domingo, 31 de março de 2024

25 pontos para entender o legado da doutrina de segurança nacional da ditadura civil-militar

 




*por Marcelo Karloni*

 1. ***DILEMAS E GOVERNOS DEMOCRÁTICOS, TAREFA INCONTORNÁVEL*

O Brasil de 2024 encontra-se novamente diante de um dilema. Não, não é a
escolha presidencial, esse foi resolvido em 2022 com a eleição em 30 de
outubro. E não, também não são as eleições municipais que servirão de
grande teste para o Governo Federal. Quem está atento às movimentações
políticas, projetos e mesmo investigações em andamento, sabe disso. O
dilema que se apresenta é um pouco mais sensível e, caso não resolvido,
pode significar apenas o “congelamento” das forças golpistas e não seu
extermínio, como os setores progressistas e democráticos anseiam.

O golpismo no Brasil hiberna regularmente para, em seguida, retornar. É
por causa disso que entre 1946 e 2016 tivemos poucos presidentes que
encerram seus mandatos. O golpe anda à espreita em nossa sociedade
exatamente por que suas forças, no momento em que se veem sob ameaça de
extinção, conseguem no último instante negociar uma trégua que
frequentemente lhes permite seguir existindo.

Qual a razão para tal? Há algumas apostas feitas por quem acompanha a
vida política e a história brasileira. Uma delas é a não realização da
justiça de transição tornada fato com o fim da filosofia da doutrina da
segurança nacional e constituição do inimigo interno.

2. *A PERIFERIA NEGRA E SEU PAPEL NA NÃO-REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA DE
TRANSIÇÃO NO ESPAÇO URBANO BRASILEIRO: o novo inimigo interno*

Fala-se de filosofia porque esse é ainda o fundamento que forma as
forças armadas no Brasil em suas academias, as mesmas que ainda chamam o
golpe de 1964 – que este ano completa 60 anos – de revolução e veem o
comunismo como ameaça em cada esquina de nossas cidades, suas periferias
e nas universidades públicas.

As Forças Armadas ainda carecem da existência de um “inimigo interno”
para sustentar sua existência, falsamente compreendida como defesa de
fronteiras ideológicas e não reais. No Brasil, a figuração do “inimigo
interno” e a busca por seu extermínio pode ser vista nas estatísticas de
violência policial nas periferias das grandes cidades. Segundo o Núcleo
de Estudos da Violência da USP (NEV-USP), em 2021, para cada policial
morto no Brasil, houve 34 mortes de civis. Na soma total foram 6.100
mortos no país pelas polícias estaduais, sendo 81,5% negros. Desse total
de 6.100 mortos, 97% ocorreram em ações das polícias militares,
responsáveis pelas ações ostensivas de patrulhamento.

Do outro lado, 183 policiais morreram, sendo 83% do total membros da
corporação da polícia militar. O que chama também atenção é o fato de
que 76,5% das mortes de PM´s se deram quando esses estavam fora de serviço.

Quando fora de suas escalas de serviço, esses servidores públicos
precisam recorrer a “bicos” para complementar sua renda e de suas
famílias além de serem esses os que mais reagem aos assaltos à mão
armada quando abordados.

A precariedade das condições de trabalho e salários dos nossos policiais
finda por além de aumentar os números de suas baixas por homicídio,
cooperar na outra ponta do fenômeno de violência na manutenção das
mortes de civis inocentes sobretudo em periferias e população negra.

Estado de guerra permanente, assim como defendido na DOUTRINA DE
SEGURANÇA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO, que opera ainda hoje como o /
mindset/  das operações policiais. Mas o que é essa doutrina de
segurança nacional? E o que é o “inimigo interno” por ela descrito? Que
relação há com a politica urbana? Toda!

3. *A DOUTRINA DA SEGURANÇA NACIONAL*

1964 é um ano que entrou para a história do Brasil como o ano do golpe
Civil-militar. Por vinte e um anos, entre 1964 e 1985, o país teve nos
mais altos postos de comando, especialmente no executivo, militares e
seus apadrinhados civis. Durante esses 21 anos, as instituições – as
formais e organizadas segundo marcos legais e burocráticos – se viram
guiadas por uma orientação alinhada com uma doutrina. Sim, trata-se de
doutrinação.

A conhecida doutrina de segurança nacional e desenvolvimento (DSND) foi
responsável por alimentar a formação de nossas forças armadas e polícias
estaduais. Porém, sua influência se estendeu para além dos anos finais
da ditadura. Advogo, inclusive, que elementos dessa doutrina são
responsáveis pela manutenção de uma forma de gestão da segurança pública
de nossas cidades que vitimiza, sobretudo, a população nas suas
periferias, formada em sua maioria por negros e pobres.

A Constituição Federal de 1988, conhecida por Constituição Cidadã, após
as duas longas décadas de autoritarismo institucional, submeteu o
comando das forças armadas à presidência da república. Porém, apenas no
ano de 2004 é que o MINISTÉRIO DA DEFESA passou a ser condutor de fato
de todas as ações e política de defesa do país. Portanto, somente após
16 anos sob o governo do Partido dos Trabalhadores é que as Forças
Armadas e toda a política de defesa se viu subordinada, ao menos
legalmente, ao pleno comando civil.

4. *HERANÇA INSTITUCIONAL*

O Brasil amargou durante mais de 40 anos uma orientação de defesa e um
tipo de formação das forças armadas que apenas se viu em alguns
momentos, no máximo, arrefecida, mas nunca abandonada. É assim que se
assistiu no país, por meio da continuidade de uma ação das policiais
militares estaduais, à criminalização das populações da periferia de
nossas grandes e médias cidades. Criminalização essa fundada na lógica
do INIMIGO INTERNO.

Na verdade, o que de fato sempre houve é a contenção da participação nas
decisões nacionais dos estratos menos favorecidos.

5. *A BUSCA POR UM INIMIGO COMUM*

A busca por um inimigo comum é evidenciada nas perseguições dos
políticos de esquerda durante a ditadura, na vigília constante das
universidades e no monitoramento dos movimentos sociais e seus lideres
Essa política de Estado – pois de fato foi uma política de Estado e não
a decisão de um individuo isolado como desejam fazer parecer – se viu
implementada pelo uso dos recursos de repressão para sufocar e intimidar
qualquer vento de divergência.

No contexto geopolítico internacional, o que se via era a disputa
territorial e de narrativas ideológicas entre os EUA e a extinta URSS.
Na disputa por áreas de influência, um dos recursos utilizados,
sobretudo pelos EUA, era a fragilização das forças de defesa nacionais
dos países na América Latina, visando resguardar-se de sublevação
nacional diante de sua política imperialista.

Essa fragilização deu-se exatamente a partir da constituição de uma
ideia muito bem vendida, a de que havia “INIMIGOS INTERNOS” que deveriam
ser combatidos pelas forças armadas com objetivo de defender os
interesses nacionais e seu próprio povo.

Fato é que as forças militares dos EUA, tanto secretamente quanto
abertamente, insuflaram Golpes de Estado, realizaram espionagem e
treinaram militares brasileiros para a aplicação de técnicas de tortura.

6. *O FRONT É BEM AQUI*

A interferência da política estadunidense teve como suporte atores como
setores cívico empresariais conservadores, mas também um judiciário
conivente e conservador.

A soberania brasileira, diga-se claramente, se viu não apenas perdida,
mas humilhada no cenário internacional, porém, internamente, foi valente
contra seu próprio povo. E não, não foram militares isolados que o
fizeram. Foram os comandos a serviço do Estado brasileiro. O modo de
abordagem da questão do autoritarismo é estrutural e sempre foi.

7. *É ESTRUTURAL E NÃO CONJUNTURAL*

Não é apostando na responsabilização de indivíduos que teriam cometido
excessos que se garante civilidades, mas sim na demolição de estruturas
desde sua raiz e, no caso em tela, a formação segundo os moldes da
constituição do inimigo interno.

Há quem aposte nesse sentido, ainda que a Constituição de 1967 – sob a
ditadura – teve e ainda tem continuidade na atualidade. Não legalmente –
embora às vezes também tenha – mas, sobretudo, nas práticas de segurança
pública e condução de instituições, como o judiciário e policias militares.

O que há de perverso e assustador nessa continuidade é que processos de
extermínios tão comuns durante a ditadura civil-militar seguem
acontecendo, apenas havendo algumas mudanças de circunstâncias para o
assassinato. Hoje, em muitas ocasiões, o critério para o extermínio de
uma pessoa é a sua INVISIBILIDADE.

8. *NAS PALAVRAS DA EMINÊNCIA PARDA*

O general Golbery de Couto Silva, criador do Sistema Nacional de
Informação(SNI), também conhecido como “eminência parda”, é quem pode
nos ajudar a entender o porquê dessa invisibilidade.

Segundo a lógica de formação da ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA, vivia-se
durante o período entre 1964 e 1985 num estado de guerra permanente. Em
lugar de ações de dura repressão e violência serem considerados
exceções, elas foram transformadas em regras. Ou seja, o Estado se viu
autorizado moralmente, por si mesmo e pelo apoio popular que havia
dentre setores privilegiados, a usar todos os seus recursos para
perseguir e exterminar os “AMEAÇADORES DA ORDEM PÚBLICA”.

9. *INIMIGOS DA PÁTRIA*

O inimigo da pátria sem bandeira, sem uniforme e sem uma declaração de
guerra declarada, poderia ser qualquer um: criança, professor, advogado,
politico…enfim, não importava sua identidade social, qualquer fala ou
posicionamento que o entregasse seria motivo para ser enquadrado como
INIMIGO DA NAÇÃO e não apenas do Estado. Estado e Nação viraram
sinônimos. Portanto, a doutrina de segurança nacional não conseguia
conceber a ideia de que fosse possível ser divergente, discordar, ser
diferente e, ao mesmo tempo, ser brasileiro e patriota. (Recado aqui é
pra todos nós da esquerda também. Discordar é também construir).

10. *ORDEM E PROGRESSO*

É dessa época que emerge a noção esdrúxula de que todos os que se
opunham à tortura, perseguição e ao governo eram considerados não-
patriotas e terroristas.

Essa noção ainda hoje reinante em grupos sociais de que discordar é ato
de desordem e de quem não sabe trabalhar em “equipe” vem dessa lógica
negadora de identidade. O que se deseja é, se possível, apagar ou
exterminar qualquer comportamento desviante do grupo dominante, sob a
justificativa de manutenção da paz e da ordem.

11. *VIGILÂNCIA PARA A PAZ*

Segundo esses grupos dominante, é necessário uma ordem imposta, porém
pacifica. Pacifica para quem se alinha, mas de guerra contra quem
discorda. Desaparece aí a distinção entre policias e forças armadas. As
primeiras passam a ser vistas como forças auxiliares das segundas e
assim farão.

Controlando reuniões, vigiando professores em universidades, escolas,
sindicatos e movimentos de bairro, a DSND cumprirá seu papel como
asseguradora legal da PAZ PÚBLICA. Sob qual manto? Do sangue e da
tortura dos que discordam.

Outrora alvos de preocupação, as fronteiras que devem ser vigiadas não
serão mais entre países, mas, sim, as ideológicas. Cruzar tais limites
colocará o cidadão como inimigo e, caso respeite as hierarquias, os porá
como soldados.

12. *VIOLÊNCIA E LETALIDADE POLICIAL NO ESPAÇO URBANO*

A Lei de Segurança Nacional (LSN) de número 7.170 de 1983 conseguiu a
 “proeza” de equivaler crime político s crime comum e isso produziu algo
ruim nos anos que se seguiram ao fim da ditadura.

Na prática, o produto dessa doutrina foi a incapacidade de se distinguir
entre espião internacional, militante pacifista e pequeno assaltante da
periferia. Todos passaram a ser vistos como ameaça ao Estado e à Nação.

Crimes de desaparecimento passaram a ser julgados pela justiça militar.
Na verdade, tais desaparecimentos foram atribuídos à má conduta do
policial ou militar. Desse modo, o Estado conseguia escapar de sua
responsabilidade e, mais uma vez, transferir a responsabilidade por uma
política de segurança que até hoje insiste em não ser reformado ao
soldado de baixa patente, mas jamais ao general que dá a ordem.

13. *POR QUE A RECORDAR É URGENTE? PARA QUE NÃO SE REPITA EM ÉPOCA OU
ESPAÇO ALGUM*

Há semelhanças entre o que aconteceu na época da Ditadura Civil-militar
brasileira e o que acontece hoje em dia? Sim. Aqui não se trata de
coincidência, mas de reincidência. Quem reincide? o Estado brasileiro
que custa a enfrentar o dilema da não realização da justiça de transição.

Alguns dados podem ser levantados que sustentam parte do argumento até
aqui posto, qual seja, o de que as “balizas” institucionais da atuação
das forças de segurança no Brasil seguem condicionadas pela doutrina da
segurança nacional.

A polícia militar (PM) do estado do Rio de Janeiro entre 2003 e 2012
matou 9.646 pessoas. No estado de São Paulo, entre 2005 e 2009, a PM
matou 2.045 pessoas.

14. *NÚMEROS, NÚMEROS…E AINDA ASSIM…*

Para efeitos de comparação, entre 2005 e 2009 o total de pessoas mortas
em ações policiais (todas as polícias juntas) nos EUA foi de 1.915
pessoas. O problema é que os EUA tinha à época algo em torno de 300
milhões de habitantes e São Paulo algo em torno de 40 milhões. Já a
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que possuía cerca de 5% da
população estadunidense no período, matou em dois anos o mesmo número de
pessoas  que as polícias dos EUA matou em cinco.

Há ainda mais a ser dito. Por exemplo, vejamos os dados gerais de
homicídio no Brasil e não apenas da ação das forças de segurança
estaduais. Segundo publicação do IPEA e do Atlas da Violência, em 2014
teria havido 59.627 homicídios no Brasil. Entre os anos de 2004, quando
Brasil registrou cerca de 48 mil homicídios, e 2014, quando registrou
cerca de 59 mil, o aumento foi de 11 mil homicídios.  Portanto, em 2014,
tivemos uma taxa de 29,1 homicídios por cada grupo de 1 mil habitantes.
Esse valor equivale a 10% do total de homicídios no mundo.

15. *ATLAS DA VIOLÊNCIA*

O Atlas da violência de 2014 trouxe um item fundamental para entender o
significado do número de homicídios total frente sua relação com a
manutenção do Estado policial. Porém, o desafio levantado pelo Atlas é
de que o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM/MS/SVS/CGIAE),
apesar de ser o mais confiável, não assegura que as mortes por ação
letal da polícia são fielmente retratadas. Há um processo de
subnotificação que precisa ser considerado. Segundo o Atlas da violência
de 2014 :

No caso de mortes causadas por agentes do Estado em serviço, poder-se-ia
esperar que os responsáveis fossem, em princípio, identificados. Se uma
vítima chega ferida ou morta em decorrência de ação policial, o hospital
deveria ser informado e registrar o fato na categoria Y35-Y36 do SIM,
chamada “intervenções legais e operações de guerra”, mas a comparação
com outras fontes de dados das Secretarias de Segurança Pública revela
que essa notificação não ocorre, conforme apontado em Bueno et al.
(2013). Mesmo quando observamos a tabela de mortes por intervenções
legais por unidades da federação, fica evidente a subnotificação
existente, pois não podemos entender o “0” como ausência de mortes nessa
categoria, mas, possivelmente, como falta de registro (IPEA,p.15,2014).

Em 2004, das 27 unidades da Federação apenas dez apresentaram dados
referentes a registros de morte por intervenção legal, como são
conhecidas as ações de letalidade das polícias. Caso seja realizada a
comparação entre os dados do SIM do ano de 2014 com os do Anuário
Brasileiro da Segurança Pública, o primeiro irá apresentar 681 mortes,
ao passo que o segundo irá apresentar 3.099, sendo dessas 2.668 causadas
por policiais.

16. *A REPARAÇÃO SELETIVA*

Realizando-se o recorte étnico, o desenho adquire contornos ainda mais
perversos. Segundo o mesmo Atlas da violência de 2014, o afrodescendente
no Brasil entre 15 e 29 anos possui probabilidade muito maior de ser
vitima de homicídio. Nos seus 21 anos, esse individuo tem chance 147%
maior de ser morto em relação ao branco, amarelo, ou ao indígena.

Em 2014, para cada não-negro que sofreu homicídio, 2,4 indivíduos negros
foram mortos. Coube a Alagoas a liderança dessa taxa naquele ano, uma
taxa que foi de 82,5 por 100 mil habitantes negros. enquanto Santa
Catarina, na outra ponta, obteve 15,2 na mesma taxa.

Em estado próximo de Alagoas, o Rio Grande do Norte, também na Região
Nordeste,  teve um aumento nessa taxa da ordem de 388,8%, ao passo que
São Paulo teve redução de 61,6% entre 2004 e 2014.

Visitando os dados mais recentes, ainda que com ressalvas, pode-se
compreender parte considerável da questão. Ressalvas essas que terão,
como ver-se-á mais à frente, relevância extrema para entender a
continuidade da lógica do inimigo interno ainda presente.

17. *MAIS NÚMEROS…E NADA!*

A maior probabilidade de vitimas de homicídio no Brasil segue muito
superior entre a população negra. Em 2019, 77% das vítimas foram pessoas
negras. A chance de ser morto no Brasil é 2,6 vezes maior se você for
cidadão negro.

Em Alagoas, por exemplo, quase a totalidade das vítimas de violência
letal, 99% eram negros. De fato, desde o ano de 2015 as taxas de
homicídio para a população negra nesse estado é 42,9 vezes maior que a
população não negra.

18. *NÚMEROS DIZEM MUITO MAS NÃO TUDO.*

As ressalvas aqui precisam ser feitas. Números dizem muito, mas não
dizem tudo. Os dados do Atlas da violência do IPEA, publicado
anualmente, são fundamentais nesse sentido. Fundamentais inclusive nos
dois sentidos diga-se. No sentido de confirmar a permanência da lógica
autoritária e de extermínio que guia as políticas de segurança, como
também no de negá-las, a depender de quem esteja no comando do instituto.

Por exemplo, não há no ATLAS de 2021 nenhum item a tratar dos dados de
violência policial. Eles simplesmente não estão relacionados. A última
vez que esses dados foram apresentados foi no ATLAS de 2018.

Durante a publicação do ATLAS DE 2021, onde tal informação é negada, a
presidência do IPEA coube a CARLOS VON BOELLINGER, nomeado pelo
presidente Jair M. Bolsonaro.

19. *O CIDADÃO DE BEM*

Carlos Von Boellinger talvez não muito conhecido pelo grande público,
porém ganhou destaque no lançamento do ATLAS de 2019, quando defendeu
abertamente a posse e porte de armas pelo cidadão comum como solução
para a violência, durante a conferência de lançamento. Segundo o próprio
Boellinger: “Como cidadão, me incomoda a impossibilidade do cidadão de
bem, sem antecedentes, ter uma forma de defender a integridade física,
de sua propriedade e da sua família. Acho que esse é um direito do cidadão”.

20. *ARMAR A POPULAÇÃO COMO CONSEQUÊNCIA DA NEGAÇÃO DO PASSADO*

Não bastasse fazer essa veemente defesa do uso armas, o então presidente
do IPEA fez a defesa dessa estrategia citando o caso de Angola que,
segundo ele, manteve os números de homicídios baixos mesmo diante da
população armada. Disse Boellinger: “A taxa de homicídio era baixíssima
no país quando todos andavam armados. Anos depois, começou a aparecer a
criminalidade. Os ministros me disseram que os brasileiros trouxeram um
negócio de drogas que era praticamente desconhecidas, o povo começou a
consumir e a criminalidade começou a surgir,. O governo de lá resolveu
adotar normas rigorosas de repressão ao tráfico e a polícia não tem
muito esse negócio de direitos humanos. Conseguiram reprimir as taxas de
criminalidade e elas caíram novamente”.

21. *AS DÍVIDAS DE UM ESTADO QUE INSISTE EM NÃO PAGAR A SOCIEDADE QUE
LHE LEGITIMA*

Não há muito a dizer nesse ponto. Basta um exame dos acontecimentos dos
últimos meses no Brasil para ver que o processo social de constituição
do inimigo interno que animou sanhas golpistas, invadiu a Praça dos Três
Poderes e desafiou o resultado das urnas segue em porções do nosso
território produzindo chacinas em busca de capital político, algo que
ainda conta ainda com a possibilidade de ser “perdoada” mais uma vez em
nome de um projeto de pacificação.

*A “fatura” segue em processamento.*

Talvez os constituintes de 1988 tivessem real esperança de que, passados
quase 40 anos, o Brasil estivesse menos polarizado que hoje e que
realmente houvesse uma pacificação que democratizaria o país. Porém, não
foi o que se viu.

Setores conservadores se reorganizaram, viveram nas instituições,
formaram quadros autoritários embaixo dos nossos olhos e tentaram
golpear a democracia. Enquanto isso, celebramos a urna, quando
deveríamos também por fim ao espirito da doutrina da segurança nacional
ainda reinante entre forças armadas e, pasmemos, no próprio judiciário.

A pergunta que escuto frequentemente em análises que acompanho feitas
por militantes de esquerda e progressistas é essa: “quando será o
próximo golpe?”

22. *O PASSADO SEMPRE VOLTA*

Sempre disse e repito: o autoritarismo é um processo social antes de ser
institucional. Há base para ele ser o que é. Nessa altura do
“campeonato”, os iludidos que escolheram errado vão abandonar esse
“barco”. O que ocorreu em Foz do Iguaçu, o que ocorreu na Cinelândia
(quando um drone atacou pessoas inocentes na rua com fezes montada por
um fascista que está preso) e o que pode acontecer amanhã é sim fruto de
um discurso de ódio alimentado pelo lado fascista e não deve ser posto
no colo de lideranças petistas não.

A despeito de toda crítica que se faça com legitimidade ao Lula ou ao
PT, não há um episódio de incitação a morte de opositores. Digo nomes
abertamente embora saiba que logo, caso sociedade não reaja, nem isso
possa fazer. Hitler queimou o parlamento antes de assumir como chanceler
supremo e por a culpa nos comunistas. O resto sabemos

23. *NO VÁCUO E NA NEGAÇÃO, CHOCA-SE O OVO DA SERPENTE. “SERÁ QUE
NINGUÉM PERCEBE?”*

 Todavia, há um vácuo no Brasil. Esse vácuo, a meu ver, é produto de um
anti projeto de caráter não civilizatório e oposto a toda noção de
emancipação humana, devido à ausência de uma discussão sobre o projeto
de país que queremos. Infelizmente, parte do debate atual que tem por
pretensão pensar o Brasil se vê deslocado para discutir segundo
critérios desprovidos de cientificidade que, se não for combatido, vai
legar à nossa sociedade uma herança de continuidades e não de
transformações.

Há muito a se dizer sobre a relação entre espaço e política. Muito
mesmo. Basta recordarmos que parte de nossos principais instrumentos de
planejamento, como a da reforma urbana, são frutos de lutas sociais.
Isolar a dimensão da política da intervenção no espaço e nas cidades é o
mesmo que,  por exemplo, destinar ao estatuto da cidade um lugar de
retórica e não de prática.

Discutir projeto de cidade é discutir projeto de sociedade. Projeto de
país. É política no sentido mais feliz do termo.

24. *REVISTAR O PASSADO É TAMBÉM ABRIR CAMINHOS PARA SE REFAZER NOSSOS
CAMINHOS TAMBÉM NA EDUCAÇÃO*

Sinceramente, espero que aqueles que se propõem a discutir o espaço
urbano em nossas universidades, no ambiente do poder público e mesmo aos
meus alunos, entendam que, para além de uma racionalidade instrumental,
existe uma que se sobrepõe, que é a racionalidade substantiva e criadora
de civilidades, de cidadania, de equilíbrio na relação com a natureza e
de democracia.

O projeto que deveríamos estar realizando em nosso país talvez
encontrasse acolhida melhor se, em lugar de privilegiar a técnica, a
subordinássemos ao atendimento das necessidades humanas.

Pessoalmente, começo a perceber que uma das razões que nos “jogou” nessa
espiral de descida que estamos vendo no Brasil desde 2013 é porque, sem
perceber, demolirmos a noção de que a política – a boa política – é a
única saída.

Partimos de uma época de repressão entre 1964 e 1985, passamos pelo
sonho de uma constituição cidadã em 1988, tivemos experiências de agenda
de ordem neoliberal e neodesenvolvimentistas entre 1990 e 2013 e estamos
tendo que lidar com a tarefa de discutir novamente a JUSTIÇA PARA OS
FAMILIARES MORTOS E PERSEGUIDOS há 60 anos.

A agenda do capital nunca será civilizatória, já dizia Chico de
Oliveira. Ela é uma agenda que, se preciso for, constrói consensos sem
abrir mão de seus interesses de reprodução, mas também os desfaz, caso
esses se vejam ameaçados.

25. *A SAÍDA É PELA POLÍTICA E POR UMA ESQUERDA RENOVADA.*

Um dos seus principais movimentos atuais das forças conservadores é a
vilanização da política e a colocação no pedestal da moralidade e da
virtude das técnicas ou seja, a tecnocracia. Isso pode levar mesmo a
academia a implementar políticas de ensino e de currículo que põem as
ciências humanas em lugar de menor importância. Acredito que isso
aconteceu entre nós, por isso é tão comum encontrar defensores da
técnica que apregoam sua neutralidade como virtude salvadora.

“A política. O viés político, isso é um mal. Não temos viés”, dizem,
enquanto na verdade agem de uma forma puramente ideológica. Não vou nem
falar de Althusser, de Paulo Freire e de Gramsci por aqui. Basta dizer
que essa lógica é pavimento do fascismo que se vende como neutro e
patriota enquanto, na verdade, é extremado e assassino quando convém de
seu próprio povo.

Penso ser este o primeiro passo que demos para criar essa ambiência
sufocante que está entre nós. Que passo? Vulgarizar as ciências humanas
como domínio comum e conferir status de infalibilidade ao saber técnico.
Ledo engano!Que o digam os cientistas e médicos nazistas que dominando o
saber faziam experiência nos campos de concentração em nome da “ciência”.

Se há neutralidade no que ensinamos e pesquisamos, ela deveria se
encerrar depois da obtenção dos dados, pois, após isso, a ciência
construirá ou destruirá o que vier pela frente.

Mas claro, questionar sobre isso ficou difícil no Brasil de 2013 para
cá, pois perguntar e refletir é coisa de “agitador” e “encrenqueiro”. O
lamentável é que isso se espalhou em todos os espectros políticos.

O antidoto? No fundo todos sabemos: olhar o passado de 60 anos atrás mas
também o passado recente pré golpe de 2016 e aprender com nossos erros.

*Marcelo Karloni é Professor Adjunto IV do curso de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas, Campus Arapiraca, Doutor
em Dinâmicas Territoriais e Regionalizações do Desenvolvimento da UFPE,
Mestre em Ciências Sociais na área de Estado, Política e Desenvolvimento
da IFRN e membro da Rede BrCidades.*

Em
Jornal GGN
https://jornalggn.com.br/cidadania/o-legado-da-doutrina-de-seguranca-nacional-da-ditadura-civil-militar/
31/3/2024

Nenhum comentário:

Postar um comentário