segunda-feira, 1 de junho de 2020
*A “Nova Economia do Projetamento” e a resistência chinesa à pandemia*
*por Elias Jabbour *
Desde algum tempo tenho argumentado que a China havia adentrado uma nova
etapa de desenvolvimento. Esta “nova etapa” tem relação direta com duas
ocorrências. A primeira, relacionada com a elevação, nos últimos 40
anos, do papel qualitativo do Estado, enquanto o setor privado cresceu
continuamente de forma quantitativa.
Essas duas tipologias de crescimento foram sendo mediadas por ondas de
inovações institucionais, que por sua vez, consolidaram uma nova classe
de formações econômico-sociais que intitulo de “socialismo de mercado”.
Trata-se de uma formação onde diferentes modos de produção convivem em
unidade de contrários, sendo o modo de produção “socialista” o
dominante. O modo de produção capitalista anexo a esta nova formação
econômico-social é mais largo que o setor estatal, mas não passa de um
setor dependente dos efeitos de encadeamento gerados pelos 97 grandes
conglomerados empresariais estatais e seu braço financeiro público – uma
míriade de bancos de desenvolvimento espalhados em todos os níveis, do
nacional o municipal.
*Retomando: “superação da incerteza keynesiana”*
A segunda ocorrência tem relação com o desenvolvimento de alguns
atributos próprios do modo de produção dominante. Imensas capacidades
estatais foram desenvolvidas de forma que o socialismo de mercado passou
a um patamar superior de desenvolvimento. Imensas capacidades produtivas
instaladas – fruto de quase 20 anos de taxas de investimento acima de
40% do PIB; essa grande base de oferta agregada sujeita a nenhum tipo de
restrição externa e existência de um poderoso sistema de intermediação
financeiro público provê o país de soberania monetária praticamente
ilimitada: o Estado é o maior devedor de si mesmo e em moeda própria.
Grandes instituições de Estado empregando a fina flor da inteligência
nacional tem produzido massa crítica suficiente para gerar soluções /ex
ante/ às contradições geradas pelo próprio processo rápido de
crescimento. Essas características tornaram aquela economia não somente
planificada – apesar de orientada ao mercado –, mas também movida por
grandes projetos. O “ente” projeto surge no horizonte baseado em uma
nova métrica (que difere da utilidade marginal aos neoclássicos e do
trabalho aos clássicos) valores de uso sob a forma de grandes bens
públicos. O nome dessa nova etapa é uma homenagem que damos a Ignacio
Rangel, o autor de “Elementos de Economia do Projetamento” (1959): “Nova
Economia do Projetamento”. Seu atributo distintivo, após o acúmulo das
capacidades estatais acima citadas: a superação da “incerteza keynesiana”.
Leia também: Estudo da Fiocruz aponta maior aceleração da Covid-19 no
Norte e Nordeste
<https://jornalggn.com.br/coronavirus/estudo-da-fiocruz-aponta-maior-aceleracao-da-covid-19-no-norte-e-nordeste/>
Outros dois atributos são passíveis de abordagem no sentido de comparar
essa “nova economia” com as capitalistas e financeirizadas do Ocidente.
Um deles está no grau de coordenação estatal e o outro no que mais
adiante vou propor o nome de “pacto tácito de adesão”. O entrelaçamento
entre ambos atributos concorre para um Estado com todas as ferramentas
institucionais à sua disposição diante de grandes emergências. A “Nova
Economia do Projetamento”, como núcleo de uma proposta de sociedade de
caráter socializante, é uma “economia de prontidão”. O Estado não
somente constrói o mercado para o setor privado sentar praça. O Estado
socialista e a sociedade em um “pacto tácito de adesão” é o passo
adiante em relação ao próprio mercado.
*O centro da recuperação econômica mundial?*
A produção industrial chinesa tomou um verdadeiro tombo nos primeiros
trimestre. Uma queda de 13%. A contração econômica foi de 6,8% (com a
retração recorde na província de Hebei, o epicentro da pandemia de
39,2%) e o comércio exterior foi “bloqueado” em quase 30%. A taxa de
desemprego oficial está na casa de 5,5%. Estimativas não oficiais levam
este indice a patamares que podem ir de 15% a 20%. O déficit público
previsto para 2020 é de 3,6% do PIB, com o governo emitindo /bonds
/voltados diretamente a ajudar governos provinciais e empresas em
dificuldade.
Acrescentam-se a esses dados as hipóteses recorrentes sobre a
possibilidade de dois tipos de crise na China: de subconsumo e de
superinvestimento. Ambas as hipóteses são irreais. O consumo teve
crescimento de 9% em 2019 (o PIB cresceu pouco acima de 6%) e grandes
projetos infraestruturais – dentro e fora do país – têm garantido um
nível de utilização de capacidade de 77,5% em janeiro de 2020 – nada
mal, diga-se de passagem.
Com todos esses nada pequenos problemas o FMI projeta um crescimento ao
país para este ano de 1,2% e 9,2% para 2021. Ambos os dados são
impressionantes se compararmos com as projeções para todos os países do
G-20. Para ficarmos em alguns exemplos, os EUA podem ter PIB negativo
acima de 5%. A Alemanha, 4,2% negativos. A Coreia do Sul, 0,3%
positivos. O Brasil regredirá cerca de 5% com a desvantagem da pauta das
reformas liberais não ter saído de circulação. Enfim, tudo indica que a
China deverá ser o carro-chefe da recuperação econômica mundial, mesmo
diante de grandes incertezas sendo a principal delas se as políticas
industriais voltarão ao centro das alternativas em países de alto grau
de financeirização como os EUA e o próprio Brasil.
Leia também: "Carta a Josefa, minha avó", por José Saramago
<https://jornalggn.com.br/artigos/carta-a-josefa-minha-avo-por-jose-saramago/>
Evidente que não existe um mundo pós-pandemia já posto. A tendência dos
países a retornarem às políticas industriais demanda, por exemplo,
flexibilização total das regras fiscais no ãmbito da União Europeia.
Logo, a China – independente – de Trump, continuará sendo a alternativa
produtiva e financeira à periferia europeia, africana e latinoamericana
(entre junho e outubro o Equador receberá US$ 2,4 bilhões de empréstimos
chineses).
*O socialismo e a “Nova Economia do Projetamento”*
A escalada de tensões com os Estados Unidos antecipou a “paz necessária”
aos objetivos chineses em 29 anos. Ou seja, a “grande estratégia”
chinesa contava com um entorno pacífico até o ano de 2049. A paz acabou
e obriga os chineses a rearranjos internos nada pequenos, a começar pela
utilização de sua soberania monetária e da simbiose entre público e
privado para acelerar o desacoplamento tecnológico para com os EUA.
Torna-se estratégica a aliança anunciada entre o Estado chinês e as
gigantes Huawei, Alibaba e Tencent para executar US$ 1,4 trilhões em
investimentos em todos os setores de alta tecnologia. Essa capacidade de
gerar e executar grandes projetos pode ser a síntese do atual
significado do que o pensamento avançado germânico, e devidamente
captado em seu tempo por Ignacio Rangel, chamou de socialismo
científico. O capitalismo tornou-se gigante demais para ser tocado pela
“anarquia”. Sua versão financeirizada, lógica dominante, é por demais
instável quando os grandes problemas humanos demandam a força da razão e
a utilização dos novos aparatos tecnológicos dispostos como um convite à
mudança, ao novo e a novas formas de organização da própria sociedade
Existem caracteres societais que meu amigo e professor André Roncaglia
chama a atenção no sentido de demonstrar o sentido da “Nova Economia do
Projetamento”. Segundo Roncaglia a sociedade chinesa desenvolveu uma
capacidade “corporatista” que refletem as novas relações de produção que
emergem desta etapa superior de desenvolvimento do socialismo chinês. É
a materialização de um coletivo que se sobrepõe ao individual. Uma
sociedade projetada à adesão a grandes projetos de futuro. Mais do que
nunca o Partido Comunista da China (PCCh) cumpre seu papel de “Príncipe
Moderno”. Minha perspectiva sobre a sociedade e o Estado chineses é
amplamente oposta à de marxistas ocidentais como David Harvey, Zizek e
outros detratores daquela proposta de sociedade.
O exemplo da “guerra popular” anunciada por Xi Jinping contra o vírus
mortal é sugestivo desta sociedade “corporatista” sugerida por
Roncaglia. A “Nova Economia do Projetamento” foi posta em funcionamento
com um grau de coordenação estatal impensável a qualquer padrão
ocidental, daí a facilidade com que o conceito de “ditadura” oferece
diante da impossibilidade de explicar fenômenos novos que demandam novas
abordagens teóricas para melhor captação. Do ponto de vista operacional
– um hospital com 1.000 leitos foi construído em Wuhan em apenas dez
dias. Durante o processo de construção de barreiras ao vírus outros 16
hospitais improvisados foram construídfos, totalizando 13.000 leitos.
A Sinopec, gigante estatal de energia que produz matérias-primas para
máscaras industriais, levou 35 dias para redesenhar e reorientar suas
linhas de produção para apoiar a produção de máscaras médicas.
Nenhuma ditadura seria capaz de mobilizar 480 mil voluntários, quase a
totalidade membros do PCCh que saíam de suas residências às zonas de
combate embainhados com a velha bandeira vermelha com a foice e o
martelo. A disciplina mostrada pela sociedade chinesa durante os 72 dias
de reclusão não se explica pela força de uma ditadura. Não há ditadura
no mundo capaz de segurar em casa mais de um bilhão de habitantes. O que
existe, certamente e cheia de contradições, é um “pacto tácito de
adesão” entre povo e governo e entre a força política dirigente e seus
mais de 90 milhões de membros organizados em milhões de comitês de bairro.
Leia também: Paulo Guedes e o financiamento externo da política social,
por André Roncaglia
<https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/paulo-guedes-e-o-financiamento-externo-da-politica-social-por-andre-roncaglia/>
Por fim, mais acima fiz alusão ao chamado convite à mudança engendrado
por novos aportes tecnológicos. Lembro-me de Ignacio Rangel e dos traços
prometeicos que ele percebia na antiga Economia do Projetamento que
aparecia na União Soviética. Os chineses, e sua saga contra a pandemia
demonstram que o “convite à mudança” ensejada na fronteira tecnológica
atingida por algumas empresas estatais pode fazer emergir uma
antropologia filosófica que pensa o homem em sua afirmação racional, sem
fetiches e senhor de seu destino. O socialismo não é um fato fortuito, é
o devir esperado sendo construído historicamente. A “Nova Economia do
Projetamento” é a base material desta senda civilizacional.
EM TEMPO: Xi Jinping anunciou recentemente que a vacina a ser
desenvolvida na China se transformará em bem público mundial no dia
seguinte de sua descoberta.
*/Elias Jabbour (professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências
Econômicas (PPGCE) e em Relações Internacionais (PPGRI) da UERJ)./*
In
Jornal GGN
https://jornalggn.com.br/artigos/a-nova-economia-do-projetamento-e-a-resistencia-chinesa-a-pandemia-por-elias-jabbour/
1/6/2020
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