segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Neoliberalismo e condição nacional

 
     

    *Prabhat Patnaik [*]

    O nacionalismo anti-colonialista que enformava a luta pela
    libertação dos países do terceiro mundo era, como é bem sabido, de
    um género inteiramente diferente do nacionalismo burguês que havia
    emergido na Europa durante o século XVII. Há uma tendência no
    ocidente, até mesmo entre progressistas, a tratar todo
    “nacionalismo” como uma categoria homogénea e reaccionária. Eles
    tratam até mesmo o nacionalismo anti-colonial como se não fosse
    diferente do nacionalismo burguês europeu, apesar das várias
    diferenças cruciais entre os dois.

    Pelo menos três destas diferenças são importantes. Primeiro, o
    nacionalismo europeu foi imperialista desde o princípio; segundo,
    ele nunca foi inclusivo pois sempre identificou um “inimigo interno”
    e terceiro, ele idolatrava a “nação”, colocando-a acima do povo,
    como uma entidade à qual o povo devia sacrifícios mas de que nada
    tinha a esperar em retorno. O nacionalismo anti-colonial, em
    contraste, não estava empenhado na aquisição de um império, era
    inclusivo e via a raison d'etre da nação na melhoria das condições
    de vida do povo. Uma vez que a luta anti-colonial era uma luta
    policlassista, incorporando os trabalhadores e camponeses, além da
    burguesia nacional, o carimbo de nacionalismo burguês da variedade
    europeia nunca poderia ser permissível.

    Uma vez que o campesinato era a classe numericamente mais
    significativa e arcava com o peso principal da opressão colonial,
    alguns autores chamaram-no de “nacionalismo camponês”. Mas a questão
    é que se este nacionalismo deve ser promovido e se a "nação" deve
    sobreviver como entidade contra a investida do imperialismo, que não
    termina com a concessão da independência política, então isto só
    pode ser conseguido com o apoio activo do campesinato. Segue-se que
    qualquer estratégia de desenvolvimento que seja opressiva para o
    campesinato é contrária ao projecto de construção da nação; conduz a
    uma fractura da nação face ao imperialismo.

    Isto descarta de imediato uma estratégia de desenvolvimento
    capitalista para países do terceiro mundo recém-libertados dos
    grilhões do imperialismo, uma vez que uma característica do
    capitalismo é a sua tendência imanente passar dos limites e minar o
    sector da pequena produção, incluindo a agricultura camponesa. Isto
    era um ponto reconhecido pelos movimentos anti-coloniais de
    libertação. Mesmo quando tais movimentos não era conduzidos por
    comunistas, eles perseguiam uma estratégia de desenvolvimento que,
    enquanto permitiam aos capitalistas que operassem, queria
    controlá-los, uma estratégia que nós caracterizamos como a
    estratégia dirigista.

    No interior da estratégia dirigista havia uma tendência para a
    diferenciação camponesa dentro da agricultura e, portanto, para um
    desenvolvimento do capitalismo a partir do próprio sector, combinado
    também com o capitalismo latifundiário, uma vez que o processo de
    redistribuição de terras nunca foi exaustivo. Mas nunca se permitiu
    que forças capitalistas de fora se intrometessem neste sector. A
    agricultura camponesa foi mantida isolada da burguesia monopolista
    interna, e muito menos do agrobusiness estrangeiro.

    Com a introdução de um regime neoliberal, este isolamento
    desapareceu. Pelo contrário, o próprio objectivo do neoliberalismo é
    desencadear o desenvolvimento irrestrito do capitalismo, ao invés de
    ter um capitalismo tolhido por controles de um Estado que procure
    proteger a agricultura camponesa dos "capitalistas externos". O
    neoliberalismo, portanto, mina necessariamente a agricultura camponesa.

    O ataque à agricultura camponesa na Índia verifica-se através de
    vários canais. Em primeiro lugar, as flutuações de preços,
    especialmente as quedas drásticas, haviam sido evitadas sob o regime
    dirigista, através da intervenção no mercado por agências
    governamentais tanto para a alimentação como para as culturas de
    rendimento /(cash crops)/. Embora nenhum governo anterior, antes do
    actual, tivesse retirado a protecção das culturas alimentares, a
    protecção oferecida às culturas de rendimento sob o regime dirigista
    foram retiradas, tendo todas as agências governamentais relevantes
    sido privadas da sua função de comercialização. Isto significava
    que, em anos de esmagamento de preços, os camponeses endividavam-se
    e depois nunca mais conseguiam efectuar o reembolso.

    Em segundo lugar, os preços de toda uma série de factores de
    produção aumentaram durante o período do neoliberalismo, mesmo
    quando os preços de venda, pelo menos no caso das culturas de
    rendimento, eram determinados no mercado mundial. Em particular, o
    custo do crédito para os camponeses aumentou na margem com a
    privatização dos bancos (com os bancos privados autorizados a operar
    a par dos nacionalizados). Embora os bancos privados também sejam
    obrigados a seguir regras relativas a uma certa proporção mínima de
    crédito destinado ao "sector prioritário" (no qual a agricultura
    ocupa um lugar de destaque), eles desrespeitam impunemente estas
    normas. Mesmo os bancos do sector público, apesar de terem feito
    melhor a este respeito, tiraram partido da progressiva afrouxamento
    da definição de "crédito agrícola", para negar o crédito à
    agricultura camponesa. Os camponeses foram assim empurrados para
    usurários privados que lhes cobravam taxas exorbitantes.

    Em terceiro lugar, os termos de troca foram alterados contra o
    campesinato quando comparamos os preços que eles obtinham pelas suas
    colheitas com os preços que tinham de pagar pela compra dos seus
    inputs e bens de consumo, incluindo serviços como educação e
    cuidados de saúde. Uma razão óbvia para isto é a retirada do governo
    da educação e da saúde, com a privatização destes serviços
    essenciais, uma característica do neoliberalismo, o que os torna
    extremamente dispendiosos para o campesinato.

    Em quarto lugar, enquanto anteriormente o governo se interpunha
    entre capitalistas externos e a agricultura camponesa, sob o
    neoliberalismo esta interposição acaba e os primeiros têm acesso
    directo aos segundos. Empresas multinacionais de sementes e
    pesticidas operam agora em aldeias através dos seus agentes, os
    quais também fornecem crédito. E uma vez que um camponês entra nas
    garras destas empresas, é-lhe impossível escapar. A agricultura por
    contrato faz a sua aparição e os camponeses são curto circuitados
    através de uma variedade de meios.

    O acima dito não é uma lista exaustiva. O resultado de todos estes
    desenvolvimentos é a redução do campesinato a um estado de pesado
    endividamento e privação, do que o suicídio de 400 mil camponeses na
    Índia desde 1995 é um sintoma óbvio. E o actual governo está agora a
    efectuar o ataque à agricultura camponesa com um novo grande passo
    ao retirar o apoio aos preços também às culturas alimentares, contra
    o que milhares de camponeses têm-se manifestado na orla de Delhi
    durante mais de nove meses.

    Estas medidas não são nem acidentais nem específicas da Índia. Elas
    seguem-se das tendências imanentes do capital o qual fora mantido
    controlado durante muitas décadas após a descolonização, mas que
    agora desencadearam-se plenamente sob o neoliberalsmo em detrimento
    da agricultura camponesa.

    Construir uma nação num país do terceiro mundo é uma impossibilidade
    quando o campesinato está a viver uma situação de miséria. Qualquer
    que fosse o apoio que o nacionalismo burguês tenha efectuado na
    Europa, e este apoio em si mesmo foi bastante superficial como
    demonstrou a primeira guerra mundial, foi porque houve alguma
    melhoria nas condições dos trabalhadores por ele trazido. E fez isso
    não devido a qualquer tendência imanente do capitalismo per se, mas
    devido ao alcance imperial do capitalismo europeu.

    Este alcance imperial permitiu que vastas massas de trabalhadores
    europeus emigrassem para as regiões temperadas de colonização
    branca, criando uma relativa tensão nos mercados de trabalho
    europeus de modo a que os sindicatos pudessem tornar-se eficazes na
    imposição de aumentos salariais. A exportação do desemprego para as
    colónias tropicais, através da perpetuação da desindustrialização,
    desempenhou um papel semelhante. E, finalmente, a drenagem do
    excedente destas colónias tropicais permitiu que aumentos salariais
    metropolitanos fossem acomodados sem esmagar margens de lucro.

    Portanto, levar adiante o nacionalismo anti-colonial num país como a
    Índia é impossível sob um regime de capitalismo neoliberal que impõe
    um esmagamento drástico do campesinato. Do mesmo modo, invocar o
    nacionalismo burguês para construir a nação é igualmente impossível,
    uma vez que um tal país não tem possibilidades de adquirir um
    império como a Europa adquiriu. Usar o nacionalismo burguês
    juntamente com "Hindutva" como a base de um projecto de construção
    da nação, para além da sua odiosidade, também é inútil: o
    esmagamento do campesinato imposto pelo neoliberalismo com o qual
    Hindutva está aliado, acabará por triunfar sobre qualquer apelo que
    Hindutva possa reunir, por mais bem sucedido que seja durante um
    breve período de tempo. Mesmo Hitler teve de consolidar o seu apelo
    "nacionalista" através de um renascimento do emprego na economia
    alemã a partir das profundezas da crise dos anos 30.

    Assim, em países como a Índia, o próprio projecto de construção da
    nação exige uma estratégia de desenvolvimento que proteja a
    agricultura camponesa até que ela voluntariamente se auto-transforme
    em colectivos e cooperativas, uma estratégia que deve, em suma,
    conduzir ao socialismo. A prossecução de uma estratégia socialista
    num tal contexto não é apenas uma questão de conveniência; é também
    essencial para a sobrevivência da nação como uma entidade independente.
    29/Agosto/2021

    *[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
    <http://en.wikipedia.org/wiki/Prabhat_Patnaik>

    O original encontra-se em
    peoplesdemocracy.in/2021/0829_pd/neo-liberalism-and-nationhood
    <https://peoplesdemocracy.in/2021/0829_pd/neo-liberalism-and-nationhood>
    . Tradução de JF.

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/patnaik/patnaik_29ago21_oow.html
29/8/2021

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