população, costumavam dizer que o obstáculo
para a retomada do crescimento, do emprego e da ética na política era
exatamente o governo do PT. No entanto, o governo instalado pelo capital,
especialmente o setor rentista, não resolveu nenhum dos problemas que
prometera resolver. Pelo contrário, a economia continuou em processo de
estagnação, o desemprego aumentou extraordinariamente, os gastos sociais foram
cortados de maneira drástica, o que precarizou ainda mais os serviços
públicos, além do fato de realizar um conjunto de contrarrefomas que vêm
destruindo toda a legislação conquistada pelos trabalhadores ao longo do
século XX. Muitos dos que apoiaram entusiasticamente a queda do governo
anterior, agora se sentem traídos diante das medidas tomadas pelo governo;
Para ampliar a crise de representatividade, a população foi tomando
conhecimento diariamente de que o governo que acabara de assaltar o poder em
Brasília era constituído por uma quadrilha muito mais envolvida na corrupção
que o governo anterior, a começar pelo presidente, considerado pela justiça o
chefe da organização criminosa, além de grande parte dos ministros,
governadores, prefeitos e assessores. Mas não é somente o Executivo: a
corrupção envolve os grandes industriais, empreiteiras, bancos, o agronegócio
e empresas de serviços em geral. Na prática, estes são os principais
corruptores e constituem-se no elo principal da cadeia de promiscuidade entre
o setor privado e o setor público. Em outras palavras, parafraseado a
linguagem do tráfico de drogas, os grandes empresários são os atacadistas
enquanto os políticos tradicionais são apenas os varejistas do tráfico, ou
seja, enquanto os empresários ganham rios de dinheiro com a dívida pública, as
renúncias fiscais e os lucros monopolistas, o lumpesinato político é pago com
as sobras para operar seus negócios no Legislativo e no Executivo.
Por que o governo ainda não caiu?
As pessoas perguntam com razão, tanto no Brasil quanto no exterior, como pode se
manter no poder um governo com menos de 5% de popularidade, odiado pelo povo,
envolvido comprovadamente até o tutano com a corrupção, com ministros,
ex-ministros e assessores flagrados com malas de dinheiro em seu poder? E mais,
como um governo nessas condições tem capacidade de realizar a mais dura ofensiva
contra os trabalhadores, a juventude o povo dos bairros sem que haja uma reação
popular? Realmente, esse é um dos paradigmas mais complexos da crise brasileira
para se decifrar, mas tem uma explicação plausível, por dois motivos principais:
Esse governo ainda não caiu porque é funcional para o capital enquanto estiver
fazendo o trabalho sujo, ou seja, enquanto continuar implantando a agenda
neoliberal que toda a classe dominante almeja. Mesmo que haja divergências
entre as frações da classe burguesa sobre quem apoiar em 2018 ou mesmo diante
da possibilidade de uma explosão social, todos eles estão unidos com relação à
implantação das contrarreformas, porque trata-se de uma burguesia inteiramente
afinada com os interesses do capital internacional. É só comparar o programa
neoliberal que está sendo implantado em várias partes do mundo com a agenda da
Confederação Nacional da Indústria Brasileira. Enquanto não houver a
emergência de um movimento social com força suficiente para mudar a
conjuntura, eles vão continuar dando sustentação ao governo,
As organizações do movimento sindical e do movimento popular que cresceram e
se desenvolveram com o velho ciclo estão muito mais interessadas nas eleições
de 2018 do que com o movimento das ruas. Tentam criar a ilusão de que, se Lula
voltar à presidência, fará um governo diferente porque aprendeu com o passado.
É pura ilusão mesmo, pois se Lula ganhar novamente a presidência fará um
governo pior que o anterior, em função das condições objetivas da conjuntura e
das alianças com as mesmas forças do passado que está costurando agora. Além
disso, essas direções sindicais perderam a ligação com as bases e atualmente
lutam muito mais para manter os aparatos conquistados nos períodos em que
ainda lutavam do que efetivamente para mobilizar os trabalhadores e a
juventude para a luta nas ruas. Por isso, fazem corpo mole em todos os
processos de mobilizações e greves que vêm ocorrendo contra o governo. Já as
organizações do sindicalismo amarelo, muitas delas fundadas com dinheiro do
capital para se contrapor às então organizações classistas, sabotam
permanentemente as mobilizações e greves e só delas participam quando são
empurradas pelas bases.
Por sua vez, as organizações sindicais e movimentos populares classistas ainda
têm pouca influência no movimento social, já que os dois principais setores
identificados acima ainda controlam os aparatos sindicais e o dinheiro oriundo
do imposto sindical. Mas essas organizações tendem a se esgotar com o fim do
ciclo: as do campo petista porque são incapazes de fazer uma autocrítica do
período em que funcionaram como bombeiros da luta de classes e também porque
estão tão vinculadas com a institucionalidade que romper com esse padrão seria
o mesmo que decretar sua falência; as do sindicalismo amarelo porque o
acirramento da luta de classes os varrerá da conjuntura. Mesmo enfrentando as
máfias sindicais e os jagunços que esses dois polos sempre utilizam nas
eleições sindicais para se manter no poder, as organizações classistas vêm
crescendo, muito embora num nível aquém das necessidades da luta de classes no
Brasil. Essa transição levará certo tempo para ser concluída, mas é inevitável
a mudança na correlação de forças com a ascensão das lutas sociais.
Apesar do enorme grau de insatisfação da população com o governo, as
organizações revolucionárias e classistas ainda não conseguiram construir um
programa unificado e uma unidade orgânica que as possibilitassem atuar de
maneira unificada na conjuntura, de forma a transformar a indignação popular
em luta organizada e unificada contra o governo. Até agora as velhas
organizações do ciclo anterior, por terem mais recursos financeiros e os
aparatos sindicais, ainda exercem hegemonia sobre o formato e o destino das
lutas. Como não estão interessadas em derrubar o governo, mas apenas
desgastá-lo para facilitar a volta de Lula, fingem que lutam e assim prestam
um enorme desserviço ao enfrentamento efetivo com os golpistas. Só a firme
ascensão das lutas sociais pode mudar essa correlação de forças,
proporcionando que as forças revolucionárias e classistas assumam a direção do
movimento.
Um novo ciclo e as possibilidades
Além dessas questões, é importante ressaltar ainda que estamos iniciando um novo
ciclo de lutas sociais, que começou com as jornadas de junho de 2013 e prossegue
atualmente, mesmo com avanços e recuos, como é natural em qualquer ciclo de
lutas. Ao longo desse novo ciclo ocorreu uma série de lutas que mostraram a
disposição dos trabalhadores e da juventude para a mudança. Não se podem
esquecer as ocupações dos secundaristas, jovens entre 13 e 17 anos, sem
experiência na luta de classes, que derrotaram o governo estadual mais
reacionário do país, há mais de 20 anos no poder no Estado de São Paulo e
conseguiram ainda a façanha de unificar toda a esquerda e as forças
progressistas em torno dessa luta. Poucos acreditavam que adolescentes tivessem
condições de realizar tamanha façanha, mas eles ousaram lutar e conseguiram
vencer.
Posteriormente, seguiram-se ocupações de escolas, universidades e institutos
federais em todo o Brasil, agora incorporando a luta contra o governo usurpador
de Michel Temer. Ocorreram ainda manifestações de massa espontâneas contra o
governo como na inauguração das olimpíadas e nos estádios de futebol. Também
foram realizadas manifestações de rua e dias nacionais de manifestações e
greves, até chegarmos ao ponto de realizar a maior greve geral do país, com
cerca de 40 milhões de trabalhadores paralisando as atividades. Em seguida, o
movimento sofreu grande derrota quando outra greve geral marcada para o dia 30
de junho fracassou em função da traição do sindicalismo amarelo e do corpo mole
das centrais que outrora foram combativas e agora estão mais preocupadas com as
eleições de 2018 do que com o ascenso do movimento operário e popular.
Mas a luta de classes é assim mesmo, tem avanços e recuos. O importante é
entender o sentido maior do movimento e suas perspectivas. Em algum momento as
massas retomarão as lutas porque um ciclo quando se abre tem três
possibilidades: pode ser derrotado, cooptado ou pode vencer. No Brasil já
tivemos exemplos clássicos desses processos: o ciclo que se abriu no início da
década de 60 do século passado, com as lutas dos trabalhadores urbanos, dos
estudantes e dos camponeses, foi derrotado pelo golpe militar de 1964. O outro
ciclo que se iniciou com as greves do ABC e que contribuiu para a derrota da
ditadura e formou organizações sociais e políticos que enfrentaram bravamente o
capital, foi cooptado nos governos do PT. Portanto, o ciclo inaugurado em 2013
pode ser considerado uma obra aberta, tendo em vista o acirramento da luta de
classes no país, a impopularidade do governo Temer, a ofensiva do capital contra
os direitos e garantias dos trabalhadores e a insatisfação generalizada contra a
situação social e política. Nessa conjuntura, um incidente qualquer pode
funcionar como uma faísca que pode fazer explodir a indignação social.
Em outras palavras, a confluência da crise nas áreas da economia, na política e
nas relações sociais, misturada com as denúncias de corrupção, aliada à grande
insatisfação da sociedade, a impopularidade do governo e as demandas reprimidas
da população, podem levar à emergência de um levante social no país.
Aparentemente, está tudo calmo, com uma população passiva diante do que está
acontecendo. Mas isso é apenas a aparência do fenômeno, pois nos subterrâneos da
luta de classes o movimento pode ser diferente. Podemos estar naqueles momentos
em que a calmaria antecede a tempestade. Vale lembrar que a emergência de
levantes e explosões sociais são difíceis de detectar. Os últimos que
aconteceram no Brasil não foram percebidos por nenhuma força política ou social
e ocorreram com elevado grau de espontaneidade, como a luta pelas diretas já, o
impeachment de Collor, as manifestações de junho de 2013. No entanto, na
conjuntura que estamos vivendo, torna-se realista prever a emergência de novas e
intensas lutas sociais pelas próprias características da crise brasileira e do
grau de acirramento da luta de classes no país.
As tarefas da esquerda revolucionária e classista
Diante dessas condições, que fazer? Antes de tudo, é importante ressaltar que a
emergência das explosões sociais é difícil de perceber porque trata-se de
processo que se forma silenciosamente no interior das contradições da sociedade
e só vem à tona quando estão maduras todas contradições sobre as quais estava
assentado. Outro fator que problematiza a percepção dos levantes sociais é o
fato de que, mesmo que alguém ou alguma força política tenha capacidade de
prevê-los ou pelo menos intuir a sua emergência, dificilmente consegue impor
esse ponto de vista, porque se trata de processo que não se pode aferir
objetivamente e, portanto, essas previsões logo são classificadas pelas forças
políticas como previsão subjetiva, confusão entre a vontade e a realidade e
coisas do gênero. Em pouquíssimas ocasiões se obteve um consenso majoritário
sobre esta questão. Portanto, o que estamos defendendo está sujeito a esse
conjunto de problematizações, mas isso não impede de colocar a questão, buscando
argumentos objetivos para sustentar essa tese.
Se o que estamos intuindo estiver correto, então é fundamental elencarmos
algumas linhas de ação para que se possa atuar com algum êxito na conjuntura.
Mas antes, é importante fazermos duas advertências: a) sabemos perfeitamente que
vivemos uma conjuntura difícil, mas os revolucionários estão na luta para
resolver problemas difíceis. Se a vida fosse fácil para nós já teríamos
conquistado o socialismo. Portanto, nosso destino é trabalhar sempre em
conjuntura difíceis; b) da mesma forma, os revolucionários não devem ter medo
das crises. As crises são dolorosas, desagregadoras, mas também abrem janelas de
oportunidades para os movimentos sociais e políticos emergirem com força e vale
lembrar que todas as grandes mudanças na história da humanidade foram realizadas
nos momentos de grande crise. Portanto, crise e dificuldade não devem ser
motivos para prostração, inatividade ou desânimo. Pelo contrário, devemos
ampliar a criatividade, reorganizar forças para enfrentar a crise e buscar uma
solução do ponto de vista das forças populares.
Nessa conjuntura, duas principais tarefas se impõem para as forças
revolucionárias e classistas: a) reorganização da esquerda, construção de um
campo que construa um programa mínimo unitário para a nossa classe e que
enfrente a política de conciliação derrotada ideologicamente no ciclo anterior
mas ainda com forte presença nos aparatos de classe; b) reorganização do
movimento operário e popular, a partir das bases, com a retomada dos sindicatos
para o campo classista, das entidades estudantis para o campo da luta,
intensificação do trabalho de organização nos bairros a partir de suas
reivindicações específicas dos moradores, além de dar um novo sentido às suas
associações e entidades representativas. Não se pode esquecer que é nos bairros
onde mora a imensa maioria dos trabalhadores e da juventude. São tarefas
difíceis que exigem paciência, disposição para a luta, trabalho de formiguinha
para se alcançar resultados sólidos. Mas em conjunturas velozes como a que
estamos vivendo, o êxito nesse trabalho pode vir muito mais rápido do que
imagina a vã filosofia da acomodação. Vejamos cada uma dessas tarefas:
Reorganização das forças revolucionárias e classistas e construção do
programa. Nenhuma organização revolucionária, sozinha, tem condições de
realizar as transformações que o Brasil necessita. Por isso, entendemos como
fundamental o fortalecimento das frentes de esquerda, hoje ainda embrionárias,
as ações conjuntas no movimento de massas, de forma a que, em algum momento da
luta de classes não muito distante, se chegue a um consenso sobre a
necessidade de um Encontro Nacional do Movimento Sindical e Popular para que
se inicie a construção de um programa mínimo unitário dessas forças e, a
partir desse acordo, a construção de uma frente orgânica de esquerda com
capacidade de atuar unitariamente no movimento sindical e popular. Um acordo
dessa ordem significaria um salto de qualidade na atuação junto aos movimentos
sociais e políticos e uma sinalização imprescindível para o proletariado, a
juventude e o povo pobre dos bairros de que agora possuem uma direção política
capaz de unificar as lutas e colocá-los em movimento.
Com a esquerda unida organicamente e com um programa mínimo será mais fácil a
iniciativa de reconstrução do movimento operário e popular a partir das bases,
porque evitaria a dispersão e a atomização de forças por parte de vários
grupos e partidos de esquerda. Concentraria recursos humanos e materiais nas
disputas políticas e proporcionaria uma grande sinergia revolucionária na
militância. Em algum momento a ascensão do movimento social vai levar todas as
forças revolucionárias e classistas, pelo menos aquelas que não são
autoproclamatórias, nessa direção, mas seria importante que as lideranças dos
partidos revolucionários e movimentos sociais classistas se antecipassem a
esse momento e desde já preparassem as condições políticas para que essa
conjuntura se transforme em realidade.
A construção do programa, a unidade orgânica da esquerda e a reorganização do
movimento sindical e popular não têm nenhuma contradição com a frente única
contra a quadrilha que tomou o poder no Planalto e vem realizando a ofensiva
contra os trabalhadores e a juventude. Uma coisa é a luta contra o inimigo comum
na atual conjuntura, outra é a disputa salutar e democrática por hegemonia no
movimento social e político. Na disputa mais geral todos estão juntos, mas é
natural que existam divergências entre os componentes da frente única. A própria
luta de classes vai se encarregar de clarear as diversas posições das forças
políticas e sociais, ultrapassando aquilo que não corresponde mais à realidade e
criando uma nova dinâmica na luta social e política, evidentemente com a vitória
das posições com maior aderência à realidade. O importante é que o campo
revolucionário e classista encontre a unidade e programa mínimo para apresentar
à sociedade uma alternativa tanto à política de conciliação de classes quanto à
direita e o capital, de forma a colocar os trabalhadores, a juventude e o povo
pobre dos bairros em movimento para as transformações sociais no Brasil.
In
PCB
https://pcb.org.br/portal2/17995/decifra-me-ou-te-devoro-reflexoes-sobre-crise-atual-e-as-tarefas-da-esquerda-revolucionaria-no-brasil
21/12/2017
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