*por Eleutério F. S. Prado [*]
Para demonstrar empiricamente a tese contida no título deste artigo é
preciso considerar, primeiro, o fenômeno da financeirização que vem se
exacerbando desde os anos 80 do século passado. Eis que ele não se
apresenta como uma passagem episódica na história do capitalismo, mas
como um acontecimento decisivo. Faz ver que não se encontrou uma solução
virtuosa para a crise de acumulação engendrada no “período de ouro” do
capitalismo, ocorrido após o fim da II Guerra Mundial. Como se sabe,
essa crise se manifestou já nos anos 70 por meio de uma forte e longa
queda da taxa de lucro. Apontando para um impasse, a figura em sequência
apresenta esse fenômeno. E o faz mostrando uma discrepância crescente
entre o PIB global e a soma dos ativos financeiros globais. Por que isso
ocorreu?
PIB global e activos financeiros globais.
A crise de lucratividade dos anos 1970, que atingiu fortemente o centro
do sistema – mas também a periferia –, nunca foi plenamente resolvida
porque os principais Estados capitalistas optaram por evitar uma
recessão profunda. Como esta teria efeitos econômicos, sociais e
políticos devastadores – por causa das ondas de falências e do altíssimo
desemprego da força de trabalho que produziria –, preferiram uma
alternativa que evitasse a destruição e a desvalorização dos capitais
acumulados no passado. Ocorre que esse choque disruptivo é necessário
para que ocorra uma verdadeira restauração da taxa de lucro. Foi assim
que o capitalismo se recuperou várias outras vezes no passado. Mas desta
vez, não.
Fugindo desse trauma, buscaram restaurar a lucratividade por meio de um
processo mais lento de reformas, ditas neoliberais, as quais visavam em
última análise elevar a taxa de exploração numa economia globalizada.
Era preciso destruir o mais possível o que fora criado no passado, ou
seja, o estado de bem-estar social. Em linhas gerais, os Estados se
esforçaram para não elevar ou mesmo reduzir os salários reais no centro
do sistema, para mudar os processos de trabalho, para forçar a supressão
das proteções das economias nacionais existentes na periferia, para
deslocar as indústrias trabalho intensivas para a Asia etc. O
neoliberalismo reinventou de novo o capitalismo que fora transformado
pelo keynesianismo e pela socialdemocracia. Tudo isso, no entanto,
precisava de um complemento.
Para criar um sistema nacional e internacional de dominação financeira
e, ao mesmo tempo, para montar um mecanismo de estímulo à demanda
efetiva global, desregulou-se os mercados financeiros e se permitiu uma
enorme expansão do crédito mundialmente. O resultado dessa eleição foi o
empilhamento consecutivo de dívidas do qual resultou uma "exuberância
irracional" nos mercados de capitais em geral. Ora, isso não poderia ter
ocorrido sem que fosse criada também uma "magnífica" fonte de crises
financeiras.
O descolamento progressivo do montante de ativos financeiro em relação à
magnitude do PIB global, conforme visto na figura acima, não parou de
crescer desde 1980. Agora, ele aparece como um prenuncio do fenecimento
do capitalismo por meio de um colapso financeiro de grandes proporções.
Mas isto não é tudo.
Para demostrar, teoricamente agora, a tese resumida no título deste
artigo, é preciso começar por um recorte de conhecida tese de Karl Marx,
depositada no prefácio de /Para a crítica da Economia Política, /
escrito em 1859. No trecho abaixo transcrito, ele resume a sua
compreensão do processo de emergência, desenvolvimento e fenecimento dos
modos de produção em geral. Enquanto subsistem historicamente, esses
modos regulam as ações dos seus componentes individuais e coletivos,
condicionando a vida social como um todo; passam por longos períodos
progressivos que desembocam, ao fim e ao cabo, em impasses históricos.
Crescem, então, movimentos sociais que produzem instabilidades, rupturas
e transformações, no curso das quais são criadas novas formas de
sociabilidade.
/Na produção social da própria vida, os homens contraem relações
determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações
de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de
desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade
dessas relações de produção forma a estrutura econômica da
sociedade. (…) Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças
produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as
relações de produção existentes (…). De formas de desenvolvimento
das forças produtivas estas relações se transformam em seus
grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social. [1] <#notas> /
Para reinterpretar esse trecho, sustenta-se aqui em primeiro lugar que,
implicitamente, Marx toma o sistema econômico como aquilo que atualmente
é chamado de um sistema complexo ou de um sistema social complexo. Como
tal, ele está internamente estruturado por determinadas relações de
produção e estas determinam-no como uma totalidade que tem
características próprias e que possui certas "leis" tendenciais de
desenvolvimento.
Tais sistemas não são descritíveis por quaisquer sincronias, já que se
caracterizam por existirem como processos contraditórios, abertos ao
futuro e dependentes do próprio modo como evolvem. Enquanto tais, essas
totalidades condicionam o modo de ser histórico dos próprios homens que
se situam em sua própria base e que se atribulam em seu interior para
sobreviver, buscando atender as suas próprias necessidades e realizar os
seus desejos mais profundos.
Dizer que o modo de produção capitalista é um sistema complexo é dizer
que possui a propriedade da auto-organização e que enfrenta
permanentemente problemas de sustentabilidade, sejam de ordem interna,
sejam de ordem ambiental. Eis que os sistemas complexos em geral
apresentam certa resiliência, mas não deixam também de possuir
fragilidades. Existem para sobreviver, mas podem falecer por causas
internas e externas.
O que caracteriza sobretudo os sistemas complexos são os nexos internos
que ligam entre si as suas partes constituintes e formam a sua
estrutura, mas eles podem e devem ser apreendidos também pelos nexos
externos, ou seja, pelos modos segundo os quais essas partes interagem
entre si e determinam o seu dinamismo no tempo. É desse modo que, numa
perspectiva de cientificidade positiva e vulgar, fala-se usualmente da
complexidade tendo apenas por referência à dinâmica de interação dos
múltiplos elementos do sistema em consideração, os quais estão
entretidos em processos de auto-organização.
Mesmo quando essa cientificidade – que ainda se atém apenas aos nexos
externos entre os fenômenos – transcende o determinismo que pretende
prever o futuro com base nos fatos passados, o reducionismo, ou seja, o
método característico da ciência moderna (Bacon, Descartes e Newton) que
pretende sempre explicar o todo a partir das partes, e a norma analítica
que manda isolar e separar as dificuldades na compreensão de tudo que se
afigura complicado, ela ainda não vai longe o suficiente. É preciso,
pois, dizer o porquê.
Apreende, assim, certas características dos sistemas complexos tais como
os seus ciclos de realimentação, as não-linearidades causais, as redes
de interação, mas não acolhe de modo adequado e suficiente a propriedade
da /emergência / – pois, esta não pode ser explicada apenas pelas
configurações engendradas pelas interações aparentes dos elementos do
sistema complexo. Eis que essa propriedade crucial não resulta apenas
das interações dinâmicas entre as partes, mas provém, fundamentalmente,
do evolver das contradições inerentes à sua estrutura na temporalidade
histórica.
Como o sistema econômico – um sistema social complexo – em sua
generalidade é sobretudo um sistema de produção de coisas objetiva ou
subjetivamente necessárias à vida humana, fica claro que as relações de
produção mencionadas por Marx se referem ao modo específico pelo qual se
organiza o trabalho socialmente necessário numa determinada etapa
histórica. No capitalismo, como se sabe, o atendimento das necessidades
está subordinado à acumulação de riqueza abstrata, ou seja, de valor. E
o "valor que se valoriza", isto é, o capital é – isso não se pode
ignorar – um sujeito automático insaciável.
Crucial aqui é interpretar a noção de força produtiva de um modo
adequado aos propósitos deste artigo que não vê o capitalismo nem em sua
juventude (século XIX) nem em sua maturidade (primeiros dois terços do
século XX), mas em sua velhice (do último terço do século XX em diante).
Numa leitura produtivista, "força produtiva" significaria simplesmente
capacidade de se apropriar da natureza e, nesse sentido, poderia ser
resumida pela noção técnica de produtividade do trabalho. Ora, essa
leitura seria bem insuficiente porque toma o sistema econômico como um
sistema determinado tecnologicamente que, em princípio, dura senão para
sempre, pelo menos indefinidamente.
Como não há produção sem apropriação – transformação e destruição – da
natureza, é preciso associar de imediato a noção de força produtiva à
noção de sustentabilidade. Eis que o sistema econômico mora no ambiente
formando pela natureza não humana e, ao se manter ou mesmo prosperar em
seu bojo, degrada-o de algum modo. E, ao fazê-lo, pode minar as
condições externas que dão sustentação ao movimento expansivo do sistema
econômico. Portanto, essa categoria guarda em si o seu contrário, a
insustentabilidade. Ora, essa contradição evolve com o próprio evolver
do modo de produção não apenas devido à destruição das condições
externas, necessárias que são ao próprio mover-se do sistema econômico,
mas também devido ao desenvolvimento de suas contradições internas,
assim como a todos os desdobramentos que delas decorrem.
O evolver das contradições internas ao sistema econômico gera conflitos,
embates entre classes sociais, os quais, mediante tensões crescentes,
podem eventualmente resolverem-se por meio de movimentos de massa,
revoltas agônicas e mesmo revoluções que mudam radicalmente a estrutura
do modo de produção. Assim, a contradição central inerente ao
desenvolvimento da sociedade de que fala Marx pode ser entendida como
uma contradição entre as forças que dão sustentabilidade ao modo de
produção e as relações de produção, dentro das quais aquelas forças se
desenvolvem. Nesse sentido, entende-se por força produtiva não mais,
simplesmente, a produtividade do trabalho, mas a capacidade do sistema
assim constituído de dar sustentação à vida humana.
Segue-se aqui a tese de Murray Smith em seu livro /Leviatã invisível /
[2] <#notas> segundo a qual se está, desde o começo dos anos 1980, na
presença do ocaso do capitalismo – um processo que não deixou de se
aprofundar desde então. Pois, nessa década, ele entrou – enquanto modo
de produção – numa crise estrutural da qual ainda não saiu e não poderá
sair incólume. O neoliberalismo, nessa perspectiva, não se afigura como
uma superação das dificuldades sistêmicas do capitalismo, as quais se
apresentaram já na década dos anos 1970, mas como um recurso derradeiro
para que possa continuar funcionando, ainda que cada vez mais
precariamente. Nesse ocaso, ciclos de alta e baixa aconteceram e
continuarão a acontecer, mas a tendência se apresenta como um declínio
persistente. Segundo ele – concorda-se com o que diz – apenas um
marxismo crítico resoluto pode apreendê-la adequadamente:
/Somente Marx oferece um arcabouço teórico necessário para apreender
a trajetória contraditória, irracional e crescentemente perigosa do
modo de produção capitalista – um conjunto de relações sociais e
capacidades humanas, organização societária e tecnológica que, mais
do que nunca, demanda ser compreendida num contexto global que, não
menos do que no passado, mantém-se prisioneira de suas relações de
produção que põem a lei capitalista do valor-trabalho. /
Como base nessa premissa, Smith sustenta que três contradições
"marxianas" estão na base dessa crise estrutural. Sabendo que aqui se
acrescentará uma quarta, é preciso explicitá-las:
A primeira delas está no fundamento de uma crise de superacumulação que
vem entravando o moto próprio do capitalismo globalizado desde a década
do anos 1970. Para aumentar continuamente a produtividade do trabalho na
produção de mercadorias, a concorrência capitalista tende a elevar a
razão entre o montante capital empregado na produção e o valor total
dessa própria produção – e isso tende a reduzir fortemente a taxa de
lucro. Como esse sistema – que nunca está desacoplado do Estado – não
pode mais permitir que as crises destruam irrestritamente o capital
acumulado, permitindo assim uma recuperação dessa taxa, ele próprio como
um sistema mundial passou a enfrentar uma crise permanente de
valorização, ou seja, uma crise estrutural originada da produção
"insuficiente" de mais-valor. [3] <#notas>
Só lhe restou o neoliberalismo; grosso modo, essa /práxis /
sócio-política procurou criar contratendências à queda da taxa de lucro.
Para tanto, buscou decompor mais e mais a sociedade em indivíduos,
liberar os movimentos do capital financeiro, transferir as indústrias
intensivas em trabalho para a periferia, reduzir os salários reais dos
trabalhadores etc.Ora, tudo isso gerou uma recuperação fraca
principalmente no centro do sistema, que durou entre 1982 e 1997,
aproximadamente. A partir dessa última data, a tendência de queda da
taxa de lucro se impôs novamente sem perspectivas robustas de que essa
situação depressiva possa mudar.
A segunda contradição consiste num desdobramento da contradição entre o
caráter privado da apropriação e o caráter social da produção. À medida
que o capitalismo se desenvolve, cresce a necessidade de bens e serviços
ofertados como bens públicos; eis que eles são necessários para prover a
infraestrutura e a proteção social comunitária que garante uma certa
unidade ao sistema. Ora, esse provimento onera o orçamento dos Estados
nacionais, os quais são alimentados em última análise por recursos
extraídos do setor produtivo das economias. Diante da crise de
valorização, não lhes restou senão cair numa política de privatização
que tende a tornar os bens públicos cada vez mais escassos. Ao erodir a
base comum da sociedade, o neoliberalismo difunde a pobreza e o
niilismo, concentra a renda e a riqueza, solapa a democracia liberal –
ou seja, certos fundamentos que dão sustentação social e política ao
próprio [4] <#notas> capitalismo.
A terceira contradição diz respeito à transnacionalização da produção
por meio da financeirização, das empresas que operam em dezenas de
países, das cadeias mundiais de componentes, das plataformas digitais
etc. e o caráter nacional da regulação macrossocial e macroeconômica.
Como se sabe, o Estado é a instância de poder que põe a unidade que
falta num meio em que ocorrem frequentes disfunções sistêmicas e que
está permeado por antagonismos entre indivíduos, grupos e classes
sociais. É ele, ademais, que busca encontrar solução para os problemas
originados pelo próprio funcionamento do modo de produção. Contudo,
muitos problemas estão sendo gerados agora numa escala global, para além
do poder de intervenção dos Estados nacionais. Mais do que isso,
frequentemente, eles se encontram constrangidos pelos poderes que
prosperam internacionalmente e que se lhe sobrepõem.
Finalmente, é preciso mencionar a contradição entre o caráter
inerentemente predatório da produção capitalista e as exigências de
conservação e de regeneração do ambiente natural – nas quais se incluem
a reprodução da força de trabalho. Há um certo consenso no pensamento
crítico de que existe uma crescente "ruptura metabólica" entre a
produção mercadorias por meio da qual o capital se realiza enquanto tal
e as condições naturais da produção.
Eis que as condições ecológicas da sustentabilidade da civilização
humana vêm sendo erodidas com velocidade inaudita por um processo de
acumulação de capital que não pode parar e que, por isso, não pode
deixar de receber prioridade em cada uma das nações que compõem essa
civilização. Mesmo se são feitos acordos internacionais, por exemplo,
para reduzir as emissões de carbono, elas continuam crescendo; eis que
crescem mesmo se a geração desse tipo de poluição já se encontra em
nível bem crítico.
Ao não garantir a sustentabilidade da civilização humana no planeta
Terra, o capitalismo se tornou insustentável. É a partir dessa
consideração que Smith chega à tese do seu crepúsculo:
/Juntas, essas crises interrelacionadas sugerem que já se entrou na
era do ocaso do capitalismo – uma era na qual a humanidade encontra
os meios para criar uma ordem social e uma organização econômica
mais racionais ou na qual o decaimento progressivo do capitalismo
trará junto consigo a destruição da civilização humana. /
[1] Marx, Karl – Para a crítica da Economia Política. /Coleção Os
Pensadores: Marx / . São Paulo: Editora Abril, 1978, p. 130.
[2] Smith, Murray E. G. – /Invisible Leviathan – Marx's law of value in
the twilight of capitalism/
<https://www.bookdepository.com/Invisible-Leviathan-Murray-E-G-Smith/9781642590456?ref=grid-view&qid=1627945957688&sr=1-1>
. New York: Haymarket Books, 2018.
[3] Ver Prado, Eleutério F. S. – O futuro da economia mundial. In: /A
terra é redonda/
<https://aterraeredonda.com.br/o-futuro-da-economia-mundial/?doing_wp_cron=1627945811.3748888969421386718750>
, 8 de junho de 2021.
[4] Ver Brown, Wendy – Explicando nossos sintomas mórbidos. In: /Outras
palavras / , 30 de junho de 2021.
*[*] Professor titular e sênior do departamento de economia da FEA/USP.
Mantém o blog Economia e Complexidade
<http://eleuterioprado.wordpress.com/> . Correio eletrônico:
eleuter@usp.br. O seu vídeo está em
www.youtube.com/watch?v=6g9Ed7Qj65M&t=3s
<https://www.youtube.com/watch?v=6g9Ed7Qj65M&t=3s> .
O original encontra-se em outraspalavras.net/...
<https://outraspalavras.net/resgate/2021/07/23/nao-e-possivel-resgatar-mais-nada-sob-o-capitalismo/>
In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/crise/prado_23jul21.html
3/8/2021
terça-feira, 3 de agosto de 2021
"Não é possível resgatar mais nada sob o capitalismo"
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