segunda-feira, 20 de novembro de 2017
O pior que há em nós
por João Carlos Lopes Pereira [*]
Todos nós – ou quase – temos um aparelho de televisão em casa. Pelo
menos. Suponho que a grande maioria dos que possuem essa máquina, terá
acesso a mais do que o serviço básico, pelo que poderá assistir às
diversas séries que canais como o FOX e o AXN, entre outros, transmitem,
praticamente 24 horas por dia. Também o National Geographic se vai
transformando numa coisa que já pouco tem que ver com o Geographic, mas
muito – isso, sim – com o American Way of Life, passando, cada vez com
mais frequência, séries onde o tema é, assim, ou assado, a cavalgada dos
norte americanos, já não pelas pradarias da América do Norte, empurrando
os peles-vermelhas – os selvagens – para fora das suas terras,
condenando-os metodicamente à penúria, à doença e à extinção (ficaram uns
resíduos decorativos, ou folclóricos), mas a cavalgada é a que hoje fazem
por esse mundo fora, que encaram como aquela planície onde, como faziam há
duzentos e tal anos, têm o direito de afastar da frente – de exterminar –
seja lá como for, quem se opuser aos seus desígnios, coisa que tem, na
génese, um apetite desenfreado por deitar a mão ao do alheio.
Aqui chegados, convém acrescentar que estes e outros canais, ditos de
entretenimento, também nos oferecem filmes, invariavelmente
norte-americanos, onde a história é sempre a mesma. No lugar dos
peles-vermelhas já estiveram, em tempos, os terríveis soviéticos, com
espiões do pior que havia naquela altura, tendo as nacionalidades dos
maus variado, ao longo dos tempos, conforme a conjuntura internacional
o aconselha, passando por pérfidos orientais e pela guerrilha
sul-americana – onde os cubanos, por exemplo, são pintados como gente do
piorio – até que se chegou, nos dias que correm, aos árabes desalinhados,
tanto mais malvadões quanto mais petróleo tiverem no quintal e não
quiserem oferecê-lo aos brancos civilizados. Nunca há, por exemplo,
sauditas maus, só os que degeneraram, como o Osama Bin Laden, mas esse,
mesmo assim, era uma excelente pessoa quando combatia, no Afeganistão, os
malditos soviéticos.
Como pano de fundo destas coloridas injecções ideológicas, a mais
desbragada violência, mas diga-se, porque é verdade, que nem sempre foi
assim.
O antigo herói norte-americano, aquele que nos vendiam a partir do início
da segunda metade do século passado, era um herói romântico, fosse ele
sorridente ou carrancudo. Tinha os seus defeitos, é certo, mas as virtudes
vinham sempre ao de cima mesmo no final. Às vezes, até morria em nome dos
valores(?!) norte-americanos, forma – diga-se – relativamente inteligente
de nos entrar nos neurónios e anestesiá-los.
Hoje, não. Hoje, impera a mais absoluta indigência mental. O guião é
sempre o mesmo. De um lado, os bons – ou seja: os norte-americanos e os
seus amigos; do outro lado, os maus, dependendo do que interessar no
momento, sendo que o está na moda, como já se disse, são os árabes; o
cenário, tanto pode ser uma cidade iraquiana, ou afegã, mas, também, pode
ser uma grande cidade dos EUA, onde os desalmados querem fazer detonar uma
bomba maior do que a de Hiroshima (que, juntamente com a de Nagasaki foram
as únicas que, realmente, mataram alguém); a acção, já se sabe, mete
sempre – e obrigatoriamente – várias perseguições com imensos automóveis,
por entre um tráfico intensíssimo, despiste brutais, cento e trinta e nove
explosões, setenta e oito colisões e nunca menos de oitenta e dois
capotamentos, podendo um ou outro ser o mesmo, filmado de vários ângulos.
Muito sangue, tiros, socos, pontapés, golpes altos, baixos, médios, não
interessa, o que interessa é que tenham a estética e a eficácia dos
mestres em golpes. A história; havendo os bons e havendo os maus, sendo
também de bom-tom incluir um ou dois traidores norte-americanos –
normalmente muito feios, ruins e estúpidos – e desde que as explosões
sejam muitas e enormes e, no fim, o herói fique com a rapariga, mais nada
é preciso.
Agora, a National Geographic anda a transmitir uma coisa destas, com uns
simpáticos rapazes norte-americanos, homens muito normais e educados,
alguns até usam óculos e tudo, casados com senhoras gentilíssimas, um ou
outro já com filhinhos pequeninos e amorosos, e que, para salvar a
humanidade (a humanidade, os valores ocidentais – estão a perceber? – não
os interesses vitais dos ianques), se vêem obrigados, coitados, a
prejudicar a sua vida para irem todos, como irmãos, combater num país
árabe que está infestado de árabes muito maus, da espécie que já nasceu
com aquela de odiar tudo o que é branco, especialmente se sepikar
ingliche e tomar banho todos os dias.
E lá vem a violência das explosões, dos seus estragos nas viaturas
lindíssimas dos invasores – que disse eu?! Invasores?! Perdão! Queria
dizer: salvadores – tudo por culpa dos maus, por inveja, por capricho,
gente que não tem filhos, nem mulheres loiras e muito bem penteadas e
muitíssimo elegantes, como têm os heróis brancos que estão ali, apenas,
para matar em nome do BEM .
Já perceberam? Não? Então esperem pela próxima acção de «libertação» que
esta série anuncia. Creio que a TV, depois, quando for a sério, dará em
directo. As audiências serão enormes e, pelo menos por cá, pela nossa
santa civilização, a destruição do MAL – que a série tão bem
caracterizou – será aplaudida de pé.
Mas nas restantes séries que andam por aí a granel, com uma ou outra
variante, o sumo é sempre igual. Mesmo naquelas em não entram os maus – ou
quando os maus são as réplicas dos criminosos que os norte-americanos têm
por lá aos pontapés – a constante visual é sempre a extrema e a mais
brutal violência. Para o norte-americano comum, a violência, o músculo, o
desprezo pelo outro, pela vida, é a base do sucesso. Está-lhes nos genes.
- Vai-te a eles, campeão! Esmaga-os! – É assim que os pais estimulam os
filhos nos EUA.
E o pior é que este modo de ver a vida – ou o mundo, ou a espécie – está
a ser exportado dos EUA, em toneladas inimagináveis, para dentro de cada
um de nós.
Desde o estarmos a enxertar o nosso idioma com um número cada vez maior
de vocábulos do dialecto que os norte-americanos usam – enchia uma página
inteira reproduzi-los aqui – até ao assimilarmos os seus usos e costumes,
onde matar ou agredir faz parte do caminho de um homem, caso almeje ao
sucesso – a violência transformada numa coisa banalíssima – eis que nos
estamos a transmutar, clara e inequivocamente, em autómatos ao serviço de
um Império que, de certo modo, a ficção norte-americana já antecipou.
Não me espanta, por isso, que muitos portugueses se estejam a transformar
em seres cada vez mais básicos, mais gordos e mais violentos.
Já não se trata, meus amigos, de lavarem-lhes os cérebros. Trata-se,
autenticamente, de levaram-lhes os cérebros.
Se não reagirmos a isto, vai sobrar, apenas, o pior que há em nós.
Do mesmo autor:
A indiscutível ditadura dos banqueiros
Terror, terrorismo, terroristas
[*] Ex bancário e autarca , autor de "A mosca na vidraça" e outras obras.
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/portugal/o_pior_15nov17.html#asterisco
20/11/2017
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário