domingo, 3 de setembro de 2017
A Revolução de Outubro e a sobrevivência do capitalismo
por Prabhat Patnaik [*]
A Revolução de Outubro foi a primeira revolução na história humana
teoricamente concebida e executada de acordo com um plano. Enquanto a
revolução de Fevereiro, como as revoluções burguesas anteriores na
Inglaterra e França, havia ocorrido espontaneamente, o mesmo não se pode
dizer da de Outubro. Ao mesmo tempo, ela certamente não foi o que seus
detratores muitas vezes sugerem, isto é, uma mera revolta Blanquista. Ela
não foi uma revolta do tipo "a revolução é uma coisa maravilhosa, então
vamos tentar isto". Pelo contrário, foi baseada numa análise teórica
precisa da conjuntura, e no desenvolvimento desta teoria a um nível onde,
para tomar emprestado as palavras de Georg Lukács, "a teoria irrompe na
práxis" [1] . É esta compreensão teórica da conjuntura que sublinha a
revolução e que explica a sua amplitude, a enorme energia que gerou, as
mudanças profundas que operou no mundo, e a extensão em que ameaçou a
própria existência do capitalismo. Que esta ameaça se tenha esmaecido
resulta do fato de que a própria conjuntura se alterou de maneira que não
pôde ser antecipada dentro do estágio de conhecimento teórico que então
havia.
A aliança Operário-Camponesa
Esta compreensão teórica da conjuntura se desenvolveu em estágios. Dois
passos foram de particular importância. O primeiro, datando do começo do
século XX, e expresso na polémica de V. I. Lenin contra a corrente
representada pelo "Novo Iskra" de Alexander Martynov e outros dentro do
Partido Social-Democrata dos Trabalhadores Russos, ao qual todos eles
pertenciam, foi a compreensão de que em países de desenvolvimento
capitalista tardio a nova burguesia emergente não era mais capaz de
completar a revolução burguesa contra a ordem feudal, da maneira que a
burguesia francesa havia feito durante a revolução de 1789 [2] . Isto
acontecia porque, nesta nova situação que enfrentava, esta burguesia tinha
medo de que um ataque à propriedade feudal pudesse resvalar em um ataque
contra a própria propriedade burguesa.
Para isto era necessário uma aliança operário-camponesa sob a liderança
da classe trabalhadora. Mas tal aliança, tendo avançado a revolução
burguesa contra a ordem feudal, não poderia apenas parar ali, com a classe
trabalhadora meramente revertida ao papel de classe explorada dentro da
recém-desencadeada ordem capitalista, cujo próprio desencadeamento ela
havia ajudado a operar. A classe trabalhadora, tendo levado à frente a
revolução burguesa, iria obviamente continuar a marcha ao socialismo em
um processo revolucionário ininterrupto, dentro do qual, obviamente, os
constituintes precisos da aliança operário-camponesa permaneceriam
mudando. Como Lenin coloca em seu Duas Táticas da Social-Democracia na
Revolução Democrática (1905):
"O proletariado deve levar a termo a revolução democrática, atraindo para
si a massa dos camponeses, para esmagar pela força a resistência da
autocracia e paralisar a instabilidade da burguesia. O proletariado deve
fazer a revolução socialista, atraindo para si a massa dos elementos
semi-proletários da população, para quebrar pela força a resistência da
burguesia e paralisar a instabilidade dos camponeses e da pequena
burguesia." [3]
Essa conceção de uma aliança operário-camponesa liderada pelo proletariado
com uma composição de classes mutável ao longo do tempo, carregando a
revolução democrática até sua completude e além até o socialismo, não foi
apenas um grande passo na compreensão da conjuntura. Ela representou um
avanço fundamental dentro da própria teoria marxista de diversas formas: em
primeiro lugar, foi uma mudança de atitude em relação ao campesinato, uma
inclusão do mesmo dentro das fileiras das forças revolucionárias que a
classe trabalhadora poderia liderar. A habilidade da burguesia de conseguir
o apoio do campesinato na revolução francesa servira-lhe bem não apenas
naquele momento mas também depois, para derrotar a Comuna de Paris (com
Adolphe Thiers instilando o medo entre o campesinato francês, beneficiário
da revolução de 1789, de que um ataque à propriedade burguesa acarretasse
também um ataque à pequena propriedade). No entanto, na nova conjuntura o
campesinato se tornaria parte do campo proletário. Em segundo lugar, esta
mudança de atitude em relação aos camponeses também fez do marxismo, até
então confinado à Europa, uma doutrina revolucionária de relevância para
todo o mundo, não importando quão limitado tivesse sido o grau de
desenvolvimento capitalista. Em terceiro, a transição entre estágios do
socialismo era agora o curso que todos os países no mundo deviam seguir para
a libertação do povo. O socialismo não era mais apenas um assunto que dizia
respeito a países de capitalismo avançado; ele poderia também ser inscrito
na agenda revolucionária dos países capitalistas subdesenvolvidos, o que
significava uma total rejeição de qualquer tentativa de reduzir o marxismo
a uma teoria etapista onde diferentes modos de produção haviam de se suceder
em uma maneira predeterminada por uma questão de inevitabilidade histórica.
De fato, a jornada dos países de capitalismo avançado poderia ser direta,
enquanto a de países de capitalismo subdesenvolvido deveria ser uma
prolongada transição histórica passando por diferentes fases; mas o
socialismo poderia ser o objetivo final de todas as lutas revolucionárias,
em todos os lugares.
Imperialismo
O segundo passo teórico importante para compreender a conjuntura veio com a
teoria Leninista do imperialismo, desenvolvida no contexto da Primeira
Guerra Mundial. O fato de o capital se centralizar nos campos da finança e
da indústria, uma tendência imanente sob o capitalismo de acordo com Karl
Marx, havia levado à formação de monopólios nestas esferas e de uma pequena
oligarquia financeira que oscilava entre as duas esferas e controlava vastas
quantidades de "capital financeiro", e o fato de que desenvolvia uma união
pessoal com empregados do Estado, exercendo controle sobre este e alterando
seu caráter, constituiu a essência desta nova fase do capitalismo. Nesta
fase, a competição entre capitais tomou a forma de rivalidades entre
diferentes monopólios associados, pertencente aos diferentes países de
capitalismo avançado, para adquirir "território económico" através do mundo
às custas uns dos outros; e num mundo já particionado entre eles, tais
rivalidades necessariamente tomavam a forma de tentativas de reparticioná-lo
entre os mesmos através de guerras [4] . Estas guerras, das quais a Primeira
Guerra Mundial foi um exemplo, forçavam trabalhadores de diferentes países a
se matarem uns aos outros nas trincheiras; elas também arrastavam os povos
oprimidos das colónias, semi-colônias e territórios a serem carne de canhão
para promover os interesses das diferentes oligarquias financeiras. O
capitalismo, em outras palavras, havia chegado a um estágio onde se
promoviam guerras periódicas para redividir um mundo já dividido, no intuito
de refletir as mudanças de forças relativas entre as diferentes potências (o
que necessariamente ocorria por conta da ubiquidade do "desenvolvimento
desigual" sob o capitalismo), havia se tornado inevitável.
A compreensão de que o estágio superior do capitalismo que Lenin, seguindo
J.A. Hobson, chamou de "imperialismo", possuía muitas implicações. Primeiro,
um importante elemento da teoria marxista havia sido o reconhecimento de que
nenhum modo de produção foi superado até que se tornasse historicamente
obsoleto. Tipicamente, no entanto, esta "obsolescência histórica" havia sido
definida em termos estritamente económicos, em termos do mergulho numa
crise prolongada. Eduard Bernstein havia advogado por uma "revisão" do
marxismo, para substituir uma derrubada revolucionária do sistema
capitalista por uma agenda de reformas dentro deste sistema, sob o argumento
de que nenhuma crise prolongada ou "colapso" estaria no horizonte; e Rosa
Luxemburgo havia afirmado a visão revolucionária ao desenvolver uma teoria
de acumulação de capital que apontava para um eventual colapso do sistema. O
argumento Leninista alterou completamente as bases deste debate [5] . O
capitalismo havia-se tornado historicamente obsoleto, ou "moribundo", como
ele o chamava, porque seu estágio imperialista havia englobado a humanidade
em guerras periódicas e devastadoras. A única escolha que este oferecia aos
trabalhadores nos países avançados era entre matar companheiros
trabalhadores do outro lado das trincheiras ou voltar suas armas contra o
próprio sistema, entre "socialismo e barbárie" (para usar as palavras de
Luxemburgo). Em segundo lugar, não eram apenas os trabalhadores nos países
capitalistas avançados que eram vítimas da exploração imperialista e
utilizados como carne de canhão nessas guerras, mas também as pessoas
trabalhadoras dos países oprimidos que passaram por uma mudança por conta
destas guerras. Sua consciência assim como seu treino (incluindo treino
militar) desenvolveu-se a largos passos por conta destas guerras, e eles
também se levantaram contra o jugo do capital porque também estavam diante
da mesma escolha entre libertação e barbárie.
Em terceiro lugar, não apenas havia o sistema se tornado historicamente
obsoleto neste sentido geral, mas havia trazido a revolução mundial para a
agenda histórica como um fenómeno iminente. A escolha entre socialismo e
barbárie havia de ser feita ali mesmo, uma escolha prática que havia sido
empurrada à humanidade por conta do imperialismo e suas guerras
concomitantes.
Se o primeiro passo na compreensão da conjuntura era ver que todos os
países inseridos na mesma haviam de proceder por diversas rotas até o
socialismo como uma condição para a libertação de seus povos, então o
segundo passo foi perceber que suas jornadas eram interconectadas, que o
imperialismo os havia ligado numa corrente, cuja quebra no "elo mais fraco"
haveria de iniciar um colapso da corrente como um todo. E tal quebra na
corrente era iminente na conjuntura. A consequência desta compreensão era a
construção de uma internacional, a Internacional Comunista, de maneira que
o mundo nunca havia visto, onde delegados da França, Alemanha e Inglaterra
ombreavam-se com seus camaradas da China, índia, México, Egito e Vietname.
A compreensão da conjuntura
A visão subjacente à Revolução de Outubro de que o capitalismo havia
alcançado um ponto crítico, de que simplesmente não poderia continuar como
anteriormente, era partilhada por muitos pensadores desta época, incluindo
até mesmo anticomunistas ardentes, o que sugere que era uma compreensão
bastante precisa da conjuntura. Desse modo, John Maynard Keynes, escrevendo
em 1933, tinha isto a dizer: "O capitalismo – internacional porém
individualista – decadente, em cujas mãos nos encontramos após a guerra, não
é um sucesso. Ele não é inteligente, ele não é bonito, ele não é justo, não
é virtuoso – e nem mesmo entrega o que promete. Sucintamente, não gostamos
dele, e estamos começando a desprezá-lo. Mas quando nos questionamos sobre o
que colocar em seu lugar, estamos extremamente perplexos." Até Keynes havia
começado a "desprezar" o capitalismo da época [6] .
Anteriormente, no seu livro As Consequências Económicas da Paz, Keynes
havia dado uma descrição vívida da desintegração do capitalismo mundial, que
Lenin havia citado amplamente no Segundo Congresso da Internacional
Comunista em 1920 para argumentar que o momento para a revolução mundial
havia chegado. Como disse Lenin: "Se por um lado a posição económica das
massas se tornou intolerável, e, por outro lado, a desintegração descrita
por Keynes se instalou e está crescendo entre a minoria insignificante dos
todo-poderosos países vencedores, então estamos na presença da maturação de
duas condições para a revolução mundial" [7] . A perceção de Lenin e dos
bolcheviques a respeito do estado do capitalismo mundial, do qual eles
consideravam a Revolução de Outubro o primeiro produto significativo, era
então compartilhada por muitos; e representava uma compreensão válida da
conjuntura.
Esta conjuntura duraria do período preparatório da Primeira Guerra Mundial
até os anos imediatamente posteriores à Segunda Guerra Mundial quando a
descolonização começou. Dentre suas muitas características, a principal se
relacionava à rivalidade interimperialista. A Primeira Guerra Mundial, o
implacável Tratado de Versalhes (cuja dura crítica de Keynes foi destacada
por Lenin), a Grande Depressão, a ascensão do fascismo, o massivo avanço
anexionista dos países fascistas e a Segunda Guerra Mundial, todos eram
expressões de uma forma ou de outra, de um estado de aguda rivalidade
interimperialista.
Até mesmo a sobrevivência da União Soviética foi atribuída por Lenin à
existência da disputa interimperialista. Em um de seus últimos artigos,
"Melhor Menos, mas Melhor", ele atribuiu a falência da intervenção militar
conjunta de diversos países imperialista em apoio à contrarrevolução russa
durante a guerra civil aos conflitos entre os países imperialistas do
Ocidente e Oriente, e perguntou-se se estes conflitos poderiam "nos dar um
segundo descanso" [8] . Os conflitos entre os países imperialistas do
Oriente e do Ocidente, e aqueles entre os vitoriosos e os derrotados da
Primeira Guerra Mundial, que o Tratado de Versalhes havia exacerbado,
atingiram seu clímax na Segunda Guerra Mundial. No entanto, este clímax
também marcou o fim da mesma conjuntura histórica que Lenin e os
bolcheviques haviam se deparado, cuja compreensão teórica foi desenvolvida
por eles a um nível onde havia "irrompido" na práxis revolucionária de
Outubro e as subsequentes lutas por uma revolução mundial.
O fim da Guerra viu um grande avanço da ordem Comunista; uma maior
assertividade da classe trabalhadora nos países de capitalismo avançado, da
qual a derrota de Winston Churchill pelo Partido Trabalhista nas eleições
britânicas e a enorme força adquirida pelos Partidos Comunistas Italiano e
Francês eram manifestações óbvias; e uma inquietação sem precedentes entre
os povos das colónias, semi-colônias e países dependentes. O capital
metropolitano, enfraquecido e desorientado pela guerra, foi forçado a fazer
diversas concessões, das quais as três mais significativas foram:
descolonização, intervenção estatal para regular a demanda com o objetivo de
manter altos níveis de emprego, a qual o capital financeiro, sempre oposto
a este tipo de intervenção direta e responsável por preveni-la nos anos
pré-guerra, foi todavia forçado a aceitar; e a instituição de governos
democráticos formados por através do sufrágio adulto universal (que, mesmo
na França, ocorreu apenas em 1945).
Estas concessões criaram a impressão de que o capitalismo havia "mudado",
de que o velho capitalismo havia dado lugar a um novo "capitalismo de
bem-estar". Esta ideia persistiu a despeito do fato de que a intervenção
estatal para atingir altos níveis de emprego nos Estados Unidos, a principal
potência capitalista, tomou a forma de gastos militares de larga escala, e
também a despeito do fato de que não obstante a descolonização formal (que
era ela mesma muitas vezes incompleta), as potências metropolitanas estavam
por toda parte relutantes em ceder controle sobre recursos do terceiro mundo
para os novos estados pós-coloniais [9] . Todavia, a perceção permaneceu de
que o capitalismo havia fundamentalmente se alterado, porque alguns dos
ganhos obtidos pelos trabalhadores nas metrópoles, e pelas pessoas no
terceiro mundo, eram de fato reais e substanciais.
Mas junto com essas mudanças, a conjuntura do pós-guerra era também marcada
por algo que ia além do que o Leninismo havia visualizado, isto é, uma
substituição da intensa disputa interimperialista por uma abrangente
dominação de uma potência (o que alguns chamavam de "superimperialismo"). A
perceção fundamental do movimento Comunista sobre o estágio imperialista do
capitalismo, sobre a qual a proposição sobre a iminência da revolução
mundial havia sido argumentada, ou seja, de que seria caracterizada pela
rivalidade interimperialista e guerras, deixou de ser válida na conjuntura
do pós-guerra. Sem dúvida as revoluções Cubana e Vietnamita aconteceram
durante esta conjuntura, mas elas eram mais um produto atrasado da
conjuntura anterior do que um produto específico da conjuntura do
pós-guerra.
Mesmo assim, essa conjuntura do pós-guerra provou-se ser apenas um
interregno. A concentração do capital, a tendência ressaltada por Marx,
levou à formação não apenas de corporações multinacionais, mas de enormes
blocos financeiros. Esses blocos eram alimentados por diversas fontes:
através de contínuos défices fiscais estadunidenses durante os anos do
Bretton Woods, quando o dólar era considerado "tão bom quanto ouro", e
US$35 podiam ser trocados por uma onça de ouro; através de enormes depósitos
de petrodólares após o aumento de preços da OPEP; e através de poupanças
entrando como depósitos no sistema financeiro durante o "boom" prolongado do
pós-guerra que foi construído através da intervenção estatal na
administração da demanda. O capital financeiro nesta nova situação, ansioso
para possuir liberdade irrestrita para se mover pelo globo, procurou quebrar
as barreiras nacionais. Ele foi bem-sucedido neste empenho e instituiu um
regime de "globalização" que, em contraste com o regime pós-guerra anterior,
implicou numa maior mobilidade de bens, serviços e fluxos de capital,
incluindo fluxos financeiros, através de barreiras nacionais.
O regime da globalização
A rivalidade interimperialista permanece silenciada no regime de
globalização por uma razão mais importante, não apenas por conta da força
avassaladora de uma potência imperialista, como era o caso da conjuntura do
pós-guerra, mas também porque o próprio capital financeiro se torna
globalizado e consequentemente oposto a qualquer particionamento do globo em
esferas de influência de potências particulares que possam entravar sua
livre movimentação global.
Conquanto este fato da rivalidade interimperialista silenciada tenha sido
percebida por muitos, eles a interpretaram como significando uma
confirmação da posição de Karl Kautsky, que havia visualizado a
possibilidade de um "ultraimperialismo" contra Lenin, que enfatizou a
existência de um perene estado de rivalidade interimperialista. Entretanto,
isto é falso. Tanto Lenin quanto Kautsky tinham em mente um contexto de
capitais financeiros nacionais, onde o capital financeiro que ocupava o
proscénio possuía bases nacionais e era auxiliado pelo Estado nacional. Este
não é o caso hoje, onde o próprio capital financeiro é internacional, e é
uma entidade inteiramente diferente do capital financeiro que tanto Lenin
quanto Kautsky falavam. O silenciamento da rivalidade interimperialista na
era da globalização não é por conta de uma "exploração conjunta do mundo por
capitais financeiros internacionalmente unidos" , como Kautsky havia
sugerido, mas por conta da emergência de um capital financeiro
internacional.
Este fato é negligenciado em boa parte da discussão sobre a
"multipolaridade". Aqui, é comumente sugerido que, em um mundo onde a
"multipolaridade" parece estar a emergir, podemos testemunhar uma volta da
rivalidade interimperialista. Mas o que tal prognóstico deixa escapar é que
não são apenas os fatores políticos que devem ser levados em conta neste
contexto mas também, acima de tudo, os fenómenos económicos subjacentes a
esses fatores; e um elemento-chave destes elementos económicos é a hegemonia
do capital financeiro internacional. O fato de que temos um capital
financeiro internacional num mundo de estados nacionais, ao contrário da
prescrição de Keynes no ensaio de 1933 de que "as finanças devem acima de
tudo ser nacionais", constitui uma característica definidora da globalização
contemporânea. Isto implica no fato de que o estado-nação, por bem ou por
mal, tem de consentir às exigências das finanças, pois de outra forma estas
simplesmente deixariam suas fronteiras en masse para se mover para outro
lugar, precipitando uma crise. O fato de que, independentemente do aspeto do
governo eleito pelo povo, ele deve seguir as mesmas políticas económicas,
isto é, aquelas que o capital financeiro internacional prefere, de maneira a
prevenir tal acontecimento, implica numa debilitação da democracia. Além
disso, ser apanhado no vórtice das finanças globalizadas acarreta várias
implicações económicas importantes. Primeiro, implica numa mudança da
natureza do Estado. Em vez de se posicionar, independente de seu caráter de
classe, como uma entidade acima da sociedade e aparentemente cuidando dos
interesses de todos, o Estado agora se torna mais preocupado com promover
exclusivamente os interesses do capital financeiro globalizado, sob o
argumento de que os interesses da nação coincidem com os interesses de tal
capital (o fato de a Moody's melhorar a nota de crédito de um país se torna
motivo de orgulho nacional). Uma grande consequência disto, especialmente no
contexto do terceiro mundo, é a retirada do apoio e proteção estatais sobre
o setor de pequenos produtores, incluindo a agricultura familiar, expondo a
vasta massa de pequenos produtores à usurpação pelo grande capital,
incluindo corporações multinacionais.
A luta anticolonial sobre grande parte do terceiro mundo havia alistado o
apoio do campesinato sob a promessa de que o regime pós-colonial protegeria
a agricultura familiar da usurpação do grande capital, e também das
flutuações de preços do mercado mundial; e a maioria dos regimes
pós-coloniais tinham em graus variados protegido e promovido a agricultura
camponesa e a pequena produção, em geral. Os beneficiários de tais medidas,
sem dúvida, haviam sido em um grau muito maior os prósperos segmentos entre
tais produtores; mas o setor como um todo, apesar de sujeito a tendências
direcionadas a um desenvolvimento capitalista de dentro, havia sido
protegido da incursão do grande capital de fora . O estado neoliberal
retira o apoio e a proteção, jogando este vasto setor numa crise. Grandes
números de pequenos produtores e trabalhadores dependentes de tal produção,
ou continuam na mesma, afundando mais profundamente na miséria, ou migram
para as cidades em busca de empregos não existentes, ou (como vem
acontecendo na índia) recorrem a suicídios em massa.
Em segundo lugar, há um aumento no tamanho relativo das reservas de
trabalho porque o aumento da procura laboral, mesmo com altas taxas de
crescimento do PIB, não é grande o suficiente para absorver o aumento
natural na força de trabalho, muito menos os pequenos produtores deslocados.
Consequentemente, os salários reais dos trabalhadores, mesmo os
trabalhadores organizados, aumentam escassamente, apesar de aumentos na
produtividade do trabalho. Isto aumenta a quota do excedente no terceiro
mundo, que é dominada por grandes reservas de trabalhadores, e por
consequência aumenta a desigualdade de rendimento.
Contudo, o mesmo não é verdadeiro apenas no terceiro mundo. Já que o
capital adquire mobilidade entre os países avançados e subdesenvolvidos,
mesmo os trabalhadores dos países avançados se tornam sujeitos a competição
com os trabalhadores de baixos salários do terceiro mundo, e portanto aos
efeitos maléficos das reservas de trabalho terceiro-mundistas que mantém
estes salários baixos. Isto significa que os salários reais dos
trabalhadores de países avançados também não aumentam (apesar de obviamente
não caírem aos níveis registados no terceiro mundo), mesmo quando a
produtividade do trabalho aumenta nestas economias. Há um aumento da parte
do excedente e portanto, como resultado, na desigualdade de rendimento
destes países também. (Nos Estados Unidos, de acordo com Joseph Stiglitz, o
salário médio real de um trabalhador masculino não apenas não aumentou entre
1968 e 2011, mas até mesmo diminuiu ligeiramente) [10] . Em resumo, o que
ocorre é uma elevação da parte do excedente no produto mundial.
Em terceiro lugar, já que a propensão marginal para consumir a partir de
rendimentos salariais é maior do que aquela de rendimentos derivados de
excedentes económicos (que tipicamente pertence aos ricos), o aumento na
parte do excedente dá origem a uma tendência em direção à superprodução na
economia mundial, exatamente da maneira que Baran e Sweezy haviam
argumentado no contexto da economia estadunidense nos anos 50 e 60 [11] .
Quarto: a capacidade de qualquer estado-nação de intervir contra esta
tendência ex ante à superprodução (que, de acordo com Baran e Sweezy, foi
o que os Estados Unidos fizeram através de maiores gastos militares nos anos
50 e 60) é frustrada no regime da globalização. Para a intervenção estatal
contrabalançar esta tendência à superprodução, ela deve ser financiada ou
por um défice fiscal, ou por impostos que recaem maioritariamente sobre as
poupanças, o que significa impostos sobre os capitalistas (quer sobre
lucros ou ações) já que a propensão destes a poupar é alta. Mas nenhum
estado-nação em uma economia apanhada no vórtice das finanças globalizadas
pode produzir um défice fiscal (além dos 3% do PIB permitidos pela lei na
maioria dos países) ou tributar os capitalistas, por medo de causar um êxodo
de capital. E os Estados Unidos, que não possuem nem "leis de
responsabilidade fiscal" (limitando o défice fiscal a 3% do PIB), nem
precisa se preocupar com fugas de capitais, já que sua moeda, mesmo no mundo
pós-Bretton Woods, ainda é considerada "tão boa quanto ouro", é relutante em
executar défices fiscais. Isto é porque no regime da globalização, no qual
as corporações americanas vêm instalando fábricas no exterior para se
aproveitar dos baixos salários, um estímulo fiscal implicaria a geração de
empregos no exterior para exportar bens para os Estados Unidos, o que
aumentaria a dívida externa deste último país [NT] .
A tendência a uma superprodução ex ante portanto cria a crise estrutural
que pode, na melhor das hipóteses, ser contida por ocasionais "bolhas" de
preços de ativos, mas se manifesta quando tais "bolhas" colapsam [12] .
Assim, o regime da globalização ocasiona aumento da desigualdade, estagnação
de salários, a dizimação da pequena produção causando absoluta miséria para
grandes segmentos da população trabalhadora do terceiro mundo, e uma
tendência a uma crise estrutural que pode, no melhor dos casos, ser mantida
a distância pelas "bolhas" ocasionais, cujo colapso agrava as condições das
camadas trabalhadoras do mundo através de mais desemprego. O conservadorismo
fiscal age na direção não apenas de acentuar a crise (já que possui um
assim chamado efeito "pró-cíclico"), mas também efetuando cortes nos gastos
e nos benefícios sociais.
Em contraste com a conjuntura do dirigismo do pós-guerra, que havia
presenciado um silenciamento das disputas interimperialistas junto a
concessões que o capital havia sido forçado a fazer, criando então a
impressão de que o "capitalismo havia mudado", o regime da globalização,
apesar de continuar a testemunhar um silenciamento das disputas
interimperialistas, ocasiona uma "volta atrás ao relógio" quando se refere
ao estado de bem-estar social, o pretenso "capitalismo de face humana",
tanto nos países de economia capitalista avançada quanto nos
subdesenvolvidos. A ascendência do capital financeiro internacional,
enquanto silencia as disputas interimperialistas, traz à tona mais uma vez a
natureza extremamente predatória do capitalismo, o fato de que este, para
usar as palavras de Keynes, "não é justo", "não é virtuoso", "não entrega o
que promete" e é capaz apenas de ser "desprezado".
Transcendendo a conjuntura
Superar as dificuldades das camadas trabalhadoras na conjuntura atual
requer a intervenção estatal nesse sentido. Isto por sua vez requer não
apenas que o estado seja sensível aos apuros do povo trabalhador mas também
que possua autonomia quanto à escravidão aos caprichos do capital financeiro
internacional de modo a ser capaz de buscar uma agenda que beneficie os
trabalhadores. Esta autonomia pode ser alcançada apenas em uma de duas
maneiras. Uma delas é através da união dos principais estados-nações
(criando, por assim dizer, um "estado-mundo") que poderia superar a
oposição do capital financeiro internacional à implementação de uma agenda
favorecendo os trabalhadores; a outra é através de países, sozinhos ou
agrupados, rompendo com o vórtice das finanças globalizadas, e colocando em
prática controles de capitais que lhes dariam a autonomia para perseguir uma
agenda alternativa.
Deixe-me elaborar. Um aumento no nível da procura agregada é essencial para
reduzir o desemprego na economia mundial; na ausência de tal aumento,
qualquer país em particular tentando aumentar o emprego através de mero
protecionismo, tal como Trump está fazendo, equivale a uma política de
empobrecimento de países vizinhos, isto é, exportar o desemprego, o que
necessariamente provocaria a retaliação de outros países, minando ainda mais
a "confiança" dos capitalistas, e portanto acentuando o desemprego no geral
e a crise.
Mas numa situação onde, não surpreendentemente, a política monetária se
provou incapaz de aumentar a procura, um aumento na procura agregada mundial
pode ocorrer apenas através de meios fiscais, sobre os quais existem apenas
duas possibilidades [13] . Uma delas é através de um estímulo fiscal
coordenado por diversos estados-nações importantes em desafio aos desejos do
capital financeiro internacional. Mas tal movimento (que incidentalmente
foi debatido por um grupo de sindicalistas alemães nos anos 30, e também por
Keynes) pode apenas ocorrer como resultado da pressão exercida pelas lutas
coordenadas dos trabalhadores destes países, da qual não há sinal no
presente [14] . A segunda maneira de aumentar a procura agregada (além de
políticas de "empobrecimento do vizinho") seriam países individualmente se
desligarem do vórtice dos fluxos de capital globalizado pela imposição de
controles de capitais e provendo estímulos fiscais expansionistas a suas
respetivas economias através de maiores gastos governamentais financiados
por um défice orçamental ou impostos sobre os capitalistas. Já que a
possibilidade de forjar uma aliança operário-camponesa que possa sustentar
tal estado é muito maior dentro de um país em particular do que através de
vários países, transcender a conjuntura atual requer desligar-se do regime
existente da globalização (a extensão exata de tal desligamento deverá ser
determinado pelas circunstâncias).
É claro, transcender a conjuntura atual através da construção de uma
aliança operário-camponesa dentro de um país particular (que deveria ser
tipicamente um grande país de terceiro mundo com presença considerável da
pequena produção) não pode ser o fim da história. Assim como, na análise de
Lenin, levar adiante a revolução democrática até sua completude pelas mãos
da aliança operário-camponesa não era o fim da história, já que se tornou
parte do processo de transição ao socialismo, da mesma forma desligar-se da
globalização, para reverter suas consequências maléficas para os
trabalhadores e pequenos produtores, pois um estado baseado numa aliança
operário-camponesa vai ser parte de uma transição, por estágios, até o
socialismo.
Transcender a conjuntura, em outras palavras, se torna parte do processo
de transcender o sistema em si mesmo. Mesmo que por acaso as forças
revolucionárias constituintes da aliança operário-camponesa se tornem
alheias a esta necessidade, a oposição do capital financeiro internacional a
seu (aparentemente modesto) esforço para transcender a conjuntura em si
mesma faria (nas palavras de Marx) com que a "dialética fosse martelada"
nelas, lembrando-os da necessidade de ir além do sistema mesmo que tentassem
ir apenas além da conjuntura.
Em resumo, a conjuntura atual revive novamente a relevância da agenda
Leninista que informou a Revolução de Outubro, ainda que por razões não
idênticas às anteriores. Ao desejo dos camponeses de liberdade do jugo
feudal agora é adicionado o desejo camponês (e de outros pequenos produtores
do terceiro mundo também) por liberdade da opressão do regime neoliberal
imposto pelo capital financeiro internacional sob a globalização. A
revolução democrática deve agora envolver o desligamento do regime da
globalização para que o estado-nação adquira uma autonomia vis-à-vis o
capital financeiro internacional, que em seu lugar é uma condição para que
qualquer intervenção política feita por uma aliança operário-camponesa seja
bem-sucedida. A globalização criou tanto a necessidade quanto a
possibilidade de uma aliança operário-camponesa e trouxe o mundo a uma
passagem cuja escolha colocada é entre seguir em frente através do
forjamento de tal aliança ou permanecer atolado numa crise onde o capital
financeiro vai confiar cada vez mais no apoio do fascismo para sustentar sua
hegemonia.
No entanto, uma questão importante é levantada aqui. Enquanto o capitalismo
mais uma vez assumiu uma forma onde ele merece apenas ser "desprezado", o
silenciamento das disputas interimperialistas faz com que sustentar qualquer
esforço para escapar a hegemonia do capital financeiro internacional se
torne muito mais difícil, diferentemente até mesmo da época de Lenin.
Transcender a própria conjuntura se torna difícil na ausência de desunião
das principais potências capitalistas. Ou, colocando-se de outra forma, o
silenciamento das disputas interimperialistas parece criar uma situação
"sem saída", onde apesar da opressividade da conjuntura atual qualquer
escapatória dela parece impossível.
Enquanto a resposta a esta questão deve ser encontrada na práxis, o que ela
de fato sugere é que a preservação de uma forte aliança operário-camponesa
se torna muito mais importante para transcender a conjuntura atual, mesmo
que ela possa fazer a transição para o socialismo muito mais morosa. A maior
causa para a debilidade da União Soviética, que a Revolução de Outubro havia
criado, era a dificuldade de manter esta aliança; de fato seu rompimento
através da coletivização forçada foi o que deixou uma permanente cicatriz no
novo sistema. Essa fraqueza deve ser evitada [15] . A necessidade de
desligar-se do atual regime de globalização é comumente não apreciada pela
esquerda, o que faz com que segmentos significativos da esquerda, sem dúvida
involuntariamente, sujeitem-se à hegemonia do neoliberalismo. Libertar-se
desta hegemonia é sem dúvida a primeira prioridade para transcender a
conjuntura.
Julho/2017
Notas
(1) Georg Lukács, Lenin (London: New Left, 1970).
(2) V. I. Lenin, Two Tactics of Social Democracy in the Democratic
Revolution, in Selected Works, vol. 1 (Moscow: Progress Publishers, 1977).
(3) Lenin, Two Tactics of Social Democracy, 494.
(4) V. I. Lenin, Imperialism: The Highest Stage of Capitalism, in
Selected Works, vol. 1.
(5) Sobre isto, ver Paul M. Sweezy, The Theory of Capitalist Development
(New York: Monthly Review Press, 1956).
(6) J. M. Keynes, "National Self-Sufficiency," Yale Review 22, no. 4
(1933): 755–69.
(7) V. I. Lenin, Selected Works , vol. 3 (Moscow: Progress Publishers,
1975), 397.
(8) Lenin, Selected Works , vol. 3, 724.
(9) Ver Harry Magdoff, "Militarism and Imperialism", Monthly Review 21,
no. 9 (February 1970): 1–14.
(10) Joseph Stiglitz, "Inequality Is Holding Back the Recovery", New York
Times, January 13, 2013.
(11) Paul A. Baran and Paul M. Sweezy, Monopoly Capital (New York:
Monthly Review Press, 1966).
(12) Esta argumentação foi apresentada com maior detalhe em Prabhat
Patnaik, "Capitalism and Its Current Crisis", Monthly Review 67, no. 8
(January 2016): 1–13.
(13) Michal Kalecki percebeu a inadequação da politica monetária para
estimular a atividade econômica em seu artigo clássico "Political Aspects of
Full Employment," reimpresso em Selected Essays on the Dynamics of the
Capitalist Economy 1933–1970 (Cambridge, UK: Cambridge University Press,
1971).
(14) C. P. Kindleberger, The World in Depression 1929–1939 (Berkeley, CA:
University of California Press, 1986).
(15) Uma visão, amplamente difundida na esquerda, que contribui para esta
fraqueza é a de que qualquer pequena produção para o mercado é progenitora
do capitalismo. Isto é incorreto, tanto teórica quanto historicamente. Ver
Prabhat Patnaik, "Defining the Concept of Commodity Production," Studies in
People's History 2, no. 1 (2015): 117–25.
(NT) Aqui há, evidentemente, um erro. Os EUA não precisam se endividar no
exterior para pagar pelas próprias importações, uma vez que o dólar
estadunidense é a moeda de referência no comércio internacional, sendo
aceito por qualquer país como pagamento de suas exportações. Os EUA nunca
ficam, por definição, "sem dólares" para pagar suas despesas.
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
O original encontra-se em monthlyreview.org/... . Tradução de Rafael
Ruggiero e revisão de Luiz Lima (com pequenas alterações de resistir.info)
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/patnaik/revolucao_outubro.html
Set de 1917
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário