quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

O neoliberalismo não é compatível com a democracia



*por António Avelãs Nunes [*]

Prof. António Avelãs Nunes       *1. * Na tentativa de esconder a
existência do /estado capitalista / enquanto /estado de classe, /
enquanto /ditadura da burguesia, / o discurso dominante insiste na tese
de que o neoliberalismo é /um sistema libertário, que dispensa o estado. /

A social-democracia europeia reconhece hoje que "mudou radicalmente de
atitude face ao estado", ao longo do século XX: em 1.º lugar, porque
abandonou a "posição libertária de querer destruí-lo [ao estado
capitalista], como dominação e factor de dominação burguesa"; em 2.º
lugar, porque houve uma mudança no que toca à "arquitectura
institucional do estado." Em Portugal, Augusto Santos Silva apresenta o
/estado capitalista / como um "espaço de integração social e intervenção
política para as organizações vinculadas ao movimento operário", como
"expressão da comunidade política nacional", como "espaço de pertença de
toda a colectividade", como "representação política de toda a sociedade".

Num tempo em que "as eleições são obscenamente caras", o direito a
participar no estado transformou-se num 'bem' que tem de se 'comprar' no
mercado, e este 'mercado', como todos os outros, é controlado pelo
grande capital: a /soberania do cidadão / (como a /soberania do
consumidor / ) é pura fantasia. Quem tem dinheiro, ganha as eleições. E
todos sabemos que não há almoços grátis… Como sublinha Stiglitz, "os
mercados são modelados pela política", porque "as políticas determinam
as regras do jogo económico", sendo certo que "o campo do jogo está
inclinado para os 1% do topo", porque "as regras do jogo político também
são moldadas por esses 1%."

Não quero chamar /corporativistas / aos que defendem estas concepções.
Mas a identificação do estado como "representação política de toda a
sociedade" implica a /negação da existência de classes sociais / com
/interesses antagónicos, / e implica a defesa da /colaboração de classes
/ no seio de um estado que se diz /representar toda a sociedade, / um
estado /acima das classes / e dos /interesses de classe. / O /estado
capitalista / 'desaparece' enquanto /estado de classe / e 'desaparecem'
também as /classes sociais, / substituídas pelos /parceiros sociais, /
que, em vez de alimentarem a /luta de classes, / praticam o /diálogo
social, / buscando o /bem comum / em conjunto (o capital e o trabalho)
no seio dos organismos de /concertação social, / sob a arbitragem do
estado, que se afirma como uma entidade /neutra, acima das classes. /

É uma concepção insustentável, sobretudo num tempo em que a actuação do
/estado capitalista / como /estado de classe / se afirma, todos os dias,
em políticas que sacrificam não só os direitos que os trabalhadores
foram conquistando ao longo de séculos de lutas, mas também os
interesses de grandes camadas da pequena e média burguesia ligada às
actividades produtivas. O estado capitalista é hoje, claramente, a
/ditadura do grande capital financeiro. /

      *2. * O /estado capitalista / já foi /estado liberal, / um estado
que proibiu e criminalizou, durante longo tempo, a organização dos
trabalhadores em sindicatos, que impediu, enquanto teve força para
tanto, o sufrágio universal, e que o suspendeu recorrentemente sempre
que a burguesia dominante entendeu que era preciso "afirmar contra a
vontade do povo (…) a vitória conseguida até aí pela vontade do povo."
Foi mais tarde /estado fascista / (um estado violenta e assumidamente
anti-trabalhadores); e foi depois /estado social / ( /solução de
compromisso / que as circunstâncias recomendaram ou exigiram), tal como
agora é /estado regulador / ou /estado garantidor, / que asfixia o
/estado social / para garantir ao grande capital a absorção por inteiro
dos ganhos da produtividade.

      *3. * Deslumbrados com os 'êxitos' dos chamados /trinta anos
gloriosos / que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, alguns acreditaram
que o keynesianismo tinha descoberto a cura para as doenças congénitas
do capitalismo e tinha tornado obsoleto o marxismo. Mas o optimismo
esmoreceu rapidamente a partir do início da década de 1970. Em
Agosto/1971, os EUA romperam unilateralmente o compromisso assumido em
Bretton Woods de garantir a conversão do dólar em ouro a uma certa
paridade. As taxas de câmbio escapam ao controlo das autoridades
nacionais ou de uma agência da ONU (papel que cabia ao FMI), ficam na
inteira dependência dos 'mercados' (ou seja, dos /especuladores
profissionais / ). Começa então, na prática, a /contra-revolução
monetarista / e o reinado do /neoliberalismo. /

As /chamadas crises do petróleo / (1973-75 e 1978-80) trouxeram um
fenómeno novo, a /estagflação, / caracterizada pela coexistência de
recessão e de desemprego (por vezes acentuados) e inflação com taxas
elevadas e crescentes. Ficaram à vista as limitações das políticas
keynesianas. Como Marx e o marxismo sempre defenderam, nas economias
capitalistas os desequilíbrios, a instabilidade e a incerteza são a
regra, não a excepção.

A direita neoliberal (Hayek, Milton Friedman) aproveitou a onda para
decretar a "morte de Keynes", desacreditar as políticas de pleno
emprego, fazer guerra aberta ao movimento sindical e atacar o estado
social. Com o apoio de uma campanha de propaganda ideológica nunca antes
vista, o neoliberalismo impõe-se como a ideologia do /império / e do
/pensamento único / , uma espécie de 'religião', para cuja "única fé
verdadeira" se diz que /não há alternativa. / Escreve Paul Krugman: 
chegou-se à "idade das trevas da macroeconomia."

Num quadro caracterizado pela /supremacia do capital financeiro sobre o
capital produtivo / e pela /tendência para a baixa da taxa média de
lucro nos sectores produtivos, / a salvaguarda das margens de lucro
exigia um reforço da exploração capitalista, com sacrifício dos
rendimentos e dos direitos dos trabalhadores. E os dirigentes do mundo
capitalista (na economia e na política) entenderam que a correlação de
forças lhes permitia ignorar o /compromisso keynesiano: /   o /Consenso
Keynesiano / foi substituído pelo chamado /Consenso de Washington, / uma
espécie de 'código' do neoliberalismo mais radical.

A /ideologia neoliberal / não ataca apenas as políticas de matriz
keynesiana que apontavam no sentido de uma /democracia económica e
social / que ganhou foros de constitucionalidade em bom número de
países. Vai mais longe, classificando como /inimigos internos / "os
homens de boas intenções que (…) desejam transformar a sociedade",
através de /políticas públicas / . Desde cedo o neoliberalismo revela a
sua vocação totalitária, bem patente na guerra contra os sindicatos,
considerados "incompatíveis com a economia de livre mercado."

      *4. * Nos anos 1950, o argentino Raúl Prebisch compreendeu que o
liberalismo (então imposto pelo FMI aos países com dificuldades
financeiras) só poderia ser levado à prática /pela força das armas. /
Num livro (1994) em que analisa a experiência do /thatcherismo, / Andrew
Gamble conclui que o projecto político da Nova Direita exige um /estado
forte, / capaz de combater os /inimigos externos / e os /inimigos
internos. /

A experiência dos últimos anos mostra que o /neoliberalismo / (e as
/políticas violentas / que o caracterizam) tem exigido a presença activa
de um /estado forte, / com o objectivo de /transferir para o capital os
ganhos da produtividade / (como reconhecem a OIT, a OCDE e até o FMI, a
produtividade tem aumentado consideravelmente, enquanto o poder de
compra dos salários tem diminuído assustadoramente). A violência
traduz-se na guerra contra os sindicatos, na desregulamentação das
relações laborais, no esvaziamento da /contratação colectiva, / nas
políticas de 'confisco' dos salários, dos direitos e da dignidade dos
trabalhadores, no desmantelamento do /estado social. /

Só um /estado forte / poderia impor a /liberdade absoluta de circulação
de capitais; / a desregulação de todos os mercados, em especial os
mercados financeiros, entregues ao "dinheiro organizado"; a
'privatização' dos estados nacionais, que a 'regra' da /independência
dos bancos centrais / tornou dependentes dos 'mercados' para o
financiamento das políticas públicas); a criação das estruturas em que
assenta o /capitalismo do crime sistémico / dos nossos dias, que garante
a impunidade aos agentes do /crime sistémico, / nomeadamente aos bancos
e aos banqueiros que não são apenas /too big to fail, / são também /too
big to jail. / O poder económico (liderado pelo grande capital
financeiro) identifica-se cada vez mais com o poder político, e este
novo /Leviathan / é a /ditadura do grande capital financeiro. /

      *5. * Num estudo posterior ao de A. Gamble, Wolfgang Streeck, o
mais importante sociólogo alemão da actualidade, mostra que as políticas
neoliberais de reforma das instituições político-económicas visam impor
um conjunto de /regras / às quais os estados se devem vincular,
/independentemente dos resultados eleitorais. / Trata-se de um /processo
de esvaziamento da democracia / entendida no sentido da /democracia
social, / que tem vindo a operar-se "através de uma reeducação
neoliberal dos cidadãos" (promovida pelas grandes centrais de produção e
difusão da ideologia neoliberal), mas pode vir a ser levada a cabo
"através da abolição da democracia segundo o modelo chileno dos anos
1970" (opção que A. Gamble entende não estar disponível actualmente).

Estas ameaças são o resultado (antecipado e desejado) das /opções
neoliberais / 'codificadas' no /Consenso de Washington. / As /políticas
neoliberais / não são a /consequência inevitável do desenvolvimento
científico e tecnológico. / São /políticas / que equivalem ao
reconhecimento de que /a soberania reside nos mercados, / de que
"ninguém pode fazer política contra os mercados". São /políticas /
impostas pelo /grande capital financeiro, / com o objectivo de
modificar, em benefício do capital, a correlação de forças entre o
capital e o trabalho. E nós sabemos que o neoliberalismo não é um
elemento estranho ao capitalismo, não é um fruto espúrio que nasceu nos
terrenos do capitalismo, nem é o produto inventado por uns quantos
'filósofos' que não têm mais nada em que pensar. O neoliberalismo é o
capitalismo puro e duro, mais uma vez convencido da sua /eternidade, / e
convencido de que não tem de suportar o 'preço' de /compromissos sociais
/ (como o /estado social / ) e de que pode permitir ao capital todas as
liberdades, incluindo as que matam as liberdades dos que vivem do
rendimento do seu trabalho. O neoliberalismo é a /ditadura do grande
capital financeiro. /

Concluo com Streeck: "o neoliberalismo não é compatível com um estado
democrático." Se as condições o permitirem (ou o impuserem…), as
soluções 'brandas' que vêm sendo adoptadas, apesar de 'musculadas' e até
violentas, poderão ser substituídas pelo "modelo chileno dos anos 1970":
o estado capitalista pode vestir-se e armar-se de novo como /estado
fascista, / sem máscaras, deixando para trás o /fascismo de mercado, / o
/fascismo amigável / de que falavam Paul Samuelson e Bertram Gross já no
início da década de 1980, hoje bem patente nas nossas sociedades,
caracterizadas pela "assimetria entre poder e legitimidade" de que fala
Ulrich Beck ("um grande poder e pouca legitimidade do lado do capital e
dos estados, um pequeno poder e uma elevada legitimidade do lado
daqueles que protestam").

      *6. * No contexto europeu, o /Tratado Orçamental / (2012) veio
garantir ao grande capital financeiro que /as políticas não mudam mesmo
quando mudam os governos / (Angela Merkel). Por isso Habermas entende
que "os governos nacionais são apenas actores no palco europeu" e que os
parlamentos nacionais "se limitam a aprovar obedientemente as decisões
já tomadas noutro lugar". E Felipe González defende que "os cidadãos
pensam, com razão, que os governantes obedecem a interesses diferentes,
impostos por poderes estranhos e superiores, a que chamamos mercados
financeiros e/ou Europa." É isto mesmo: as /regras alemãs / da /Europa
do capital / (impostas por /poderes estranhos e superiores, / os
/mercados financeiros / e/ou a /'Europa' / ) estão a matar a /Europa
social, / estão a 'matar' a /democracia, / mesmo a tão decantada
/democracia representativa, / porque /as eleições não podem mudar as
políticas. /

As /políticas neoliberais / conduziram a "um dos piores desastres
económicos auto-infligidos jamais observados"; elas vêm condenando os
países devedores ("a nova classe baixa da UE") a sofrer "perdas de
soberania e ofensas à sua dignidade nacional" (Ulrich Beck); exigem às
suas vítimas (os pobres dos países mais pobres) "sacrifícios humanos em
honra de deuses invisíveis" (Paul Krugman); constituem /pecados contra a
dignidade dos povos / (Jean-Claude Juncker), i.é, constituem verdadeiros
/crimes contra a Humanidade. /

Em plena crise grega, o ministro Varoufakis, cansado de tanta
humilhação, não se conteve e disse alto e bom som: "o que estão a fazer
à Grécia tem um nome: terrorismo". /Terrorismo de estado, / imposto por
/poderes estranhos e superiores, / pelos /mercados financeiros / , pela
/'Europa' / (com socialistas e conservadores de braço dado).

Como é bem sabido, o nazi-fascismo dos anos 1920-1945 costuma
caracterizar-se como a /ditadura terrorista / ao serviço dos interesses
dos latifundiários e do grande capital financeiro e industrial. E, pelos
vistos, a natureza /terrorista / continua a caracterizar a actual
/ditadura do grande capital financeiro, / especializada na /especulação
contra a vida de milhões de pessoas. / Mas a realidade é diferente.

O /estado fascista / dos anos 1930/1940 foi anti-liberal, anti-democrata
e anti-socialista. Assumiu a economia como uma questão de estado e foi
proteccionista. Porque este era, nas condições da época, o perfil
adequado para que o /estado capitalista / pudesse desempenhar a sua
função, de acordo com os interesses das /burguesias nacionais, / que, na
Alemanha, na Itália e no Japão, aspiravam também a conquistar um quinhão
numa nova partilha dos territórios colonizados ou a colonizar.

Nos nossos dias, os interesses do capital são os interesses do /grande
capital financeiro, / e este não tem pátria e não conhece fronteiras,
defende o livre-cambismo e as políticas neoliberais. A sobrevivência
deste /capitalismo de casino / pode exigir o regresso do terror à Europa
e ao mundo. A repressão e a violência poderão ser até mais brutais (se
tal é possível), mas assumirão novas formas, que manterão o ADN
radicalmente anti-trabalhadores. Estas novas formas de violência e de
barbárie já estão a acontecer: campanhas de 'diabolização' de dirigentes
políticos incómodos; golpes palacianos; sanções económicas; sabotagem de
estruturas essenciais; bloqueios ilegais para provocar a escassez
artificial de alimentos, medicamentos e outros bens essenciais…

Aqui há tempos, Joschka Fischer escreveu o que segue: "A Alemanha
destruiu-se – a si e à ordem europeia – duas vezes no século XX. (…)
Seria ao mesmo tempo trágico e irónico que uma Alemanha restaurada (…)
trouxesse a ruína da ordem europeia pela terceira vez". Dá arrepios ler
isto. A História não se reescreve nem se apaga. Não tenho tanta certeza
de que não se repita. Por isso é que – sem nenhuma alegria, mas não de
ânimo leve – eu acho que não podemos excluir em absoluto a possibilidade
de a Europa se condenar, mais uma vez, a si própria e ao mundo, a uma
nova era de barbárie. Neste quadro, é essencial preservar a memória e
não esquecer as lições da História, e é imperioso estudar muito bem a
realidade que nos cerca. Daí a importância do /trabalho teórico / (que
nos ajuda a compreender a realidade para melhor intervir sobre ela de
acordo com as leis históricas da sua /transformação / ) e da /luta
ideológica / (que nos ajuda a combater os interesses estabelecidos e as
ideias feitas), sendo que a /luta ideológica / é, hoje mais do que
nunca, um factor essencial da luta política e da luta social (da /luta
de classes, / que faz mover o mundo).

Quem conhece um pouco de História sabe que a democracia não pode
considerar-se nunca uma conquista definitiva. É preciso, por isso, lutar
por ela todos os dias, combatendo os dogmas e as estruturas neoliberais
próprios do capitalismo dos nossos dias, apoiando os que protestam, /com
elevada legitimidade, / contra o grande capital (que tem /pouca
legitimidade, / apesar de ter /grande poder / ). Esta é uma luta
inadiável, e é uma luta de todos, porque ela é, essencialmente, um
combate pela democracia.

      *7. * As /políticas neoliberais / e a /globalização neoliberal /
não são o fruto necessário do desenvolvimento científico e tecnológico,
são apenas uma utilização perversa dele, tal como a bomba atómica é o
resultado da utilização perversa do desenvolvimento científico na área
da Física nuclear. O desenvolvimento científico e tecnológico do último
meio século permite-me pensar que o direito ao sonho e à utopia tem hoje
mais razão de ser do que nunca. A vida mostra que o homem não deixou de
ser o lobo do homem. Mas, hoje, todos compreendemos que o
/desenvolvimento científico e tecnológico / e o /desenvolvimento das
forças produtivas / que dele decorre (entre as quais avulta o próprio
homem, como criador, depositário e utilizador do conhecimento) é o
/caminho da libertação do homem, / não a origem dos males que hoje
afligem a Humanidade, decorrentes da /globalização imperialista / (que a
ideologia dominante quer fazer passar como /consequência incontornável /
do /desenvolvimento científico e tecnológico / ).

O aumento meteórico da produtividade do trabalho humano e da produção
efectiva de bens e serviços criou condições mais favoráveis à construção
de um mundo capaz de responder satisfatoriamente às necessidades
fundamentais de todos os habitantes do planeta, um mundo que permita
alcançar o que todos buscam: a felicidade. O nível do desenvolvimento
científico e tecnológico realizado nos tempos recentes (a uma velocidade
insuspeitada nas últimas quatro ou cinco décadas) dá cada vez mais
sentido à tese de Marx sobre a /contradição fundamental do capitalismo:
/   a mais rápida evolução das forças produtivas acaba por tornar as
relações de produção capitalistas incompatíveis com as forças de
produção hoje disponíveis, constituindo, por isso, um obstáculo ao
desenvolvimento da Humanidade, por não permitirem extrair, em benefício
de todos e de cada um dos homens, todas as potencialidades que estão ao
nosso alcance. Cito o /Manifesto Comunista: /   "as relações burguesas
tornaram-se demasiado estreitas para conterem a riqueza por elas criada."

      *8. * Alguns parecem aterrados porque as novas tecnologias
resultantes do desenvolvimento científico e tecnológico (nomeadamente a
/inteligência artificial / ) vão extinguir milhões de postos de
trabalho. Pois bem. A solução está em reduzir o tempo de trabalho (o que
corresponde ao ideal mais profundo dos homens), entregando às máquinas
as tarefas mais duras e menos atraentes e reservando para as pessoas que
trabalham as tarefas mais atraentes e mais criativas, aquelas que se
traduzem na criação dos instrumentos que permitem a acção da
inteligência artificial e aquelas que implicam contacto humano, mais
susceptíveis de valorizar quem as realiza e quem delas beneficia. Ponto
é que estas actividades não sejam consideradas (como estão a sê-lo)
actividades 'menores', socialmente desqualificadas e pagas com salários
muito baixos.

No Livro 3º de /O Capital / escreveu Marx:   a liberdade consiste em os
homens "colocarem a Natureza sob o seu controlo comunitário em vez de
serem dominados por ela como por um poder cego"; a liberdade consiste em
desenvolver esta acção de controlo "com o mínimo emprego de força e nas
condições mais dignas e adequadas à sua natureza humana. (…) O
encurtamento do dia de trabalho é a condição fundamental." É isto que
faz sentido: /encurtar o dia de trabalho / ! Aos que nos acusam de nos
deixarmos embalar nas miragens da 'utopia marxista', vale a pena lembrar
que, em 1928, Keynes (um economista assumidamente empenhado em /salvar o
capitalismo / ) previa que, dentro de cem anos (estamos quase a
chegar!), não precisaríamos de trabalhar mais de 15 horas por semana. E,
em 1960, o economista americano Alvin Hansen defendeu que "a automação
pode conduzir a produção de bens materiais a um ponto em que a massa da
nossa energia produtiva poderá ser consagrada a satisfazer as
necessidades do espírito." Em 1993 o liberal Ralph Dahrendorf falou da
necessidade da "transferência de alguns ganhos de produtividade para
tempo, em vez de dinheiro, para tempo livre, em vez de mais rendimento."

Esta é – se não erro muito – uma das questões nucleares que estão em
aberto neste tempo de contradições. O desenvolvimento da produtividade
resultante do progresso científico e tecnológico permite que se disponha
de mais /tempo livre, / de mais tempo para satisfazer as /necessidades
do espírito, / para as actividades libertadoras do homem, em vez de o
afectar a produzir cada vez mais bens para ganhar cada vez mais dinheiro
para comprar cada vez mais bens. A passagem do /reino da necessidade /
para o /reino da liberdade / só carece de novas relações sociais de
produção, de um novo modo de organizar a economia e a sociedade, num
quadro histórico em que o trabalho, não sendo ainda, "ele próprio, a
primeira necessidade vital", talvez comece a não ser somente "um meio de
viver."

Todos concordaremos com Amartya Sen quando defende que o facto de haver
pessoas que passam fome – e que morrem de fome... – só pode explicar-se
pela /falta de direitos / e não pela /falta de bens. / O problema
fundamental que se nos coloca não é, pois, o da /escassez, / mas o da
/organização da sociedade. / Comentando este ponto de vista de Sen,
pergunta Ralf Dahrendorf: "Porque é que os homens, quando está em jogo a
sua sobrevivência, não tomam simplesmente para si aquilo em que
supostamente não devem tocar mas que está ao seu alcance? Como é que o
/direito / e a /ordem / podem ser mais fortes que o /ser / ou /não ser /
?" Lendo Sen, podemos dizer que a resposta está na /falta de direitos. /
Ou na /falta de poder. / Este é o problema decisivo, não o /problema da
escassez. /

Dahrendorf faz ainda outra pergunta: "o que seria preciso para modificar
as /estruturas de direitos, / de modo a que mais ninguém tivesse fome?"
A própria pergunta parece encerrar a ideia de que é necessário
/modificar as estruturas de direitos / (i. é, as /estruturas do poder /
). Como o /poder, / as /relações de poder / e as /estruturas do poder /
estão fora da análise da /ciência económica dominante, / é necessário
que a ciência económica não continue a adiar a busca de um /outro padrão
de racionalidade. / A ciência económica tem de assumir-se de novo como
/economia política, / como um /ramo da filosofia social, / porque "a
economia contemporânea tem mais necessidade de filósofos do que de
econometristas."

      *9. * Nos dias de hoje, o capitalismo dominado pelo capital
financeiro vem recorrendo a todos os meios (mesmo se não legítimos) para
salvaguardar as /rendas parasitas / de que se alimenta. E estas são
rendas de tipo feudal, que traduzem a /crescente exploração dos
trabalhadores, / na tentativa de contrariar a /tendência para a baixa da
taxa média de lucro nos sectores produtivos, / que as chamadas /crises
do petróleo / da década de 1970 trouxeram à luz do dia. Também por isso,
este /capitalismo rentista / vem gerando crises cada vez mais frequentes
e cada vez mais difíceis de ultrapassar, indispensáveis para destruir o
capital em excesso perante a escassez da procura global.

Esta situação de crise permanente não pode manter-se por muito tempo. E
o /crime sistémico / (que hoje constitui a essência do capitalismo) não
pode continuar impune indefinidamente. Após um longo período de
degradação, o sistema feudal acabou por ceder o seu lugar à nova
sociedade capitalista, quando as relações de produção, assentes na
/propriedade feudal / da terra e na /servidão pessoal, / deixaram de
poder assegurar as rendas, os privilégios e o estatuto dos senhores
feudais, que já não tinham mais margem para novas exigências aos
trabalhadores servos. Pode acontecer que estas crises recorrentes do
capitalismo e esta fúria de tentar resolvê-las, com tanta violência, à
custa dos salários, dos direitos e da dignidade dos trabalhadores
(confirmando a natureza do capitalismo como /civilização das
desigualdades / ), sejam o prenúncio de que as actuais estruturas
capitalistas já não conseguem, nos quadros da vida democrática, garantir
as /rendas / e o estatuto das classes dominantes.

Num livro de 1998, Eric Hobsbawm defendeu que "há sinais, tanto
externamente como internamente, de que chegámos a um ponto de crise
histórica. (…) O nosso mundo corre o risco de explosão e de implosão.
Tem de mudar." E conclui: "O futuro não pode ser uma continuação do
passado." Tudo parece indicar que estamos próximos (em tempo medido à
velocidade da História, que não da nossa própria vida) deste momento.
Este diagnóstico com mais de vinte anos tem hoje ainda mais razão de
ser, neste tempo da /inteligência artificial. / A razão está do nosso
lado. Como costumo dizer, meio a brincar e muito a sério, /o capitalismo
tem os séculos contados. /

*[*] Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra <https://www.fd.uc.pt/~anunes/carreira.html> .

O original encontra-se em /O Militante/
<http://omilitante.pcp.pt/pt/364/Actualidade/1397/O-neoliberalismo-n%C3%A3o-%C3%A9-compat%C3%ADvel-com-a-democracia.htm?tpl=142>

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/portugal/avelas_fev20.html
19/2/2020

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