domingo, 8 de agosto de 2021

Igualdade e escassez

 
    

       por Prabhat Patnaik [*]  

      Muitos recordarão que a União Soviética e outros países socialistas da
      Europa do Leste costumavam ser caracterizados por longas filas de
      consumidores de várias mercadorias. Isto foi motivo para muita
      ridicularização no ocidente e era atribuída à ineficiência do sistema
      socialista de produção, em comparação com o capitalismo onde bastava ir a
      um supermercado e comprar tudo o que se quisesse.

       Na realidade, longe de serem um sintoma de ineficiência, as longas filas
       de consumidores eram um reflexo da natureza altamente igualitária das
       sociedades socialistas. Analogamente, o livre acesso a bens sob o
      capitalismo é fundamentado na extrema desigualdade de rendimento que
      prevalece sob este sistema. Este ponto pode ser ilustrado por um exemplo
      em que deliberadamente escolhemos números que são idênticos em todos os
      aspectos excepto na distribuição do rendimento.

       Tomem-se duas economias S (sob o socialismo) e C (sob o capitalismo).
      Cada uma investe 20 unidades e pode fabricar 100 unidades de produto. Os
      20 por cento superiores em S (consistentes de funcionários socialistas)
      têm 30 por cento do produto e os 80 por cento mais baixos (consistentes de
       trabalhadores) têm os restantes 70 por cento. Em contraste, os 20 por
       cento superiores em C (consistentes de capitalistas e funcionários) têm
      60 por cento do produto e os restantes 80 por cento (consistentes de
       trabalhadores) têm 40 por cento. O segmento de topo em cada economia
       consome a metade do seu rendimento e os trabalhadores em cada economia
      consomem a totalidade do seu rendimento.

       Agora, se a plena capacidade de produção dos 100 for atingida em S, então
      o total da procura para consumo será 85 (consistindo de metade de 30 mais
      70) e a procura agregada total (inclusive de investimento de 20) será 105.
      Em contraste, o total da procura para consumo em C será 70 (metade de 60
      mais 40) e a procura agregada total (inclusive de investimento de 20) será
      90. Por outras palavras, se a plena capacidade de produção de 100 for
      atingida, então haverá um excesso de procura de 5 em S e uma procura
      deficiente de 10 em C.

       Portanto a economia capitalista não produzirá em plena capacidade devido
      à procura deficiente. Em vez disso produzirá apenas 66 2/3, uma vez que
      com esta produção e as mesmas fatias distributivas os capitalistas obterão
      40 e os trabalhadores obterão 26 2/3, de modo que o consumo total será 46
      2/3, os quais juntamente com o investimento de 20 será exactamente igual à
       produção verificada, 66 2/3. O emprego real portanto será apenas dois
      terços do que teria sido se a produção em plena capacidade estivesse a
      verificar-se. Em suma, haveria desemprego maciço. Uma vez que não se trata
      de qualquer falta ou excesso de procura (bem pelo contrário) nesta
      economia, os consumidores podem simplesmente entrar em qualquer
      supermercado e comprar o que quiserem; não há quaisquer filas de espera
      por bens.

       Em contraste, na economia socialista, onde a produção de 100 causa um
      excesso de procura de 5, será produzida a capacidade total de produção de
      100; mas a questão é como é que uma tal economia irá lidar com o excesso
      de procura de 5? A forma fácil de o fazer seria simplesmente deixar os
      preços subirem, até que os rendimentos reais de alguns consumidores tenham
      sido suficientemente esmagados para reduzir as suas compras em 5; mas
      tipicamente isto significaria um esmagamento desproporcionalmente grande
      dos trabalhadores que terão muito pouco dinheiro para reduzir, a fim de
      manter o consumo. Todo o excesso de procura de 5 será então reduzido a
      expensa dos trabalhadores. Mas comparado a isto, uma redução proporcional
      no consumo de toda a gente será melhor; isto é o que as economias
       socialistas faziam, mantendo os preços ao nível antigo mas instituindo o
      racionamento, para que a redução da procura em 5 pudesse ser mais
      igualmente repartida. Este racionamento significava que as pessoas tinham
      de fazer fila para as suas compras.

       Assim, o facto de que as economias socialistas eram caracterizadas por
      filas de espera não era causado por qualquer ineficiência do sistema. Ao
       contrário, era um reflexo da preocupação do sistema em manter baixa a
      desigualdade na distribuição dos rendimentos. Assim fazia de duas formas
      distintas: uma, mantendo o nível base de distribuição relativamente mais
      igual; e a segunda, assegurando que se no entanto surgisse um excesso de
      procura, então que a sua resolução assumisse a forma não de um aumento de
       preços que teria sido regressivo, mas de um racionamento a preços
       determinados. As filas de espera eram um resultado deste racionamento.

       Sem dúvida houve muitos problemas na implementação efectiva de uma tal
      política na economia socialista, tais como o acesso privilegiado de alguns
      (funcionários do Estado ou do Partido) a bens escassos, e a violação do
      princípio da igualdade de rações para todos pela instituição de um
       princípio de "primeiro a chegar, primeiro a ser servido", o qual tinha o
      efeito de distribuir o bem escasso arbitrariamente. Mas isto não nega o
      ponto básico de que a escassez observada de bens numa economia socialista
      foi o resultado de uma distribuição mais igualitária do rendimento. Do
      mesmo modo, a plenitude observada de bens sob o capitalismo é o resultado
      do facto de vastas massas de trabalhadores terem demasiado pouco poder de
      compra nas suas mãos para comprarem estes bens, o que é tanto uma causa
      como uma consequência do desemprego em massa que invariavelmente
      caracteriza este sistema.

       O bem conhecido economista húngaro Janos Kornai, um crítico do sistema
      socialista que existia no seu país, tinha dito: "o capitalismo clássico é
      limitado pela procura enquanto o socialismo clássico é limitado pelos
      recursos", o que significa que este último utiliza plenamente todos os
      seus recursos, incluindo a mão-de-obra disponível. A razão que ele deu
       para este fenómeno foi que sob o socialismo, uma vez que as empresas têm
      subsídios governamentais assegurados elas enfrentam uma "restrição
      orçamental branda" que as faz gastar em excesso em projectos de
      investimento, sem serem demasiado calculistas quanto à taxa de retorno
      esperada. Sob o capitalismo, pelo contrário, as empresas enfrentam uma
      "restrição orçamental dura" que as torna cautelosas na realização de
      investimentos.

       Se bem que isto possa ser verdade, há uma poderosa razão adicional que
      temos enfatizado para o capitalismo ser constrangido pela procura e o
      socialismo constrangido pelos recursos – e esta é a maior igualdade na
      distribuição do rendimento sob o socialismo. Dito de modo diferente, uma
      vez que o nível da procura agregada em qualquer economia (ignorando o
      comércio externo) consiste de dois elementos, o nível de investimento e o
      nível de consumo tal como determinado pelo rácio médio do consumo em
      relação ao rendimento (ou propensão da economia a consumir nas palavras de
      Keynes), a explicação de Kornai para a diferença entre capitalismo e
      socialismo refere-se só ao primeiro elemento, embora também haja uma
      diferença muito importante em relação ao segundo. A maior igualdade na
      distribuição de rendimento sob o socialismo significa na média um rácio
      consumo-rendimento mais elevado e, portanto, um nível de procura agregada
      mais alto para qualquer dado nível de investimento (o que os economistas
      chamam um "multiplicador" mais alto para o investimento). Este aspecto
      chave das economias socialistas foi omitido por Kornai.

       Qual o interesse, poder-se-ia perguntar, em dizer tudo isto agora, quando
      o socialismo na União Soviética e na Europa do Leste entrou em colapso?
      Bem, uma razão parcial é recordar-nos que, apesar de todas as suas
      limitações, as economias socialistas constituíram um grupo que alcançou o
      pleno emprego, em contraste com o que tem acontecido com todas as outras
      economias nos últimos duzentos anos. Isto acontece porque o capitalismo,
      pela sua própria natureza, não pode alcançar o pleno emprego, ao passo que
       economias socialistas têm dinâmicas muito diferentes que lhes permitem
      assim fazê-lo. Que tais economias existiram deveria ser sempre recordado.

       A outra parte da resposta reside no facto de que o contraste agudo entre
       capitalismo e socialismo também se refere numa menor extensão à diferença
      entre o regime dirigista e os regimes neoliberais em países do terceiro
      mundo como a Índia. Não que estes países tenham alcançado algo como o
      pleno emprego, mas os regimes dirigistas tinham maior igualdade na
      distribuição do rendimento razão pela qual eles enfrentavam problemas de
      excesso de procura agregada e tinham de recorrer ao racionamento de vários
      bens. Isto estava em contraste com a fase neoliberal destas mesmas
      economias que assistiram a um enorme aumento na desigualdade de rendimento
      e, portanto, a um esmagamento do poder de compra nas mãos das massas
      trabalhadoras, a qual dá uma impressão totalmente enganosa de plenitude
      nos supermercados.

       Na Índia por exemplo, segundo Chancel e Piketty, a fatia do rendimento
       nacional dos um por cento do topo da população era tão baixa quanto seis
      por cento em 1982, antes de ser introduzida a "liberalização" iniciada em
      1985, mas aumentou para 22 por cento em 2013, a mais alta em quase um
      século. Portanto a inflação sob o regime neoliberal geralmente não é
       causada pelo excesso de procura; ela é tipicamente administrada pelos
       governos através da elevação de impostos sobre bens de uso comum ao invés
      de sê-lo sobre a riqueza dos capitalistas ou os lucros.

       Mas mesmo esta inflação pretende-se então que seja controlada através da
      imposição de austeridade orçamental (como se a sua causa fosse excesso de
      procura), o que por sua vez agrava a situação de desemprego sem reduzir a
       inflação. O governo da Índia está agora a prosseguir um exercício tão
      insensato.


      08/Agosto/2021
      [*] Economista, indiano, ver  Wikipedia

       O original encontra-se em  
      peoplesdemocracy.in/2021/0808_pd/equality-and-scarcity
       Tradução de JF.  

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/patnaik/patnaik_08ago21.html
8/8/2021

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