*por José Valenzuela Feijóo [*]
/"Men at some time are masters of their fates".
W. Shakespeare, Julius Caesar. /
Mural de Diego Rivera no Palácio da Presidência da República. /I –
Ciclos económicos: bem comportados ou "perversos" <#1>
II – As mudanças exigidas por uma crise estrutural <#2>
III – O caso da América Latina <#3>
IV – Rotas que preservam o regime capitalista
V – A rota demo-socialista /
*I – Ciclos económicos: bem comportados ou "perversos" *
O capitalismo, ao longo do seu desenvolvimento histórico, juntamente a
um crescimento significativo (do PIB por habitante e da produtividade do
trabalho), mostra-nos uma trajectória de oscilações no PIB que se
repetem reiteradamente. É o denominado /curso cíclico do sistema: / aos
períodos de expansão sucedem-se fases de recessão económica. Este
comportamento cíclico é inerente e específico do regime capitalista: não
existiu antes e pode-se prognosticar que depois tão pouco terá lugar. Em
suma, trata-se de um /fenómeno historicamente delimitado. / Logo, se é
algo próprio do regime capitalista, devemos também supor que se trata de
um /fenómeno endogenamente determinado. /
No curso do ciclo, em termos grossos podem-se distinguir duas fases e
dois momentos. A primeira fase é a do /auge cíclico, / em que os níveis
de actividade económica (Investimento, PIB, ocupação, etc) se expandem.
A fase desemboca no /ponto de crise / no qual cessa o crescimento e
abre-se um período de recessão. Esta /fase de recessão / (ou contracção)
implica descidas nos níveis de investimento, do PIB, do emprego, etc.
Desemboca num ponto em que a descida se detém e chega-se ao /ponto de
recuperação. / Temos então dois pontos ou momento: o que marca o ponto
mais alto ou crise e o que marca o ponto mais baixo (ou recuperação). E
duas fases, a de auge e a de recessão. A longitude do ciclo mede-se em
termos do tempo que transcorre entre o ponto mais baixo inicial e o
ponto mais baixo final. A profundidade conforme os níveis de ascensão ou
queda da actividade económica.
O ciclo e as crises que o acompanham como parte essencial, não são uma
desgraça. Cumprem uma função vital no desenvolvimento do sistema: /são
funcionais ao capitalismo. / Em que radica a funcionalidade das crises?
Para entender bem este aspecto convém recordar dois aspectos
elementares: no capitalismo, a produção subordina-se à lógica do capital
e esta é uma lógica de valorização: o famoso D-M-D' de Marx. Por outras
palavras, produz-se para obter lucros, para valorizar o capital
(maximizar (D'-D)/D ). Se isto não se verifica, a produção simplesmente
paralisa-se e há enormes massas de desempregados e tremendos défices no
plano do bem-estar material. Em segundo lugar temos que, durante a fase
de auge, vão-se dando certos processos que desembocam numa descida da
taxa de lucro. Com isso, o investimento afunda e começam a descer os
níveis da actividade económica. Convém sublinhá-lo: a descida da taxa de
lucro e a crise que a segue não caem dos céus, são engendradas pelo
próprio processo de auge e desenvolvimento anteriores. Em suma: /é o
auge que engendra a crise. / Terceiro, a crise abre o período de
recessão e nesta fase desdobram-se processos económicos que, ao fim de
certo tempo, recompõem as condições de valorização do capital. E quando
isto se verifica, chega-se ao ponto de recuperação, o qual abre uma nova
fase de auge económico: os capitalistas encontram novamente motivos para
investir e com isso volta-se a expandir a actividade económica. Aqui o
ponto a sublinhar seria: /é a recessão que engendra o ponto de
recuperação, pelo mesmo, um novo auge. / Esta é a lógica interna do
sistema: um auge que provoca a recessão e uma recessão que provoca um
novo auge e assim sucessivamente. Em termos metafóricos poderíamos dizer
que a crise é a manifestação ou sinal de que se acumulou demasiado lixo
nas tubagens do sistema. E que a recessão é a encarregada de limpar
essas tubagens e, assim, de por o sistema em novas condições para
funcionar dinamicamente. Por isso se fala de /funcionalidade. /
Quando a recessão cumpre essas funções de limpeza das tubagens, quando
recompõe a taxa de lucro e portanto volta a dinamizar a acumulação e o
crescimento, fala-se de um /"ciclo bem comportado". / Na maioria dos
casos conhecidos, foi o que aconteceu. Mas de vez em quando, no lapso de
uns 40-50 anos, tais funções não se cumprem bem. A recessão prolonga-se,
a recuperação demora mais do que o habitual e quando se verifica é fraca
e anémica. Por exemplo, como já se viu em 2014-15 nos EUA e
especialmente na Europa após a grande crise de 2007-09, o boom foi de
curta duração e gerou um crescimento baixo e irregular, com um
desemprego elevado e a ameaça de uma nova recessão num período de tempo
anormalmente curto. Neste caso, pode-se falar de um /"ciclo perverso ou
malcomportado". /
Por trás de um "ciclo perverso" ou "mal comportado" costumam ocultar-se
problemas de ordem maior. Estes têm a ver com uma estrutura – "padrão de
acumulação", "estrutura social da acumulação" ou algo semelhante – que
já não funciona, que periclitou como ordenamento sócio-económico
favorável à acumulação capitalista. A doença é mais grave e não pode ser
curada com o puro recurso de uma recessão clássica. Precisa-se de uma
cirurgia maior, que permita a ascensão a um novo padrão de acumulação.
No momento, não pensamos num salto a uma sociedade pós-capitalista. O
ponto é outro: é o próprio capitalismo, respeitando seus traços mais
essenciais, que exige uma mudança de ordem estrutural. Se assim são as
coisas, temos que uma crise cíclica também aparece como expressão de uma
/crise estrutural / (isto é, de um determinado padrão de acumulação) do
sistema.
Nossa hipótese é que a crise cíclica que começou em 2007 e estendeu-se
até 2009 ou um pouco mais é também uma crise de ordem estrutural. Daí a
pergunta: quais são as estruturas que se devem eliminar? Quais são as de
substituição?
Vale a pena notar que uma crise estrutural abre alguns graus de
liberdade, mas – de um modo geral – estes são poucos. Por outras
palavras, normalmente não existe uma única via de saída, mas também não
existe uma multiplicidade de alternativas. Neste caso, podemos falar de
"coerção estrutural da mudança histórica". Por outras palavras: diga-me
o que está a entrar em crise e te direi quais são as saídas possíveis:
as saídas não são independentes do que entrou em crise. Por exemplo, se
um dos problemas centrais tem sido uma péssima distribuição do
rendimento que leva a uma procura efectiva insuficiente, a superação da
crise pela repressão salarial (a receita neoclássica habitual) apenas
agrava a crise. [1] <#notas> Este mesmo problema, visto de um ângulo
mais geral, confronta-nos com uma noção ou hipótese mais abstracta: /a
mudança social também está sujeita a leis objectivas, / e se isto não se
cumprir, nenhuma teoria da mudança social poderia ser construída. O que,
entre outras coisas, significa também que as estruturas existentes,
incluindo as que devem fenecer, abrem certas possibilidades à mudança ao
passo que negam outras.
*II - As mudanças exigidas por uma crise estrutural *
Uma crise de ordem estrutural exige mudanças de ordem maior que afectam
não só a potência mundial de onde se desdobra esta crise. As mudanças
costumam abarcar o conjunto da economia mundial.
Se olharmos para a experiência histórica conhecida e apontarmos apenas
para o núcleo, podemos assinalar as seguintes mutações:
/1) Mudanças no padrão de acumulação em vigor na potência mundial
dominante.
2) Mudanças na correlação de forças existente entre as grandes potências
imperiais.
3) Mudanças no tipo de nexos que se estabelecem entre o centro e a
periferia do sistema. / Se se quiser, costuma-se assistir a uma
redefinição dos termos de dominação e dependência que tipificam a
economia mundial.
4) Mudanças no padrão de acumulação (ou nos padrões) em vigor nos países
periféricos. No nosso caso, importa a situação da América Latina.
Nestas notas, interessa-nos examinar o ponto 4. Mas antes, e para melhor
entender este mesmo aspecto, precisamos fazer uma breve menção às outras
dimensões da mudança.
Tomemos o caso dos EUA, a grande potência imperial e dominante. O
reordenamento estrutural com que se depara como desafio exige-lhe: a)
reduzir significativamente sua taxa actual de mais-valia e, portanto,
melhorar drasticamente a distribuição do rendimento em favor dos
assalariados. O que, de passagem, também facilitar reduzir a dívida das
famílias sem comprimir seus níveis de vida; b) dinamizar fortemente o
investimento privado: se actualmente absorve apenas 7% do excedente
total, deveria passar a uns 25% ou mais. Trata-se de investimento
produtivo, o que supõe que na esfera produtiva se eleve a rentabilidade.
Além disso, que na esfera financeira e improdutiva a rentabilidade seja
castigada. Ou seja, tem que se dar uma forte transferência da mais-valia
apropriada em favor do capital produtivo e contra o do
financeiro-especulatilvo; c) tal dinamização da acumulação exige uma
oferta tecnológica, de inovações de ordem maior com grande capacidade de
arrastamento (as tecnologia "limpas" e poupadoras de energia são um alvo
claro e promissor). A qual é difícil de conseguir sem um forte apoio e
gasto estatal (directo ou indirecto, via subsídios) em favor da
educação, da ciência e da tecnologia (I&D); d) deve-se melhorar
drasticamente as contas externasdo país. Mais precisamente, devem-se
dinamizar fortemente as exportações e regular o crescimento das
importações. A meta mínima deveria ser a de uma balança comercial
equilibrada. Ou então, como é próprio de toda potência imperial
exportadora líquida de capitais, que tal balança voltasse a ser
superavitária. Portanto, desempenhar um papel importante como factor de
realização da mais-valia produzida (no sentido Kalecki-Luxemburgo); e)
em geral, tais orientações exigem uma /activa intervenção estatal em
favor da acumulação e do crescimento. / O que, certamente, obriga a por
de lado as concepções neoliberais (R. Lucas et al) do tipo "toda
política económica é não só ineficiente; também impotente"; f) como
factor chave de mudança, exige-se uma alteração substancial do bloco de
poder. Neste, as posições de comando e hegemónicas devem passar da
oligarquia financeira-especulativa para o grande capital produtivo.
Neste contexto devemos advertir: boa parte do programa de D. Trump
assumia estas exigência, com uma óptica que esgrimia um nacionalismo com
alguns ingredientes fascistóides. [2] <#notas> Mas Trump teve uma
oposição implacável – proveniente do "deep state" – e não pôde
reeleger-se. [3] <#notas>
Sobre a segunda dimensão, temos um dado óbvio: com a crise, o mundo
unipolar de Bush acabou. Muito provavelmente, os EUA conservarão um
papel importante, mas agora e com não pouca boa sorte, como "potência
equivalente" ou já em processo de decadência e de ser superada pela
China e outras potências emergentes. Este reordenamento económico e
político, no âmbito da crise, deveria provocar conflitos inter-imperiais
agudos e maiores. Trata-se de redistribuir esferas de influência e, como
apontava Lenine (num livro recente sobre a China, também Kissinger),
estes deslocamentos costumam exigir uma coerção de tipo militar
(guerras). E as guerras, no mundo actual, serão feitas com armas
nucleares, que funcionarão com mísseis de idas e de voltas.
Quanto às relações centro-periferia basta dizer que o carácter da crise
e dos reordenamentos que coloca abre pelo menos a /possibilidade / de
obter, por parte da América Latina (em relação aos Estados Unidos, que
para o nosso hemisfério funciona como centro imperial), uma "dependência
negociada" que melhore – para a região – os termos da relação.
Naturalmente, que esta possibilidade seja aproveitada ou não e em que
grau depende da situação interna de cada país e/ou bloco regional, das
forças sociais que assumam o poder do Estado.
*III – O caso da América Latina *
Retomemos agora a quarta dimensão da mudança estrutural, concentrando
nossa atenção na América Latina.
Primeiro há que identificar o que aqui, na região, entra em crise. A
resposta é clara: a crise mundial na região deve exprimir-se como /crise
terminal do padrão neoliberal. / Precisemos o que isto significa e o que
não significa.
Crise terminal refere-se à dimensão económica do modelo neoliberal e
entendemo-la como incapacidade do modelo para gerar acumulação e
crescimento. Além disso, que as possíveis funções histórias que cumpriu
– que basicamente giram em torno do aumento da taxa de exploração e da
maior sujeição ao capital internacional financeiro – já foram
satisfeitas. Mais ainda, que nelas insistir torna-se danoso para o
próprio sistema: hoje, a dinâmica do capital não pode ser assente no
ideário neoliberal.
Isto não significa necessariamente que haja uma substituição mais ou
menos imediata da ordem neoliberal. Para o caso, recordemos o ABC: a
economia pode pressionar pela mudança, mas não a decide. A mudança, dada
a pressão da economia, torna-se uma questão de variáveis ideológicas e
políticas. Se estas não ajudarem a impulsionar a mudança, tal não
acontecerá.
Tendo estabelecido a crise terminal do modelo neoliberal, devemos agora
examinar as rotas possíveis para fora dele, o seu conteúdo e as suas
possibilidades históricas. Começamos por enumerar: 1) a rota que
preserva o modelo económico neoliberal ou a rota do pântano; 2) a rota
industrializante de natureza autoritária-ditatorial, com um provável
conteúdo fascistóide; 3) a rota de i,a industrialização de natureza
nacionalista e democrático-burguesa; 4) a industrialização de natureza
democrático-popular e socialista. A rota (1) assume a continuação do
modelo neoliberal. As rotas (2) e (3) preservam a matriz capitalista,
mas implicam modalidades diferentes de capitalismo (entre si e do modo
neoliberal). Em ambas cessa o papel hegemónico do capital financeiro
especulativo. O caminho (2) não altera substancialmente a relação
excedente-produto do modelo neoliberal, mas eleva fortemente a
acumulação. A rota (3) reduz a taxa de mais-valia e tenta aumentar (com
resultados incertos) a taxa de acumulação. A rota (4) visa ir para além
do capitalismo, deveria melhorar fortemente a distribuição do rendimento
e também os ritmos de crescimento. [4] <#notas>
11/Agosto/2021
(Continua)
[1] Sobre as causas da crise, tema que aqui não abordamos, ver José
Valenzuela Feijóo, "La gran crisis del capital. Trasfondo estructural e
impacto en México". UAM, México, 2009. Neste texto recusa-se a ideia de
uma crise puramente financeira e argumenta-se que há um fundo real e
estrutural que está na base dos mesmos problemas financeiros.
[2] Uma análise do programa de Trump, em J. Valenzuela Feijóo, "¿De la
crisis neoliberal al nacionalismo fascistoide?", em especial capítulos
I, II, III y IX. UAM-I, Ciudad de México, 2017
[3] E tudo parece indicar que nas eleições de 2020 sofreu de uma fraude
nada pequena.
[4] Uma advertência elementar deve ser feita: a nossa discussão
permanecerá a um nível bastante geral. Pela mesma razão, se passarmos à
análise desta ou daquela realidade concreta (país ou grupo de países),
sempre se encontrarão nuances, traços singulares, etc. Ou seja, será
preciso ajustar e modificar nestes ou naqueles pontos a análise do caso.
*[*] Professor de Teoria Económica, UAM, México. *
In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/mexico/am_latina_ago21_1.html
12/8/2021
sexta-feira, 13 de agosto de 2021
América Latina: Alternativas frente à crise (1)
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