sexta-feira, 5 de junho de 2020

O capitalismo ensaia a sua distopia espacial




Alex Martins Moraes


Uma interessante reflexão sobre a recente aventura da SpaceX, e a
campanha mediática que trouxe consigo. Como se o futuro espacial da
humanidade passasse a ficar atrelado aos planos de um novo grupo de
capitalistas cujos empreendimentos configuram o chamado “NewSpace”,
termo que indica, basicamente, a chegada do capitalismo ao espaço e o
casamento entre exploração espacial e rentabilidade empresarial directa.

Em plena preparação de uma nova corrida espacial, o ambiente ideológico
cultivado nos principais veículos de divulgação científica ao redor do
globo parece diferir daquela exaltação abstratamente humanista e
tecnológica que pautou os primeiros momentos da exploração cósmica, na
segunda metade do século XX. Em meio à primeira viagem espacial
tripulada empreendida por uma nave privada (iniciada em 30 de maio), o
caráter genial do empresário Elon Musk, sua perseverança e agressividade
investidora são exaltados como fenômenos quase tão fascinantes quanto a
possibilidade de orbitar a Terra, pisar o solo lunar ou instalar
colônias em Marte. O futuro espacial da humanidade parece estar atrelado
aos planos de um novo grupo de capitalistas cujos empreendimentos
configuram o chamado “NewSpace”, termo que indica, basicamente, a
chegada do capitalismo ao espaço e o casamento entre exploração espacial
e rentabilidade empresarial direta.

Os atores capitalistas que patrocinam a expansão do “NewSpace”
apresentam-se – e são apresentados – às audiências globais como
indivíduos dinâmicos, ousados e esforçados que vão construindo um lugar
para si onde, até algumas décadas atrás, apenas o Estado anquilosado
exercia sua obscura soberania. Elon Musk, CEO da SpaceX, a companhia
contratada pela NASA para levar seus astronautas à Estação Espacial
Internacional, encarna o destino que o capitalismo pós-fordista prometeu
a todos nós, mas que apenas alguns puderam experimentar realmente. Ele é
um livre empreendedor cujos esforços laborais se desenvolveram palmo a
palmo com suas habilidades intelectuais, no marco de negócios lucrativos
que revelaram uma contribuição singular e decisiva à humanidade. Os
artífices da expansão capitalista rumo ao infinito são o venerado
emblema dos efeitos revolucionários que uma razão empresarial
universalizada pode desencadear. Quem toca o espaço sideral legitima,
imediatamente, seu modo de vida, seu projeto civilizacional. As
potências rivais da Guerra Fria sabiam bem disso, assim como seus
sucessores oriundos do Vale do Silício. Os efeitos ideológicos
proporcionados por essa nova incursão à fronteira final vêm reforçar a
atual apologia do “libertarianismo de direita” que, segundo o etnógrafo
David Valentine, constitui a inclinação doutrinária prevalente entre os
empresários da nova corrida espacial.

Mas nem sempre as portas do universo estiveram abertas à livre
iniciativa. Em 1967, foi firmado o Tratado do Espaço Sideral, que vetava
a instalação de armas nucleares fora da Terra e excluía os corpos
celestes de qualquer reivindicação de propriedade, ainda quando
admitisse a exploração dos recursos ali existentes, desde que em
benefício de toda a humanidade. Estes lineamentos também apareceram, em
1984, no Tratado da Lua, que proíbe a propriedade privada de recursos
extraterrestres, confere aos Estados a prerrogativa de elaborar e
gerenciar os procedimentos para a exploração desses mesmos recursos e
determina que seus benefícios sejam distribuídos equitativamente entre
todas as nações signatárias, privilegiando os países em desenvolvimento.
Os Estados Unidos nunca aderiram a este segundo acordo, por
identificarem nele conotações “socialistas”. Diante da desistência de
sua contraparte norte-americana, a China e a União Soviética também se
retiraram das negociações.

O espírito do Tratado do Espaço Sideral de 1967 acenava para uma espécie
de comunismo espacial que restringia a expansão do capital mais além da
Terra. Do ponto de vista capitalista, as enormes somas de dinheiro
necessárias para assegurar a presença humana no espaço seriam
simplesmente impossíveis de alocar se não assegurassem uma produção de
valor futuro capaz de justificar os riscos assumidos no presente. Por
exemplo, de que serviria saber que o preço dos metais contidos num único
asteroide do tamanho de um campo de futebol alcança a soma de 50 bilhões
de dólares, se tais dividendos não pudessem estar imediatamente
acessíveis à reprodução do capital? Os entraves jurídicos impostos pela
correlação de forças da Guerra Fria fizeram com que a rentabilidade dos
investimentos monetários em incursões siderais ficasse, por muitas
décadas, restrita à órbita da Terra e se concentrasse no mercado da
comunicação satelital. Este mercado, diga-se de passagem, está em pleno
desenvolvimento. Nele, a empresa de Elon Musk joga um papel central, já
que projeta colocar em órbita uma rede de 11.943 satélites, que
assegurariam conexão à internet de alta velocidade em qualquer ponto do
planeta.

As restrições herdadas da ordem mundial prévia à queda do Muro de Berlim
começaram a ser postas abaixo em 2017, quando a Lei de Livre Comércio do
Espaço Americano, apresentada à Câmara de Deputados dos Estados Unidos,
decretou unilateralmente que “o espaço não é um bem comum”. Nas palavras
dos pesquisadores Victor Shammas e Tomas Holen, isto rompe
definitivamente os tratados precedentes e “abre o caminho para os
direitos de propriedade privada e a exploração de recursos preciosos no
espaço sideral”. De fato, os principais atores econômicos do NewSpace já
pressionam governos nacionais e entidades supranacionais a criarem
marcos regulatórios que permitam o zoneamento dos astros, de modo que as
atividades econômicas ali realizadas possam transcorrer sem
interferências e disputas. Mas enquanto isto não acontecer, deverá
primar uma lógica de faroeste, segundo vaticinou o senador Ted Cruz,
presidente do Subcomitê de Comércio do Espaço do Senado dos Estados
Unidos. Já podemos prefigurar um prolongamento galáctico do sistema
capitalista internacional com o qual estamos acostumados, onde as
desigualdades estruturais crônicas remetem aos monopólios instaurados na
marra durante os primórdios da expansão colonial.

Como é de praxe sob regimes neoliberais, a cruzada empreendedora rumo ao
cosmos conta com pesados subsídios estatais. Segundo uma nota publicada
no Los Angeles Times, até 2015 só as empresas de Elon Musk, entre elas a
SpaceX, haviam recebido 4,9 bilhões de dólares em subsídios públicos –
isso para não falar dos contratos multimilionários com o governo para
realizar viagens à Estação Espacial Internacional ou colocar satélites
militares em órbita. A autoconfiança e os riscos assumidos pelo grande
empreendedor individual se amparam, claro está, na adesão ideológica e
nos interesses corporativos de quem decide colocar os cofres públicos a
serviço das novas vanguardas da humanidade capitalista. Graças a uma
articulação entre o empreendedorismo espacial, as doutrinas de livre
mercado respaldadas por certos lobbies de investidores que operam junto
ao poder político e o unilateralismo despótico de uma potência econômica
como os Estados Unidos, o espaço sideral vai se transformando em espaço
do capital. O comunismo cósmico latente no Tratado de 1967 tornou-se
letra morta no exato momento em que a lógica da mercadoria passou a
reger o futuro “multi-planetário” da espécie humana. A partir de agora,
as condições e consequências do acesso ao espaço sideral já não podem
ser encaradas como matéria de deliberação coletiva e multipolar. Nada
está garantido. A comunização do espaço, enquanto perspectiva política
viável, está novamente condicionada ao porvir nebuloso da luta de classes.

Defrontado com as profundezas do espaço, o capital se vê em condições de
prognosticar para si um desenvolvimento infinito. A Terra e os
“recursos” nela existentes já não constituem a condição básica e o
limite absoluto da produção de valor. Aos olhos do NewSpace, nosso
planeta se transforma no lugar onde, por meio de (des)regulações
adequadas, a capacidade empreendedora toma impulso para alcançar as
estrelas. A Terra é a base de lançamento civilizacional de um
capitalismo literalmente universal. Esta perspectiva flerta, inclusive,
com a agenda ecologista contemporânea, na medida em que pretende
desfazer a contradição gritante entre acumulação de riquezas e
preservação do habitat humano. É de se duvidar, no entanto, que os
avanços tecnológicos necessários à exploração capitalista eficiente dos
“objetos” cósmicos aconteçam a tempo de evitar uma catástrofe ambiental
irreversível. Mas essa objeção, por si só, não basta. O que, sim,
devemos questionar é a ambição dos ideólogos e operadores do capital de
tomar para si a tarefa de cuidar da espécie, como se nossa máxima
aspiração como seres humanos consistisse, simplesmente, em viver e
deixar viver, a qualquer custo.

O salvacionismo do NewSpace torna dramaticamente visível um aspecto
central da vida social contemporânea, a saber: estamos completamente
submetidos a um paradigma de governo cuja expressão ideológica seria o
que Alain Badiou denomina “humanismo animal”. Isto significa que a única
preocupação que parece corresponder a toda a humanidade diz respeito à
sua própria sobrevivência biológica. Neste cenário, quaisquer
desigualdades e hierarquias passam a ser justificáveis – ou ficam em
segundo plano – sempre e quando nossa vida animal estiver assegurada.
Tal perspectiva chega ao paroxismo quando o capitalismo espacial nos
acena com um futuro onde viveremos tranquilos, num planeta sustentável,
enquanto máquinas de ponta mineram asteroides e planetas pelo sistema
solar afora. Tudo isso ao módico preço de continuarmos trabalhando para
o capital, tanto na Terra como em outros corpos celestes, submetidos às
suas hierarquias e imersos num silêncio político massivo – um silêncio
animal.
Em meio a esse silêncio angustiante, a voz de Chris Lewicki, fundador da
empresa Planetary Resources, que desenvolve tecnologia para a mineração
de asteroides, vaticina uma distopia na qual milhões de pessoas
trabalharão fora do planeta e a exploração de corpos celestes assegurará
as bases de uma nova economia industrial no espaço.

Em meio ao furor gerado pelo primeiro voo tripulado da SpaceX, temos a
oportunidade de examinar o modelo de realização pessoal e coletiva que
Elon Musk representa e que, em maior ou menor medida, interpela a todos
nós. Vimos que esse modelo reafirma um regime de desenvolvimento humano
assente na articulação sinérgica – tipicamente neoliberal – entre livre
iniciativa, pressão corporativa e despotismo estatal. Vimos, também, que
dele está excluída qualquer concepção da existência humana que não seja
meramente animal e que condicione o uso dos bens comuns – entre eles, o
espaço sideral – ao autogoverno coletivo e racional da própria espécie.
Os novos capitães da indústria espacial anunciam para todos nós um
futuro de mera sobrevivência subserviente, aqui ou em Marte; futuro no
qual a única razão realmente ativa e determinante para a ampliação da
experiência humana seria aquela razão acumuladora reivindicada por um
punhado de autocratas que exigem de seus empregados trabalho exaustivo,
sorriso no rosto e uma adesão religiosa à “Visão” do executivo-chefe.

O capital pretende maquinar ad infinitum, através de nós e através dos
astros, organizando a todos e a tudo segundo as hierarquias e categorias
que sustentam e garantem sua própria reprodução. Como nunca antes, é
mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, posto
que este último já planeja, de fato, subsistir além da Terra. Seja como
for, e justamente porque estamos falando de capitalismo, uma certeza nos
resta: agora que, virtualmente, a Terra deixou de ser um limite para o
modo de produção vigente, apenas nós, seres humanos, poderemos
interrompê-lo. Sendo assim, nosso destino cósmico já não depende da
pergunta sobre se queremos ou não sobreviver, mas sim sobre como
queremos viver juntos e o que estamos dispostos a fazer para assumir,
novamente, o controle sobre nossas vidas.

In
OUTRAS PALAVRAS
https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/o-capitalismo-ensaia-sua-distopia-espacial//
2/6/2020

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