terça-feira, 7 de novembro de 2017
A Revolução de Outubro, normal ou monstruosa?
por Annie Lacroix-Riz [*]
A historiografia dominante está alinhada com a propaganda antibolchevique
e russófoba desenvolvida desde o final de 1917. Mas pode-se, ainda,
confrontar a ladainha dos grandes média e dos seus historiadores fetiches
com as muitas obras científicas que descreveram corretamente a Revolução
de Outubro. Lê-las, sobre o maior acontecimento do século 20, permite
aspirar uma grande lufada de ar fresco. Não hesitem...
A Revolução de Outubro é tão lógica como a Revolução Francesa, que só
pode ser explicada descrevendo-a, seguindo o exemplo dos grandes
historiadores Albert Mathiez , Georges Lefebvre e Albert Soboul sobre a
crise, a longo e curto prazos, do Antigo Regime feudal, que precedeu e
provocou esse terramoto.
Uma longa situação pré-revolucionária
Um país atrasado, lançado no capitalismo entre o ukase [1] de 1861, que
aboliu a servidão, e a imposição de sacrifícios desta caverna de Ali Baba,
a partir de 1890, pelas potências imperialistas desenvolvidas. A massa de
camponeses, mais de 80% da população, foi privada de terra ou humilhada –
mais gravemente, ao longo de gerações –, com a dívida de resgate
obrigatório de terras tornadas "livres", com a superfície reduzida a
quase nada (os camponeses franceses tinham conseguido, em julho de 1793,
depois de uma luta ininterrupta de quatro anos, a abolição dos direitos
senhoriais sem indemnização). A classe operária saída deste miserável
mundo camponês foi sobre-explorada pela grande burguesia nacional e, ainda
mais, pelos tutores desta, os grandes grupos bancários e industriais
estrangeiros (franceses, britânicos, alemães, suíços, americanos), que,
depois do Ministro de Witte , controlavam toda a economia moderna.
Concentrada, mais do que em qualquer outro país, nas grandes cidades –
sobretudo na capital política, São Petersburgo-Petrogrado, com a enorme
fábrica de armamento Poutilov –, era muito combativa: antes de 1914, 40%
dos 3 milhões de operários trabalhavam em fábricas com mais de mil
operários, e a "curva de greves" aumentou incessantemente do segundo
semestre de 1914 até fevereiro de 1917, passando de 30 mil para 700 mil
grevistas.
A Guerra russo-japonesa de 1904 – símbolo dos apetites dos grandes
imperialismos rivais pela mina de ouro da Rússia –, tinha terminado, dada
a inépcia militar do regime czarista, com um fracasso tão lamentável como
aquele que tinha posto fim à guerra da Crimeia. E teve como consequência a
revolução de 1905, na qual Lénine, líder da fração "bolchevique"
(maioritária no Congresso de Londres de 1903) do Partido Operário
Social-Democrata da Rússia (POSDR), vive, em retrospetiva, "o maior
movimento do proletariado após a Comuna" e "a repetição geral" da
revolução de 1917. O fracasso do movimento fundador dos "conselhos"
(sovietes), nova forma de expressão e de poder popular, foi seguido duma
terrível e duradoura repressão: mais do que nunca, o império foi uma
prisão dos povos, amor absoluto do grande capital francês, financiador de
créditos garantidos pelo Estado francês e "cortador de cupões" (Lénine,
capítulo 8, de O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo ). Esse
fracasso retardaria em cinquenta anos o surgimento de uma nova revolução,
a menos que, pensava Lénine, surgisse uma crise ou uma guerra. A fase
seguinte encurtou os prazos, conjugando os dois.
O sistema czarista mostrou-se inepto, como de costume, na condução geral
da guerra. A sua carne para canhão não dispunha mesmo do mínimo de
munições, com a Rússia a fabricar, de 1914 a 1917, 9 vezes menos cartuchos
e armas do que o necessário. Baixa da produção agrícola de quase um
quarto, irregularidades nas requisições, culturas a apodrecer nos locais
de produção, insuperáveis problemas de transporte, catástrofe no
abastecimento: no início de 1917, mesmo na frente, a ração de pão não dava
para o dia e os soldados-camponeses (95% do exército) reentravam em sua
casa a pé. Era pior nas cidades, designadamente, em Moscovo e Petrogrado.
A fome foi "a causa imediata da revolução" de fevereiro (Michel Laran,
Rússia-URSS 1870-1970, Paris, Masson, 1973). Isto levou à abdicação de
Nicholas II, que "tinha conseguido a unanimidade contra ele".
Uma revolução lógica
Os bolcheviques, exilados, como Lénine (na Finlândia), ou clandestinos na
Rússia, eram então certamente ultraminoritários. Mas deixaram rapidamente
de o ser, pois o povo russo, ávido de reformas profundas, teve de perceber
que o seu destino não mudava. Ao longo de meses ficou amargamente
desapontado com aqueles a quem tinha dado a sua confiança, como os
socialistas-revolucionários, que tinham prometido, há muito tempo, a
terra aos que a trabalhavam. Até mesmo os camponeses acabaram por admitir,
na passagem do outubro de 1917, que nenhum outro partido, além do de
Lénine – o único a demonstrar, desde fevereiro, a capacidade de manter os
seus compromissos –, lhes daria a terra e os libertaria de direito da
carnificina, que desde 1916 eles começaram a abandonar de facto.
Os historiadores franceses dos anos 1970 mostraram como a evolução da
conjuntura e das relações sociais tinham, em tempo recorde, sobretudo
entre agosto e outubro de 1917, erigido os minoritários de fevereiro em
representantes exclusivos das "aspirações populares". O académico René
Girault descreveu este processo como dominado por duas questões, a terra e
a paz. "A partir do fracassado golpe de Estado do general Kornilov (no
final de agosto), a evolução acelerada dos sovietes em direção aos
bolcheviques, marcada pela passagem de muitos sovietes urbanos, de
soldados e até de camponeses para as maiorias bolcheviques, mostra que a
constante oposição dos bolcheviques ao Governo Provisório (e à sua
"encarnação" Kerensky) ganhou a adesão popular&#quot;.
Logo que tomou o poder, o Partido bolchevique realizou as reformas
prometidas "fazendo inclinar para o seu lado a grande massa do
campesinato", sabendo que "a confiança [que lhe conferiam] as massas
urbanas era muito mais forte" do que a dos camponeses. A análise do
historiador socialista juntava-se, sessenta anos mais tarde, ("As
revoluções russas", t. 5 da História económica e social do mundo, Léon
Pierre, ed., Paris, Armand Colin, 1977, pp. 125-142), à do grande
jornalista comunista norte-americano John Reed, autor de Os dez dias que
abalaram o mundo, obra-prima da "história imediata" da Revolução de
outubro e das suas questões de classe, que é necessário ler e reler
(Paris, 10-18, reedição, 1963).
A coligação imperialista contra os Sovietes
Foram essas transformações, realizadas com tanto de pragmatismo como de
fidelidade aos princípios, de acordo com Girault, que asseguraram aos
bolcheviques sozinhos (solidão que não quiseram) a vitória final numa
"guerra civil" que, como a Revolução Francesa e todas as "guerras
civis" posteriores, teve origem e financiamento principalmente
estrangeiros (como o atesta o atual caso venezuelano). Não foi por os
bolcheviques serem detestados ditadores sanguinários do seu povo que,
depois de 1918, "as forças armadas de catorze Estados invadiram a Rússia
soviética sem declaração de guerra", tendo à cabeça "a Grã-Bretanha, a
França, o Japão, a Alemanha, a Itália, os Estados Unidos", mataram mais
russos do que a própria guerra – 7 milhões de "homens, mulheres e
crianças" – e causaram "perdas materiais estimadas pelo governo
soviético em 60 mil milhões de dólares", montante muito superior às
"dívidas czaristas aos Aliados" e que não deu origem a "qualquer
reparação" por parte dos invasores, de acordo com "o balanço" de
Michael Sayers e Albert Kahn The Great Conspiracy: The Secret War Against
Soviet Russia [A Grande Conspiração: A guerra secreta contra a Rússia
Soviética], Little, Boni & Gaer, Nova York, 1946). Como os aristocratas
da Europa coligados, em 1792, para restabelecer em França o Antigo Regime
e garantir para eles a sobrevivência dos privilégios feudais, os grupos
estrangeiros que deitaram a mão ao império russo e os Estados ao seu
serviço mergulharam novamente a Rússia em três anos de caos, para
preservar os seus tesouros e conseguir outros novos, como a Royal Dutch
Shell, que contava na ocasião levar a totalidade do petróleo caucasiano.
Como na França, o Terror revolucionário foi apenas a resposta necessária
aos assaltos externos.
A atual etapa de demonização da Rússia soviética (ou não)
Ao comparar as revoluções francesa e russa, o grande historiador
americano Arno Mayer, professor de Princeton, confirmou estas análises de
Sayers e Kahn, futuras vítimas do macartismo ( www.independent.co.uk/...
en.wikipedia.org/wiki/Albert_E._Kahn ). Se a França, concluiu ele,
tinha sido uma "fortaleza sitiada" antes de a nova classe dominante
poder "combinar-se" com os privilegiados contra-revolucionários da
França e de outros lugares, a Rússia soviética permaneceu uma pária
assaltada desde o seu nascimento até a sua morte, e por razões
independentes do caráter e dos modos de Lénine ou de Stáline ( Les
Furies 1789, 1917, Violence vengeance terreur aux temps de la révolution
française et de la révolution russe (As Fúrias, 1789,1917, Violência,
vingança e terror no tempo da Revolução Francesa e da Revolução Russa),
Paris, Fayard, 2002 ). Exceção, felizmente traduzida, na paisagem
historiográfica.
Exceção feliz, por que os historiadores "reconhecidos" apresentam hoje
a Revolução de Outubro como o golpe de Estado de um grupúsculo
antidemocrático e sedento de sangue ou, na melhor das hipóteses, como uma
empresa inicial simpática, confiscada por uma "minoria política a atuar
no vazio ambiente institucional" e conduzindo, oh horror, a "décadas de
ditadura" e ao "fracasso soviético [marcando] o fracasso e a derrota de
todas as formas históricas de emancipação do século XX ligadas ao
movimento operário": estes julgamentos de Nicolas Werth e Frédérick
Genevée , em "Que reste-t-il de la révolution d'Octobre? (O que resta da
Revolução de Outubro?)", "edição especial" de L'Humanité , publicado
no verão de 2017, confirmam os arrependimentos oficiais do PCF sobre o seu
passado "estalinista", após a publicação do Livro Negro do Comunismo ,
de 1997, do tandem Stéphane Courtois (sucessor do falecido François
Furet)-Nicolas Werth.
Eco significativo da mudança anti-soviética e pró-americana dos manuais
de história franceses do secundário, negociados a partir de 1983, que
atingiu a URSS (Diana Pinto, "L'Amérique dans les livres d'histoire et de
géographie des classes terminales françaises [A América nos livros de
história e geografia das classes terminais francesas]", Historiadores e
Géografos , n° 303, março de 1985, pp. 611-620), depois a Revolução
Francesa: foi a dupla obsessão de Furet, historiador sem arquivos, que
"os de cima", na França, nos Estados Unidos e na União Europeia, com a
Alemanha em primeiro lugar, usaram tanto (História contemporânea ainda
sob influência, Paris, Delga, o tempo das cerejas, 2012). Após a derrota
da URSS e suas consequências – a extensão considerável da esfera de
influência americana na Europa –, a criminalização da URSS foi tanto mais
facilmente imposta, quanto quase todos os antigos partidos comunistas
deixaram de lhe resistir.
A historiografia dominante está alinhada com a propaganda
anti-bolchevique e russófoba desenvolvida desde o final de 1917. Mas
pode-se, ainda, confrontar a ladainha dos grandes média e dos seus
historiadores fetiches com as muitas obras científicas que descreveram
corretamente a Revolução de Outubro. Lê-las, sobre o maior acontecimento
do século 20, permite aspirar uma grande lufada de ar fresco. Não
hesitem...
06/Novembro/2017
[NT] ukase (formalmente 'imposição') é uma proclamação, um decreto, uma
ordem ou um regulamento de natureza definitiva ou arbitrária,
Ver também:
Stalin, História e crítica de uma lenda negra , Miguel Urbano Rodrigues
[*] Professora emérita de história contemporânea, Universidade de Paris 7,
Denis Diderot.
O original encontra-se em Le Drapeau rouge, n.º 64, setembro-outubro
2017 em www.initiative-communiste.fr/... e a versão em português em
pelosocialismo.blogs.sapo.pt/a-revolucao-de-outubro-normal-ou-24855
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/russia/lacroix_riz_nov17.html#asterisco
6/11/2017
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