sábado, 4 de novembro de 2017
O capitalismo neoliberal e a sua crise
por Prabhat Patnaik [*]
"Capitalismo neoliberal" é a expressão utilizada para descrever a fase do
capitalismo em que as restrições aos fluxos globais de commodities e
capitais, incluindo capitais na forma financeira, foram consideravelmente
removidas. Uma vez que tal remoção se verifica sob a pressão do capital
financeiro globalmente móvel (ou internacional), o capitalismo neoliberal
é caracterizado pela hegemonia do capital financeiro internacional, com o
qual os grandes capitais em particular obtêm a integração de países, e os
quais asseguram que um conjunto comum de políticas "neoliberais" são
prosseguidas por todos os países do globo.
A emergência deste capital financeiro internacional é em si própria o
resultado do processo de centralização do capital, o qual num período
anterior, como Lenine havia argumentado, trazia o capital financeiro, ou
uma junção de capital bancário e industrial, para debaixo do controle de
uma oligarquia financeira, numa posição de hegemonia dentro de cada país
avançado. Entretanto, a centralização de hoje do capital progrediu muito
além do tempo de Lenine, criando esta nova entidade chamada capital
financeiro internacional e levando-o a uma posição de hegemonia.
Uma vez uma economia tendo afundado no turbilhão dos fluxos financeiros
globalizado, seu Estado quer queira quer não tem de inclinar-se aos
caprichos do capital financeiro internacional e prosseguir políticas que
lhe são favoráveis. Este facto tem um certo número de implicações e estas
constituem as características salientes do capitalismo neoliberal.
Primeiro, o capitalismo neoliberal é marcado, ao contrário do capitalismo
do passado, por uma relocalização de actividades por parte do capital
metropolitano do mundo avançado para o mundo subdesenvolvido, para
aproveitar-se dos baixos salários que prevalecem nestes últimos, a fim de
produzir para o mercado mundial.
Segundo, isto altera o carácter do Estado por toda a parte, de modo que o
Estado, ao invés de aparentemente posicionar-se acima das classes e
defender os interesses de todos, incluindo mesmo as classes oprimidas,
apesar de buscar o desenvolvimento capitalista, torna-se mais abertamente
e directamente ligado aos interesses da oligarquia corporativo-financeira
a qual, por sua vez, está conectada ao capital financeiro internacional.
Isto significa, entre outras coisas, uma retirada do apoio do Estado à
pequena produção tradicional e à agricultura camponesa – e portanto a
retomada de um processo de acumulação primitiva de capital que recorda a
primitiva era colonial.
Terceiro, a intervenção do Estado na "gestão da procura", a qual fora a
marca característica do capitalismo do pós guerra durante a assim chamada
"Era Dourada", mas à qual sempre o capital financeiro sempre se opusera
pois isso minava a legitimidade social da classe capitalista,
especialmente da classe financeira, foi evitada sob a pressão da finança
globalizada. Leis de "responsabilidade orçamental" são aprovadas, país
após país, para assegurar que os esforços dos Estados para aumentar o
emprego e a actividade na economia assumem a forma de providenciar
"incentivos" ao capital ao invés de empreender a despesa directa por si
mesmo. Isto entretanto significa com efeito que o crescimento do sistema
já não pode mais ser estimulado pelo Estado (uma vez que os capitalistas
simplesmente embolsam todos os subsídios e transferências que lhes chegam
do Estado como "incentivos" sem empreender qualquer investimento
adicional). O crescimento acaba por depender essencialmente da formação de
"bolhas" de preços de activos (aparte os gastos do consumidor financiados
por crédito, o qual no entanto tem limites muito estritos).
Estas características do capitalismo neoliberal têm por sua vez
consequências importantes. Por um lado, mesmo quando o sistema cresce,
este mesmo crescimento é acompanhado por um aumento extremo das
desigualdades de rendimento e riqueza dentro dos países. Os trabalhadores
nos países capitalistas avançados são incapazes de elevar seus salários
porque num mundo com mobilidade de capital eles competem de facto contra
as reservas de trabalho maciças do terceiro mundo. Mesmo os trabalhadores
em países dentro dos quais ocorre a terciarização (outsourcing) de
actividades são incapazes de elevar os seus salários porque as reservas de
trabalhos nestes países, longe de serem esgotadas por causa desta
terciarização, realmente aumenta em tamanho relativo devido ao
despojamento de pequenos produtores tradicionais e de camponeses.
Portanto o vector dos salários reais por todos os países, tanto
desenvolvidos como subdesenvolvidos, não aumenta ao longo do tempo embora
o vector da produtividade do trabalho aumente. Este despojamento de
camponeses e pequenos produtores e ainda a dizimação das suas economias
causa mesmo, em países do terceiro mundo, um aumento absoluto do nível de
desnutrição e privação material.
Embora tudo isto ocorra quando o capitalismo neoliberal realmente
experimenta crescimento, ele não pode mesmo experimentar crescimento
sustentável. O crescimento mais rápido da produtividade do trabalho em
relação aos salários, por toda a parte, leva a um aumento da dimensão
relativa do excedente (surplus) da economia mundial, o qual cria uma
tendência em direcção à super-produção (uma vez que o rácio do consumo em
relação ao rendimento é maior entre salários do que entre excedentes). E
o único factor dentro de um regime de capitalismo neoliberal que pode
compensar esta tendência, nomeadamente booms provocados por bolhas de
preços de activos, torna-se inoperante quando estas bolhas entram em
colapso – como inevitavelmente tem de acontecer.
A crise originada desta fonte pode ser razoavelmente prolongada, uma vez
que novas bolhas não podem ser feitas por encomenda. E quando tais crises
ocorrem, as condições da população trabalhadora tornam-se ainda mais
lamentáveis do que acontecia quando ocorria crescimento. O mundo
capitalista hoje está no meio de uma tal crise prolongada, sem fim à
vista. E mesmo se por acaso houver alguma recuperação através da formação
de uma nova bolha, esta recuperação também será evanescente, perdurando só
até o colapso da nova bolha.
É esta crise prolongada na qual o capitalismo neoliberal está afundado
que provoca o actual surto de fascismo à escala mundial. Uma vez que a
globalização do capital e do processo associado de privatização de
empresas do Sector Público enfraquece o movimento sindical, e em geral o
poder de greve imediata da classe trabalhadora, movimentos fascistas
baseados no "supremacismo" de uma espécie ou de outra, e apelando à
irracionalidade, tendem a aflorar em tais períodos. Eles não têm uma
agenda para ultrapassar a crise além de culpar e vitimizar "o odiado
outro" e projectar um "messias" que milagrosamente curaria a sociedade de
todos os males que afligem.
Estes movimentos apelam acima de tudo à pequena burguesia, mas em
períodos de extrema fraqueza do movimento proletário eles podem mesmo
aliciar o apoio de certos segmentos de trabalhadores. Mas estes
movimentos são invariavelmente erguidos, promovidos e apoiados pela
oligarquia corporativo-financeira para impedir mesmo qualquer desafio
potencial da classe trabalhadora à sua hegemonia. Na verdade, eles
crescem em força e movem-se para o centro do palco só quando obtiveram
numa certa medida o apoio da oligarquia corporativo-financeira. Esta
aliança entre magnatas corporativo-financeiros e os "arrivistas"
("upstarts") (para utilizar a expressão de Kalecki) está actualmente em
diferentes etapas de formação em diferentes países do mundo. Mas esta
ameaça de fascismo está agora a avultar por toda a parte do mundo. E mesmo
onde os fascistas não conseguem chegar ao poder, muito menos empurrar
países rumo a Estados fascistas completos, eles no entanto pervertem
grandemente os fundamentos de qualquer sociedade democrática pela
atmosfera venenosa que criam.
Entretanto, há uma diferença básica entre o fascismo contemporâneo e o
fascismo da década de 1930. O capital financeiro que havia promovido o
fascismo nos anos 30 era capital financeiro com base na nação que
estivera empenhado em amarga rivalidade inter-imperialista e havia
glorificado a "nação" como seu amparo ideológico nesta rivalidade. O
fascismo contemporâneo emergiu dentro da hegemonia do capital financeiro
internacional e de atenuada rivalidade inter-imperialista por causa desta
mesma hegemonia (uma vez que o capital globalizado não quer ver impedidos
os seus fluxos inter-países por um mundo fracturado por potências rivais
dentro de diferentes "territórios económicos"); e não tem qualquer desejo
de desafiar esta hegemonia. O seu "nacionalismo" portanto carece de
qualquer substância material.
Contudo, por alguma razão ele pouco pode fazer para deter a crise do
capitalismo neoliberal, mesmo que chegue ao poder, sempre que isso
acontece, através da promessa de acabar com esta crise. Na Alemanha de
1933 e no Japão de 1931, o fascismo realmente acabou com a crise da sua
própria maneira. O rearmamento realmente conseguiu retirar estas
economias da Depressão, de modo que houve um breve período, antes de a
guerra cobrar os seus penosíssimos custos, quando o boom causado pela
militarização ampliou a base de apoio dos fascistas. Mas nas condições
contemporâneas, governos fascistas pouco podem fazer para ultrapassar a
crise.
Para aumentar a procura, tais governos, mesmo que se empenhem em gastos
militares ampliados, terão de financiar os mesmos ou através de um défice
orçamental ou através da tributação de capitalistas (uma vez que as
despesas do governo financiadas pelos impostos dos trabalhadores, que
gastam os seus salários de qualquer modo, não levam a qualquer aumento
líquido da procura). Contudo, qualquer destes dois caminhos de financiar
despesas governamentais é anátema para o capital financeiro internacional.
O fascismo contemporâneo, portanto, é singularmente incapaz de resolver a
crise capitalista mesmo através de métodos fascistas.
O capitalismo contemporâneo atingiu portanto um beco sem saída. Os
partidos tradicionais do establishment não podem pensar para além do
neoliberalismo e de qualquer modo estão profundamente implicados nas
políticas que geraram a crise. Muitos deles, como Hillary Clinton nos
EUA, nem mesmo tomam conhecimento da crise, pensando que a economia
ressuscitaria por si própria deste abalo menor mesmo dentro do quadro do
neoliberalismo. As forças fascistas, por outro lado, tão pouco têm
qualquer programa explícito para ultrapassar a crise, nem mesmo qualquer
agenda implícita que pudesse emergir como resultado da sua inclinação
pelo gasto militar. Assim, nem Trump, nem Marine Le Pen, nem o UKIP, nem
qualquer dos outros elementos fascistas actualmente em foco têm qualquer
programa económico para ultrapassar a crise.
Trump tem falado de proteccionismo como um modo de saída da crise para os
EUA. Mas o mero proteccionismo, sem ampliar o mercado interno através de
maior despesa governamental financiada por um défice ou por impostos sobre
capitalista, pode gerar maior emprego só se outros países não retaliarem.
Se eles fizerem retaliação, então segue-se uma política competitiva de
"empobreço meu vizinho", a qual só serve para agravar a crise capitalista
mundial e piorar a condição de todos os países. Portanto o proteccionismo
de Trump não está em vias de aumentar o emprego nos EUA na ausência de uma
política orçamental expansionista.
Mas longe de perseguir uma política orçamental expansionista, Trump está
a propor medidas que terão um efeito contraccionista. Uma vez que ele
planeia dar concessões fiscais ao sector corporativo e equilibrar isto com
cortes nas despesas governamentais com o bem-estar destinadas aos pobres,
isto só agravará a crise nos EUA, porque a procura agregada será reduzida
com estas medidas orçamentais. (O sector corporativo, o qual poupa uma
grande parte do seu rendimento após impostos, simplesmente poupará suas
concessões fiscais e portanto não aumentará a procura, ao passo que a
redução da despesa governamental com bem-estar irá realmente reduzir a
procura).
Dentro do regime de hegemonia do capital financeiro globalizado não há
portanto solução para a crise capitalista. A única solução possível, a
qual qualquer país individual pode tentar, é que o seu Estado desempenhe
um papel activo. E para que isto aconteça o Estado deve abandonar seu
carácter de Estado neoliberal.
Ele só pode fazer isto se a economia for retirada do turbilhão de fluxos
globais de capital, através de controles de capitais, e também, na medida
necessária, de controles de comércio; ou seja, se a economia se desligar
da globalização. Como a oligarquia corporativo-financeira que está
integrada com o capital financeiro internacional não aprovará isto, só um
Estado com uma base de classe alternativa será capaz de efectuar uma tal
mudança, um Estado que esteja baseado no apoio do povo trabalhador. E
quando o povo trabalhador efectuar uma tal mudança, ele não ficará
satisfeito simplesmente com uma ressurreição de uma economia capitalista,
mas preferencialmente prosseguirá adiante na construção conjunta de uma
economia alternativa, uma economia que fará uma transição para o
socialismo. Portanto o beco sem saída no qual se encontra o capitalismo
neoliberal pode ser rompido, mas uma tal ruptura levará a uma
transcendência do próprio capitalismo.
Não há dúvida, como disse Lenine, que não existe algo como uma situação
absolutamente sem esperança para o capitalismo. Mesmo se o próprio
capitalismo é incapaz de escapar do beco sem saída, ele fará todos os
esforços possíveis para impedir o povo trabalhador de se organizar a fim
de efectuar uma mudança da situação. Isto desencadeará todas as trapaças
conhecidas do fascismo para esta finalidade. Ele fará todos os esforços
para empurrar a espécie humana rumo à barbárie a fim de impedir que se
mova em frente rumo ao socialismo. O resultado final, naturalmente,
depende da praxis. Mas o cenário actual abre a possibilidade de os
trabalhadores tomarem a iniciativa de se erguer para sair da crise e ao
mesmo tempo defender e aprofundar seus direitos democráticos, avançar em
suma o projecto da Revolução de Outubro.
24/Outubro/2017
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
O original encontra-se em www.networkideas.org/... . Tradução de JF.
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/patnaik/patnaik_24out17.html
4/11/2017
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