domingo, 5 de abril de 2020

A pandemia e o fim da era neoliberal




// Atílio Boron

Falta ainda saber quase tudo da actual crise. Instalou-se a ideia de que
“nada poderá voltar a ser como dantes”. Alguns pensadores avançam uma
perspectiva talvez demasiado optimista, porque nenhuma pandemia pode
constituir um factor de transformação radical da sociedade. Que o
capitalismo pode sofrer um forte abalo, é previsível. O que virá depois
não depende de nenhuma especulação filosófica, depende - como afirmou
Lénine - da existência, ou não, «de forças sociais e políticas que o
façam cair».

O coronavírus desencadeou uma torrente de reflexões e análises que têm
como denominador comum a intenção de traçar os contornos (difusos) do
tipo de sociedade e economia que ressurgirão uma vez que o flagelo tenha
sido controlado. Sobram razões para se aventurar nesse tipo de
especulação, oxalá bem informado e controlado, porque se de alguma coisa
estamos completamente seguros é que a primeira fatalidade que a pandemia
cobrou foi a versão neoliberal do capitalismo. E digo a “versão” porque
tenho sérias dúvidas de que o vírus em questão tenha operado o milagre
de acabar não só com o neoliberalismo como também com a estrutura que o
sustenta: o capitalismo como modo de produção e como sistema
internacional. Mas a era neoliberal é um cadáver ainda insepulto mas
impossível de ressuscitar. Que acontecerá com o capitalismo? Bem, é
disso que trata esta coluna.

Simpatizo muito com a obra e a pessoa de Slavoj Zizek, mas isso não é
suficiente para concordar com ele quando sentencia que a pandemia
assestou um “golpe tipo Kill Bill no sistema capitalista” após o qual,
seguindo a metáfora cinematográfica, este deveria cair morto dentro de
cinco segundos. Isso não aconteceu e não acontecerá porque, como Lénine
lembrou em mais de uma ocasião, “o capitalismo não cairá se não existem
as forças sociais e políticas que o façam cair”. O capitalismo
sobreviveu à mal designada “gripe espanhola”, que agora sabemos ter
surgido no Kansas em Março de 1918, na base militar de Fort Riley, e que
depois as tropas norte-americanas que marcharam para combater na
Primeira Guerra Mundial disseminaram incontrolavelmente o vírus.

Os muito imprecisos cálculos da sua letalidade oscilam entre 20, 50 e
100 milhões de pessoas, pelo não é necessário ser um obcecado pelas
estatísticas para desconfiar do rigor dessas estimativas amplamente
difundidas por muitas organizações, incluindo a National Geographic
Magazine. O capitalismo também sobreviveu ao tremendo colapso global
produzido pela Grande Depressão, demonstrando uma resiliência incomum -
já observada pelos clássicos do marxismo - para processar crises e
inclusivamente sair delas mais forte. Pensar que, na ausência daquelas
forças sociais e políticas indicadas pelo revolucionário russo (que de
momento não são perceptíveis nem nos Estados Unidos nem nos países
europeus), se produzirá agora a tão esperada morte de um sistema imoral,
injusto e predatório, inimigo mortal da humanidade e a natureza, é mais
uma expressão de desejos do que produto de uma análise concreta.

Zizek confia que, para se salvar na sequência desta crise, a humanidade
terá a possibilidade de recorrer a “alguma forma de comunismo
reinventado” (https://lahaine.org/fR3B). É possível e desejável, sem
dúvida. Mas, como quase tudo na vida social, dependerá do resultado da
luta de classes; mais concretamente de se, voltando a Lénine, “os de
baixo não querem e os de cima não podem continuar a viver como antes”,
coisa que até ao momento não sabemos. Mas a bifurcação da saída desta
conjuntura apresenta outro resultado possível, que Zizek identifica
muito claramente: “a barbárie”. Ou seja, a reafirmação da dominação do
capital recorrendo às formas mais brutais de exploração económica,
coerção político-estatal e manipulação de consciências e corações por
meio de sua até agora intacta ditadura mediática. “Barbárie”, costumava
István Mészarós dizer com uma dose de amarga ironia, “se tivermos sorte”.

Mas por que não pensar em alguma saída intermediária, nem a tão temida
“barbárie” (da qual há muito tempo nos vêm sendo administradas doses
crescentes nos capitalismos realmente existentes) nem a tão desejada
opção de um “comunismo reinventado”? Por que não pensar que uma
transição para o pós-capitalismo será inevitavelmente “desigual e
combinada”, com avanços profundos em alguns terrenos: a
desfinanceirização da economia, a desmercantilização da saúde e da
segurança social, por exemplo, e outros mais vacilantes, tropeçando com
maiores resistências por parte da burguesia, em áreas tais como o
rigoroso controlo do casino financeiro mundial, a nacionalização da
indústria farmacêutica (para que os medicamentos deixem de ser uma
mercadoria produzida em função da sua rentabilidade), das indústrias
estratégicas e dos meios de comunicação, além da recuperação pública dos
chamados “recursos naturais” (bens comuns, na verdade)? Por que não
pensar nos “muitos socialismos” dos quais falava premonitoriamente o
grande marxista inglês Raymond Williams em meados dos anos oitenta do
século passado?

Ante a proposta de um “comunismo reinventado”, o filósofo sul-coreano de
Byung-Chul Han entra na arena para refutar a tese do esloveno e
arrisca-se a dizer que “depois da pandemia, o capitalismo continuará com
mais pujança”. É uma afirmação temerária, porque se algo se vem
desenhando no horizonte é a reivindicação generalizada de toda a
sociedade em favor de uma intervenção estatal muito mais activa para
controlar os tresloucados efeitos dos mercados na prestação de serviços
básicos de saúde, habitação, segurança social, transporte, etc. e para
acabar com o escândalo da hiperconcentração de metade de toda a riqueza
do planeta nas mãos dos 1% mais ricos da população mundial.

Esse mundo pós-pandemia terá muito mais Estado e muito menos mercado,
com populações “conscientizadas” e politizadas pelo flagelo a que foram
sujeitas e propensas a buscar soluções solidárias, colectivas e até
“socialistas” em países como os Estados Unidos, lembra-nos Judith
Butler, repudiando o desenfreio individualista e privatista exaltado
durante quarenta anos pelo neoliberalismo e que nos levou à situação
trágica que estamos a viver. E também um mundo em que o sistema
internacional já adoptou, definitivamente, um formato diferente ante a
presença de uma nova tríade dominante, embora o peso específico de cada
um dos seus actores não seja igual.

Se Samir Amin estava certo no final do século passado, quando falava da
tríade formada pelos Estados Unidos, Europa e Japão, hoje ela
constituída pelos Estados Unidos, China e Rússia. E, ao contrário da
ordem tripolar anterior, onde a Europa e o Japão eram junior partners
(para não dizer peões ou lacaios, o que soa um tanto depreciativo, mas é
a caracterização que merecem) de Washington, hoje este tem que lidar com
a formidável potência económica chinesa, sem dúvida o actual motor da
economia mundial relegando os EUA para um segundo lugar e que, além
disso, assumiu a liderança na tecnologia 5G e na Inteligência Artificial.

Ao anteriormente dito junta-se a não menos ameaçadora presença de uma
Rússia que voltou ao primeiro plano da política mundial: rica em
petróleo, energia e água; dona de um imenso território (quase o dobro da
extensão dos Estados Unidos) e de um poderoso complexo industrial que
produziu uma tecnologia militar de ponta que em algumas áreas decisivas
supera a dos Estados Unidos, a Rússia complementa com a sua força no
campo militar a que a China ostenta no terreno da economia. É difícil
para o capitalismo, como Han diz, adquirir força renovada neste cenário
internacional tão pouco promissor. Se teve a gravitação e a penetração
global que soube ter foi porque, como disse Samuel P. Huntington, havia
um “xerife solitário” que sustentava a ordem capitalista mundial com sua
inapelável primazia económica, militar, política e ideológica. Hoje, a
primeira está nas mãos da China e os enormes gastos militares dos EUA
não podem com um pequeno país como a Coreia do Norte nem para vencer uma
guerra contra uma das nações mais pobres do planeta como o Afeganistão.

A ascendência política de Washington permanece apenas, presa por
alfinetes, no seu “pátio traseiro”: América Latina e Caribe, mas por
entre grandes convulsões. E o seu prestígio internacional viu-se muito
debilitado: a China conseguiu controlar a pandemia e os Estados Unidos
não; China, Rússia e Cuba ajudam a combatê-la na Europa, e Cuba, exemplo
mundial de solidariedade, envia médicos e medicamentos para os cinco
continentes, enquanto a única coisa que ocorre aos que transitam pela
Casa Branca é enviar 30.000 soldados para um exercício militar com a
NATO e intensificar as sanções contra Cuba, Venezuela e Irão, no que
constitui um evidente crime de guerra. A sua antiga hegemonia já é coisa
do passado.

O que hoje é discutido nos corredores das agências governamentais dos
EUA não é se o país está em declínio ou não, mas a inclinação e o ritmo
do declínio. E a pandemia está a acelerar este processo hora a hora.

O sul-coreano Han tem razão, por outro lado, quando afirma que “nenhum
vírus é capaz de fazer a revolução”, mas cai em redundância quando
escreve que “não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus”. Claro
que não! Vejamos o registo histórico: a Revolução Russa estalou antes da
pandemia da “gripe espanhola”, e a vitória dos processos revolucionários
na China, Vietnam e Cuba não foi precedida por nenhuma pandemia.

A revolução fazem-na as classes subalternas quando tomam consciência da
exploração e opressão a que estão sujeitas; quando vislumbram que longe
de ser uma ilusão inatingível, é possível um mundo pós-capitalista e,
finalmente, quando conseguem obter uma organização à escala nacional e
internacional eficaz para lutar contra uma “burguesia imperial” que
outrora entrelaçava fortemente os interesses dos capitalistas nos países
desenvolvidos. Hoje, graças a Donald Trump, essa unidade de ferro no
topo do sistema imperialista foi irreparavelmente quebrada e a luta lá
em cima é de todos contra todos, enquanto China e Rússia continuam
pacientemente e sem ruído a construir alianças que sustentarão uma nova
ordem mundial.

Uma última reflexão. Creio que há que calibrar a extraordinária
severidade dos efeitos económicos desta pandemia, que tornarão o retorno
ao passado uma missão impossível. Os diferentes governos do mundo foram
forçados a enfrentar um cruel dilema: a saúde da população ou o vigor da
economia. Declarações recentes de Donald Trump (e de outros responsáveis
como Angela Merkel e Boris Johnson), no sentido de que não vão adoptar
uma estratégia para conter o contágio colocando em quarentena grandes
sectores da população, porque isso paralisaria a economia destaca a
contradição básica do capitalismo. Porque, convém recordá-lo, se a
população não vai trabalhar o processo de criação de valor é
interrompido e não há nem extracção nem realização de mais-valia. O
vírus salta das pessoas para a economia, e isso provoca o pavor dos
governos capitalistas que estão renitentes em impor ou manter a
quarentena porque a comunidade empresarial precisa que as pessoas saiam
às ruas e trabalhem, mesmo sabendo que põem em risco a sua saúde.

Segundo Mike Davis nos EUA 45% da força de trabalho “não tem acesso a
licença remunerada devido a doença e é praticamente obrigado a ir
trabalhar e transmitir a infecção ou ficar com o prato vazio”. A
situação é insustentável do lado do capital, que precisa de explorar sua
força de trabalho e para quem é intolerável que esta fique em casa; e do
lado dos trabalhadores que, se forem trabalhar ou se infectam ou fazem o
mesmo com os outros, e se ficam em casa não têm dinheiro para atender às
suas necessidades mais básicas. Essa encruzilhada crítica explica a
crescente beligerância de Trump contra Cuba, Venezuela e Irão e a sua
insistência em atribuir a origem da pandemia aos chineses. Tem que criar
uma cortina de fumo para ocultar as nefastas consequências de largas
décadas de subfinanciamento do sistema público de saúde e a cumplicidade
com as vigarices estruturais da medicina privada e da indústria
farmacêutica no seu país. Ou atribuir a causa da recessão económica a
quem aconselha as pessoas a ficar em casa.

Em qualquer caso, e para além de se a saída desta crise será um
“comunismo renovado”, como Zizek quer, ou uma experiência híbrida mas
claramente apontando na direção do pós-capitalismo, esta pandemia (como
claramente explicam Mike Davis, Mike Davis, David Harvey, Iñaki Gil de
San Vicente, Juanlu González, Vicenç Navarro, Alain Badiou, Fernando
Buen Abad, Pablo Guadarrama, Rocco Carbone, Ernesto López, Wim
Dierckxsens e Walter Formento em diversos artigos que circulam
profusamente na web) moveu as placas tectónicas do capitalismo global e
nada poderá voltar a ser como antes. Além disso ninguém quer, salvo o
punhado de magnatas que enriqueceram com a selvagem rapina perpetrada
durante a era neoliberal, que o mundo volte a ser como antes.

Tremendo desafio para os que queremos construir um mundo pós-capitalista
porque, sem dúvida, a pandemia e os seus devastadores efeitos oferecem
uma oportunidade única, inesperada, que seria imperdoável não
aproveitar. Portanto, a palavra de ordem do momento para todas as forças
anticapitalistas do planeta é: conscientizar, organizar e lutar; luta
até ao fim, como queria Fidel quando, numa memorável reunião com
intelectuais realizada no âmbito da Feira Internacional do Livro de
Havana, em Fevereiro de 2012, se despediu de nós dizendo: “Se vos
disserem: pode estar seguro que o planeta vai acabar e se acaba esta
espécie pensante, o que vão fazer, pôr-se a chorar? Creio que há que
lutar, é o que sempre fizemos.” Mãos à obra!

Fonte: https://www.lahaine.org/mundo.php/la-pandemia-y-el-fin

In
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/a-pandemia-e-o-fim-da/
5/4/2020

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