segunda-feira, 2 de julho de 2018
Como socializar o setor bancário
por Eric Toussaint, Patrick Saurin [*]
Como os capitalistas demonstraram a que ponto são capazes de cometer
delitos e incorrer em riscos – dos quais recusam assumir as consequências
– com o único fim de aumentar os seus lucros, como as suas actividades
implicam periodicamente um custo extremamente pesado para a colectividade,
como a sociedade que queremos construir tem de ser orientada para a
procura do bem comum, da justiça social e da reconstituição duma relação
equilibrada entre os seres humanos e as outras componentes da natureza, é
absolutamente necessário socializar o sector bancário. Tal como propõe
Frédéric Lordon, trata-se de realizar «uma desprivatização integral do
sector bancário». [1]
Subtrair os cidadãos e os poderes públicos à manápula dos mercados
financeiros
Socializar o sector bancário significa:
expropriar sem indemnizar (ou mediante uma indemnização simbólica) os
grandes accionistas (os pequenos accionistas devem ser indemnizados);
atribuir ao sector público o monopólio da actividade bancária , com uma
excepção: a existência de um sector bancário cooperativo de pequena
dimensão (submetido às mesmas regras fundamentais do sector público);
definir – com participação cidadã – uma carta sobre os objectivos a
alcançar e sobre as missões a cumprir, que permita pôr o serviço público
de poupanças, de crédito e de investimento ao serviço das prioridades
definidas segundo um processo de planificação democrática;
dar transparência às contas que devem ser apresentadas ao público, num
formato compreensível;
criar um serviço público de poupanças, de crédito e de investimento ,
duplamente estruturado, tendo por um lado uma rede de pequenas
implantações próximas dos cidadãos, e por outro lado organismos
especializados, encarregados da gestão de fundos e do financiamento de
investimentos que não sejam assegurados pelos ministérios que tutelam a
saúde pública, a educação nacional, a energia, os transportes públicos, as
pensões de reforma, a transição ecológica, etc. Os ministérios deverão
ser dotados do orçamento necessário ao financiamento dos investimentos
relevantes às suas atribuições. Os organismos especializados intervirão
nos domínios e nas actividades que excedem as competências e esferas de
acção dos ministérios, a fim de assegurar o bom funcionamento conjunto.
Imaginemos o que isto significa, em termos concretos: os bancos privados
desaparecem, ou seja, após a expropriação (com indemnização dos pequenos
accionistas), os seus trabalhadores são reafectados ao serviço público
bancário, mantendo os direitos de antiguidade, o salário (até um máximo
regulado, a fim de limitar fortemente os salários demasiado elevados e
aumentar os salários baixos, de forma a reduzir o leque salarial) e com
melhoria das condições de trabalho (abandono do benchmarking [2] e das
práticas de venda obrigatória). É posto em prática um novo sistema de
contratação que respeite as normas de contratação dos funcionários
públicos.
Bancos ao serviço dos cidadãos
Trata-se de pôr fim a uma situação em que abunda a concorrência de
agências bancárias nas grandes metrópoles e faltam sucursais nas pequenas
cidades, vilas e bairros populares; de desenvolver uma rede densa de
agências locais, a fim de melhorar bastante o acesso aos serviços
bancários e de seguros, com pessoal competente para responder às
necessidades dos utilizadores, de acordo com as missões do serviço
público. Ninguém poderá ser excluído do acesso ao serviço público
bancário, que deve ser gratuito.
As agências locais de serviço público ficarão encarregues de gerir as
contas correntes e receberão as poupanças dos utilizadores, que serão
plenamente garantidas. As poupanças serão geridas sem incorrer em riscos;
serão afectadas, sob controlo cidadão, ao financiamento de projectos
locais e de investimentos de maior porte orientados para a melhoria das
condições de vida, para a luta contra as mudanças climáticas, o abandono
das energias nucleares, o desenvolvimento dos circuitos de proximidade, o
financiamento do ordenamento do território com respeito rigoroso pelas
normas sociais e ambientais, etc. Os aforradores poderão escolher os
projectos que gostariam de financiar com as suas poupanças.
As agências locais concederão créditos isentos de risco às pessoas, às
famílias, às pequenas e médias empresas (PME) e a estruturas privadas
locais, a associações, colectividades locais e estabelecimentos públicos.
Poderão afectar uma parte dos seus recursos a projectos de maior escala
que os de nível local, naturalmente dentro do quadro de uma política
concertada.
Bancos ao serviço da colectividade
O facto de as agências locais gerirem meios financeiros de volume
considerável, para aplicação local ou para projectos mais vastos que
serão apresentados de forma precisa (sendo estabelecido um calendário de
programação e instrumentos de acompanhamento que permitam controlar com
clareza o uso dos fundos e a boa execução dos projectos) irá facilitar o
controlo dos diversos protagonistas.
Os projectos locais a financiar serão definidos de forma democrática, com
o máximo de participação cidadã.
As agências locais terão igualmente o encargo de fazer contratos de
seguros a pessoas colectivas e individuais.
Apoiar a transição para uma economia social, sustentável e ecológica
Por seu lado, os ministérios encarregados da saúde pública, da educação
nacional, da energia, dos transportes públicos, das reformas, da transição
ecológica, etc., deverão dispor de meios de financiamento provenientes do
orçamento de Estado.
Instituições transversais especializadas intervirão nos domínios e nas
actividades que excedam as competências e as esferas de acção de cada
ministério. Competir-lhes-á assegurar missões específicas ou transversais
definidas com participação cidadã, como no caso do abandono total do
programa nuclear, incluindo o tratamento seguro dos desperdícios nucleares
a longo prazo.
O sector bancário socializado permitirá reconstituir um circuito virtuoso
de financiamento dos poderes públicos: estes poderão emitir títulos, que
serão adquiridos pelo serviço público sem passar pelos ditames dos
mercados financeiros.
Muitos aspectos do projecto que ficam agora por elaborar devem ser
decididos colectivamente, estamos apenas na fase preparatória da montagem
de um sistema completamente novo. Isto exige um ambicioso trabalho
colectivo que ponha em cima da mesa ideias e propostas. É um trabalho que
ainda mal começou.
Controlo cidadão a todos os níveis
Controlo cidadão: controlo exercido pelos trabalhadores, utentes, eleitos
locais, representantes das pequenas, médias e microempresas, artesãos e
outros trabalhadores independentes, delegados do sector associativo.
A este controlo cidadão junta-se o controlo exercido pelas autoridades de
regulação bancária.
Preferimos a palavra "socialização" à palavra "nacionalização" ou
"estatização" para indicar claramente a que ponto é essencial o controlo
cidadão, com partilha de decisões entre dirigentes, representantes dos
assalariados, clientes, associações, eleitos locais, que vêm completar o
controlo dos representantes das instâncias bancárias públicas nacionais e
regionais. Por isso é preciso definir de maneira democrática o exercício
de um controlo cidadão activo. Além disso é preciso encorajar o
exercício de um controlo das actividades da banca pelos trabalhadores do
sector bancário e a sua participação activa na organização do trabalho. É
necessário que as direcções dos bancos emitam anualmente um relatório
público da sua gestão, apresentando-o de forma transparente e
compreensível. É preciso privilegiar um serviço de proximidade e de
qualidade que rompa com as políticas de terceirização [recurso a serviços
externos] actualmente praticadas. É preciso encorajar o pessoal dos
estabelecimentos financeiros a assegurar à sua clientela um autêntico
serviço de aconselhamento e erradicar as políticas comerciais de venda
forçada.
A socialização do sector bancário e dos seguros e a sua integração nos
serviços públicos permitirá:
subtrair os cidadãos e os poderes públicos à manápula dos mercados
financeiros;
financiar os projectos dos cidadãos e dos poderes públicos;
dedicar a actividade bancária ao bem comum, tendo por missão, entre
outras, facilitar a transição de uma economia capitalista, produtivista e
prejudicial à economia social, para uma economia social, sustentável e
ecológica.
Por considerarmos que a moeda, as poupanças, o crédito, a segurança dos
saldos monetários e a preservação da integridade dos sistemas de pagamento
têm a ver com o interesse geral, preconizamos a criação de um serviço
público bancário por meio da socialização da totalidade das empresas do
sector bancário e dos seguros.
Como os bancos são hoje em dia um instrumento essencial do sistema
capitalista e de um modo de produção que saqueia o planeta, gera uma
distribuição desigual dos recursos, provoca guerras, aumenta a pobreza,
corrói a cada dia que passa os direitos sociais e ataca as instituições e
as práticas democráticas, é essencial arrebatar o seu controlo e
transformá-los em instrumentos úteis ao serviço da colectividade.
A socialização do sector bancário não pode ser vista como um slogan ou
uma reivindicação auto-suficiente, graças à qual as administrações se
dedicariam depois de terem entendido o seu sentido e bondade. Tem de ser
concebida como um objectivo político a alcançar no quadro de um processo
que envolve a dinâmica cidadã. É preciso não só que os movimentos sociais
organizados (entre os quais os sindicatos) façam dele uma prioridade das
suas agendas e que os diversos sectores (colectividades locais, pequenas
e médias empresas, associações de consumidores, etc.) caminhem nesse
sentido, mas também – e sobretudo – que os empregados e empregadas da
banca sejam sensibilizados para o papel do seu ofício e para o interesse
que teriam em ver os bancos socializados; que os utentes sejam informados
no local onde se encontram (exemplo: ocupação de agências bancárias por
toda a parte no mesmo dia), a fim de participarem directamente na
definição do que deve ser a banca.
A socialização do sector bancário e o apoio popular, condições
necessárias à mudança de modelo
Só as mobilizações de grande dimensão podem garantir que a socialização
do sector bancário é realizada na prática, pois essa medida afecta o
coração do sistema capitalista.
Se um governo de esquerda se abstiver de tomar tal medida, a sua acção
não poderá provocar uma verdadeira mudança radical, necessária para acabar
com a lógica do sistema capitalista e desencadear um novo processo de
emancipação. A subtracção do sector bancário aos capitais privados é uma
incontornável condição prévia à aplicação de um programa económico que
rompa com o capitalismo e a sua lógica.
A socialização do sector bancário e dos seguros é um ponto fundamental de
um projecto muito mais vasto, que inclui outras medidas que permitem
desencadear a transição para um modelo pós-capitalista e pós-produtivista.
Tal programa deveria ter uma dimensão europeia, mesmo que o seu arranque
apenas partisse de um pequeno número de países. Esse programa incluiria
nomeadamente o abandono das políticas de austeridade, a anulação das
dívidas ilegítimas, a aplicação de uma reforma fiscal, juntamente com uma
forte taxação do capital, a redução generalizada do tempo de trabalho (com
contratações compensatórias e manutenção do salário), a socialização do
sector energético, da água e da saúde, medidas para assegurar a igualdade
entre homens e mulheres, o desenvolvimento dos serviços públicos e a
protecção social, assim como a execução de uma política resoluta de
transição ecológica.
Hoje em dia, a socialização integral do sistema bancário e de seguros é
uma urgente necessidade económica, social, política e democrática.
Notas
[1] Frédéric Lordon, "L'effarante passivité de la "re-régulation
financière"", in Changer d'économie , dos economistas aterrados, Les
Liens Qui Libèrent, 2011, 242 p. Acrescentemos que a socialização integral
do sector bancário é reconizada pelo sindicato francês Sud BPCE.
[2] O benchmarking é um instrumento de vigilância cujos resultados,
acessíveis a todos em permanência, são comparados continuamente através
de uma classificação que estigmatiza os trabalhadores acusados de menor
desempenho. É uma técnica de administração pelo stress, muito praticada
nas grandes empresas, com vista a gerar uma competição malsã.
[*] Eric Toussaint: docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do
CADTM Internacional. É autor do livro Bancocratie , ADEN, Bruxelles,
2014, Procès d'un homme exemplaire , Editions Al Dante, Marseille, 2013;
Un coup d'œil dans le rétroviseur. L'idéologie néolibérale des origines
jusqu'à aujourd'hui , Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet
do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política , Temas
e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie , Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública
, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob
a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015. Após a sua
dissolução, anunciada a 12/11/2015 pelo novo presidente do Parlamento
grego, a ex-Comissão prosseguiu o trabalho sob o estatuto legal de
associação sem fins lucrativos.
A tradução de Rui Viana Pereira encontra-se em
www.cadtm.org/Como-socializar-o-sector-bancario
In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/financas/socializar_banca.html2/7/2018
2/7/2018
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