sábado, 28 de julho de 2018
A China e o seu campesinato
por Rémy Herrera [*]
A questão da terra é absolutamente fundamental para compreender a China,
assim como para apreender o que diferencia a China da grande maioria dos
países do Sul (com excepção daqueles que fizeram uma revolução
socialista, como o Vietname ou Cuba). De facto, a China conseguiu
alimentar 19% da população do planeta a partir de apenas 8% das terras
aráveis do globo. Apesar da amplidão da sua produção agrícola, não mais de
13% da superfície total do país pode ser cultivada. Como o povo chinês e
seus dirigentes conseguir ultrapassar um desafio tão extraordinário? A
explicação essencial encontra-se no facto de que na China (como no
Vietname ou em Cuba), a terra é pública, propriedade colectiva das
comunistas aldeãs e distribuída entre famílias camponesas, que utilizam-na
principalmente para a produção de bens agrícolas destinados à manutenção
da auto-suficiência alimentar.
A China representa assim um dos exemplos do êxito de um sistema fundiário
que repousa nos direitos de todos os camponeses no seio da aldeia. Isso
corresponde a uma igualdade no acesso à terra e na utilização desta, com
um Estado presente in fine enquanto proprietário único e uma
distribuição igualitária das terras entre as famílias beneficiárias do
usufruto. Estudar a evolução histórica e a situação presente do
campesinato chinês exige portanto examinar primeiramente a trajectória
deste sistema fundiário fundamentado na supressão da propriedade privada e
a sua capacidade de resistir aos ataques que sofre na época actual.
É verdade que nos dias de hoje numerosos camponeses chineses sofrem
exploração e injustiça. Mas certas práticas socialistas residuais
continuam a subsistir, inclusive a herança das grandes reformas agrárias.
Em meados dos anos 1980, a adopção de um crescimento orientado para as
exportações provocou fluxos de trabalhadores migrantes das regiões rurais
para as cidades – fluxos constituídos sobretudo pelo excedente de força de
trabalho das famílias rurais possuidoras de uma pequena parcela, sem
expropriação de terras. O sector rural suportou o custo da reprodução
social do trabalho e serviu de tampão para absorver nas cidades os riscos
sociais provocados pelas reformas pró acumulação de capital. Ele mostrou
igualmente sua capacidade de estabilização regulando o mercado de
trabalho e reabsorvendo os trabalhadores migrantes desempregados nas
cidades durante os períodos de crises.
Alguns entretanto apoiam a linha neoliberal – no exterior do Partido
Comunista Chinês, mas também por vezes no interior, nomeadamente na rica
região de Shangai – e preconizam uma mercantilização das terras. Sob a
pressão de projectos de construção conduzidos por governos locais e
orçamentos constrangidos e especuladores imobiliários, a expropriação das
terras acelerou-se no decorrer da década de 1990. Cerca de 40 a 50 milhões
de camponeses perderam assim suas terras; camponeses sem terra surgiram
nos anos 2000, especialmente após a lei de 2003 que modifica a legislação
sobre as terras aráveis colectivas e exclui uma nova geração da alocação
de terras por redistribuição. Os perigos de tais evoluções são reais e
enfraquecem os mecanismos de gestão dos riscos por internalização na
comunidade rural, num momento em que 200 milhões de trabalhadores
migrantes camponeses vivem na cidade e estão activos no interior da classe
operária. Eis porque a propriedade fundiária colectiva em zona rural deve
ser vista como a herança mais preciosa da revolução começada em 1949.
O arranque da China apoiou-se amplamente nas transferências de recursos
extraídos do sector rural. No momento presente, a opção de ser orientar
para a exportação tornou-se um modelo tão dependente e portador de
desequilíbrios internos que a China tem de fazer enormes esforços para
modificar sua trajectória de desenvolvimento investindo na sociedade
rural, a fim de garantir o progresso social e preservar o ambiente.
Soluções para promover uma via alternativa poderiam consistir em reactivar
e revalorizar o estatuto do campesinato, redescobrir as ideias pioneiras
dos movimentos de reconstrução rural e sustentar as experiências de
revitalização das regiões rurais actualmente praticada no país, enquanto
tentativas renovadas e poderosas, simultaneamente populares e ecológicas,
de ultrapassar os aspectos mais destruidores do capitalismo mundial
contemporâneo.
Depois de 1949, o novo regime aplicou uma industrialização de tipo
soviético, que instala um sistema dual assimétrico em desfavor do
campesinato. Entretanto, apesar desta estratégia de industrialização, o
campesinato pôde beneficiar-se de reformas agrárias radicais. Se bem que
os modos actuais de organização, produção e distribuição agrícolas estejam
totalmente penetrados pelos mecanismos de mercado e já não tenham mais
grande coisa a ver com aqueles da época maoista, a propriedade fundiária
permanece estatal ou colectiva na China – ainda que formas degradadas
sejam frequentemente encontradas, por vezes com um controle privado
efectivo sobre terras. Mas a persistência da propriedade pública é uma
chave que permite distinguir a situação – e o êxito – da China em relação
aos outros países que têm uma dimensão continental comparável e
pretensamente são "emergentes", tais como a Índia ou o Brasil, ou países
regionalmente dominantes (África do Sul), para os quais a questão agrária
está longe de ter encontrado condições, mesmo parciais, de solução.
Compreender as especificidades e progressos do campesinato chinês – que
constitui a maioria da população – é importante a fim de medir, por
oposição, o fracasso geral do capitalismo à escala mundial para resolver
os problemas agrários e agrícolas. A deterioração da situação das
agriculturas camponesas do mundo na sequência da exacerbação da dimensão
alimentar da presente crise sistémica do capitalismo confirmou a
incapacidade estrutural deste sistema para ultrapassar as contradições
internas que ele gera. Estes problemas – os das famílias camponesas
produtoras, os dos consumidores e mesmo os de todos os cidadãos – atingem
os limites do suportável, nomeadamente em matéria de protecção do
ambiente. No Sul, onde mais da metade dos países perdeu a capacidade de
abastecer o seu povo em bens alimentares, onde três mil milhões de pessoas
permanecem sub-alimentadas e onde as condições de vida dos camponeses –
como nas favelas urbanas super-povoadas pelo êxodo rural – são dramáticas,
os problemas ultrapassaram mesmo estes limites e são desumanos,
inaceitáveis.
As disfunções que afectam os sectores agrícolas no sistema mundial
capitalista são identificáveis através de paradoxos gritantes. Cerca de
três mil milhões de pessoas sobre a terra continuam a sofrer fome (em um
terço) ou desnutrição (em dois terços), enquanto as produções agrícolas
ultrapassam as necessidades alimentares; daí uma super-produção de pelo
menos 150%. Uma grande maioria destas pessoas vive em zona rural: os três
quartos dos indivíduos que sofrem de sub-alimentação são camponeses. A
extensão das áreas de cultivo agrícola no mundo é acompanhada por um
declínio das populações camponesas em relação às populações urbanas. Uma
parte crescente das terras é cultivada por transnacionais que não
direccionam suas produções para o consumo alimentar e sim para destinos
industriais ou energéticos mais rentáveis. Na África, um dinamismo das
exportações agrícolas decorrentes de culturas comerciais de renda coexiste
com o aumento das importações de produtos de base destinados a responder
às necessidades alimentares. Obviamente, e com urgência, as coisas devem
mudar.
O inimigo comum dos povos do Sul e do Norte é o capital financeiro, cada
vez mais bárbaro e destruidor. E em crise. Para os povos em luta, o
princípio director é o controle pelas comunidades da gestão das terras e
da água enquanto bens comuns, que não devem ser privatizados nem
mercantilizados. O que precisa ser buscado prioritariamente é a soberania
alimentar – e uma condição para isso é o acesso à terra para todos os
camponeses – a qual deve ser considerada como um objectivo para orientar
a maior parte das lutas rurais. A reforma agrária visando redistribuir as
terras aos camponeses está na ordem do dia na Ásia, África e América
Latina.
A soberania alimentar está no cerne das lutas. Para atingi-la, um modo de
produção diferente do capitalismo deverá ser praticado. É a própria
modernidade que conviria repensar. O acesso à terra e aos recursos
necessários à reprodução da vida, enquanto bens comuns, é um direito
legítimo para todos os camponeses, para os trabalhadores e as pessoas do
povo. Para que a soberania alimentar salvaguarde modos de gestão colectiva
será preciso aceitar a presença dos agricultores familiares em qualquer
futuro previsível do século XXI. Para resolver estas questões será preciso
uma libertação da lógica destruidora do capitalismo. Para modificar as
regras de dominação imperialista do comércio internacional, os camponeses,
os trabalhadores e os povos do Norte assim como os do Sul deverão unir-se
a fim de enfrentar em conjunto o capital financeiro e reconstruir
estratégias alternativas para a longa e difícil transição ao comunismo.
Referências
Andreani T. et R. Herrera (2013), "Un Modèle social-démocrate pour la
Chine ?", in P. Theuret ( dir. ), La Chine et le monde :
développement et socialisme , p. 208-241, Le Temps des Cerises, Paris.
GRAIN (2009), 'Grabbing Land for Food', Grain Seedling , janvier,
Barcelone.
Herrera R. et K.C. Lau (2018), "The Convergence of Peasant Struggles
Worldwide," Economic and Political Weekly , vol. LIII, n° 11, p. 42-49,
Mumbai.
— (2015), The Struggle for Food Sovereignty , Pluto Press, Londres.
Herrera R. et Z. Long (2018), "Some Considerations on China's Long-Run
Economic Growth: From the Analysis of Factor Contributions to that of the
Profit Rate," Structural Change and Economic Development , vol. 44, n°
3, p. 14-22, New York.
Mazoyer M. et L. Roudart (1997), Histoire des agricultures du monde
, Seuil, Paris.
Nicholson P., X. Montagut et J. Rulli (2012), Terre et liberté ! ,
CETIM, Genève.
Wen T. (2006), " Repenser le développement des campagnes ",
L'Humanité du vendredi 8 septembre.
In
RESISIR.INFO
https://www.resistir.info/china/remy_campesinato_jul18.html
26/7/2018
26/Julho/2018
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