sexta-feira, 26 de maio de 2023

O FMI e os seus órfãos ideológicos

 


 
 
Álvaro García Linera

 

    [...] /no alvorecer do século XXI tudo começou a fraturar-se. A
    pobreza, escondida sob o tapete do "empreendedorismo", saltou pelo
    ar. Desigualdades brutais quebraram consensos e o livre mercado
    correu para se ajoelhar diante do Estado para exigir resgates
    financeiros ou subsídios; primeiro, diante da crise das hipotecas
    /subprime/; depois, frente ao grande confinamento da COVID-19;
    depois, diante do poder produtivo da China; depois, diante do
    aumento do preço dos combustíveis; depois, diante de falências
    bancárias; depois, face às alterações climáticas. A excecionalidade
    tornou-se a regra./



Houve um tempo em que as "recomendações" do FMI sobre como reorganizar a
economia eram lidas, defendidas e executadas como se fossem divinamente
mandatadas. Eram os anos 90 do século passado quando, de cada estudo dos
rumos da economia mundial ou acordo alcançado com este ou aquele país,
não só emanava um otimismo histórico substancial com o que se propunha,
como também era acompanhado por uma difusão colossal, sem margem para
dúvidas e eficiente, que ia de ministros da economia a parlamentares;
assessores económicos de governos; renomados empreendedores locais;
universidades de prestígio a comentaristas de televisão e jornais;
académicos a comentadores de café, que lambiam os lábios a cada frase, a
cada facto, a cada sugestão dessa organização internacional.

Eram os tempos do "grande consenso social" tecido por uma profusa rede
de opinião pública dedicada a consentir que os sacrifícios coletivos da
perda de direitos, da expropriação de bens públicos e do abandono
estatal, seriam redimidos com  o brilhante sucesso individual de se
tornar empresário, acionista ou diretor de empresa. Privatizar tudo,
desproteger tudo e deixar que o livre mercado cuidasse do resto foram os
credos fundadores de um novo mundo de empresários, que imediatamente os
clérigos dessa religião acompanharam, no meio de responsos e incensos,
com frases ocas como "encolher o Estado para ampliar a nação", "país dos
vencedores", "distribuição a conta-gotas" ou "fim da história".

Mas, no alvorecer do século XXI, tudo começou a fraturar-se. A pobreza,
escondida sob o tapete do "empreendedorismo", saltou pelo ar.
Desigualdades brutais quebraram consensos e o livre mercado correu a
ajoelhar-se diante do Estado para exigir resgates financeiros ou
subsídios; primeiro, diante da crise das hipotecas /subprime/; depois,
frente ao grande confinamento da COVID-19; depois, diante do poder
produtivo da China; depois, diante do aumento do preço dos combustíveis;
depois, diante de falências bancárias; depois, face às alterações
climáticas. A excecionalidade tornou-se a regra.

E agora acontece que, desse grande princípio ordenador supremo do
capitalismo tardio, o "livre mercado", não resta nada além da nostalgia.
Em 2020, o Estado salvou as empresas e bolsas de valores das grandes
economias do Norte. O comércio mundial e o capital transfronteiriço
abrandaram estruturalmente o seu crescimento. Os subsídios à energia,
aos alimentos e ao consumo deslocaram a livre oferta e a procura. A
"segurança nacional" ou o expansionismo geopolítico mataram a lei da
oferta e da procura para definir os preços dos combustíveis, das redes
de telecomunicações, dos microprocessadores ou da transição energética.
Europeus e norte-americanos recompensam com dinheiro público empresários
que retraem as suas cadeias de valor para cada país e punem a eficiência
da externalização de custos. O globalismo está a ser substituído pelo
nacionalismo económico e pela geopolítica.

O FMI sabe disso. E arrepende-se infinitamente. Num estudo recente
(Fragmentação geoeconómica e o futuro do multilateralismo), ele relata
esse recuo catastrófico do livre mercado. Mostra como, depois de um
longo fluxo globalista que vai de 1980 a 2010, entrou num refluxo que
pode durar décadas. Para isso, fornece dados sobre a contração do
comércio mundial de bens, serviços e finanças, em relação ao PIB, de 45%
para 33%. O aumento mundial, em até 400%, de medidas restritivas e
protecionistas. Dá conta de estatísticas  que revelam o aumento
substancial da desconfiança social com a globalização (50%) e o
crescimento da procura de medidas projetivas (33%). O estudo também
fornece dados sobre o terramoto no imaginário coletivo que acompanha
tudo isto, vendo como as palavras "segurança nacional", "/nearshoring/"
[1] ou "deslocalização" estão a substituir esmagadoramente o velho
léxico mercantilista em instituições internacionais, empresários e
gestores de negócios. Para completar este quadro adverso, o último
relatório de abril sobre a economia mundial /(World Economic Outlook/),
mostra como o investimento estrangeiro direto caiu de  5% do PIB em
2008, para menos de 2% em 2022. Para ofuscar o efeito desses eventos, os
relatórios também indicam que esses "infortúnios" trarão uma possível
queda do PIB mundial da ordem de 2 a 7% nos anos seguintes. Mas, apesar
disso, só pode admitir que, longe de ser uma curva no caminho que será
corrigida por um regresso imediato e triunfal do livre mercado, essa
"desaceleração" é um facto estrutural e de longo prazo.

Dizer estas coisas a uma instituição que durante décadas foi o oráculo
do triunfo inevitável do livre mercado não é fácil. Traz traumas
internos, frustrações existenciais e uma cascata de contradições quase
paranoicas.

Isso já era evidente em 2020, quando, no fim do "grande confinamento",
perante a pandemia, o FMI recomendou que os governos dos países
aumentassem os impostos sobre os ricos e aumentassem o investimento
público, tanto na proteção social como no capital (/World Economic
Outlook/, 2020). Exatamente o oposto  daquilo que exigiu durante os 40
anos anteriores. Ainda mais desconcertante é comparar as imposições
anteriores aos países "em desenvolvimento" para levantar barreiras
tarifárias, abrir os seus mercados e aceitar um mundo sem fronteiras
"prejudiciais", com a nova teoria monetarista do semáforo de
"compromissos diferenciais" (/Outlook,/ 2023) em que cada país poderá
escolher, de forma "pragmática", acordos comerciais irrestritos onde
haja acordos globais (sinal verde); acordos regionais, onde não há
alinhamento alargado de preferências (semáforo amarelo); e medidas
protetoras unilaterais, em que cada governo opta pelos seus próprios
interesses internos (sinal vermelho).

Mas onde essa inversão lógica do mundo atinge antinomias grosseiras é
quando, no mesmo documento, dois caminhos antagónicos são oferecidos
para o mesmo problema. Diante da crise da dívida soberana que nos
últimos 5 anos disparou em todo o mundo, o FMI exige, de um lado,
"consolidação fiscal", eufemismo para reduzir o investimento público,
cortar gastos sociais e despedir trabalhadores, como tenta impor na
Argentina.

Mas, por outro lado, dedica-lhe um capítulo inteiro para demonstrar que,
pela experiência histórica comparativa em 33 economias de mercado
emergentes e 21 economias desenvolvidas, entre 1980 e 2019, os casos de
contração fiscal não geraram uma redução significativa do endividamento.
E, ao contrário, os dados factuais mostram que a expansão dos gastos
fiscais visando o aumento do PIB por meio de um "choque positivo de
oferta e procura" reduz significativamente os índices da dívida pública
em até um terço. Isto é certamente uma coisa óbvia. Só com o crescimento
da economia e das receitas que o Estado tem, é que se podem reduzir as
percentagens da dívida e pagar os créditos. Ainda mais num mundo em que
há uma retirada estrutural do investimento estrangeiro que está a optar
por se refugiar nos países economicamente mais fortes, devido às altas
taxas de juros que concedem e à incerteza económica que corroeu qualquer
indício de confiança no futuro.

Milton Friedman, guia espiritual dos tempos neoliberais, recomendou
saber "quando a maré está a virar" para tornar efetiva uma doutrina
económica. Significava ter a sensibilidade de entender as mudanças na
opinião pública, na atmosfera intelectual e nas pessoas comuns. Ele
soube percebê-lo nos anos 70, quando o quadro keynesiano estava a
desmoronar-se e, junto com outros, foi capaz de difundir o novo credo
económico. Mas é claro que hoje, para entender a nova "viragem da maré",
os seus acólitos do FMI não o fazem com discernimento suficiente.

Mas onde o desarranjo cognitivo é muito maior, é nos filhos ideológicos
dos organismos internacionais da ordem globalista. Portadores de um
entusiasmo liberal que compensa um talento reduzido, todo o exército de
"analistas económicos", consultores, professores, políticos e promotores
do livre mercado que beberam do dogma derramado do FMI ou do BM, foram
deixados de fora das suas mentes. A sua terra plana está a afundar-se e
eles não entendem o porquê.

Alguns optaram pelo estupor paralisante. Sentem-se traídos por uma
realidade que não se conformava com as suas profecias e mudava as
perguntas para as suas respostas. O resultado é a perplexidade diante de
uma sociedade que perdeu o rumo. Outros tornaram-se espectros chorosos
de uma ordem económica que se esvaiu juntamente com as suas certezas e,
diante das evidências, só podem apegar-se às memórias melancólicas de
compromissos para os quais a história ainda não estava preparada.

E finalmente há as crianças zombis, que são criaturas implacáveis
nascidas e alimentadas por um tempo histórico, paradigmas e
circunstâncias económicas que já não existem hoje. O consenso e o
otimismo globalista que lhes deram vida morreram como eles. Mas eles
ainda não perceberam ou não aceitam; e deambulam furiosamente engolindo
os fios corrompidos da velha ordem carregada pela inércia e pelo vento.
Ao contrário do espectro, que só vagueia pelos cantos das consciências
patéticas, o zombi é violento e destrutivo. Como já não procura seduzir
com o livre mercado, mas impor e sancionar os seus detratores, propõe
"dinamitar" as regras económicas; compete pela velocidade das "terapias
de choque" e, há mesmo quem ressuscite propostas mal sucedidas de
"cheques" educativos. São iliberais dispostos a defender um liberalismo
à paulada.

Em suma, eles representam a memória fóssil de um fracasso que levou às
explosões continentais de 2001-2003. Com a agravante de que, ao
contrário de então, prometem não ser "brandos" e  pôr os revoltosos na
ordem, ou seja, mais desastres em espiral. Talvez seja isso que Gramsci
quis dizer quando falava das expressões mórbidas ou monstruosas de uma
hegemonia a desvanecer, própria de um "interregno"

 

^1 O/nearshoring /consiste na transferência do trabalho de uma empresa
para empresas mais económicas e geograficamente mais próximas.


Fonte: El FMI y sus huérfanos ideológicos | Cubadebate
<http://www.cubadebate.cu/opinion/2023/05/07/el-fmi-y-sus-huerfanos-ideologicos/>, publicado e acedido em 07.05.2023

 Em
PELO SOCIALISMO
https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/o-fmi-e-os-seus-orfaos-ideologicos-251687
26/5/2023

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