O proletariado na crise econômica
Candido G.
Vieitez[1]
O álibi perfeito
A contar da implosão financeira de
2008 – a crise vinha dos anos 1970 -, a economia não mais voltou ao “normal”. É certo que o capital muito acumulou. Porém,
esse “progresso”, obtido com a desmesurada acumulação de dinheiro fictício, não
se refletiu na economia real. O problema é a tendência ao decrescimento da taxa
de mais valia que, dificultando o lucro no campo da produção de bens, empurra o
capital para o terreno mágico do mundo financeiro.
A financeirização foi uma das “soluções” encontradas pela classe
dominante para recompor a lucratividade. A outra foi a generalização e
intensificação do desmonte – que igualmente remonta a 1970- das atividades consideradas de tipo
“socialista” pelo establishment, o
que resultou em privatizações extensivas da propriedade estatal, enfraquecimento
da autonomia do Estado, ataque aos direitos trabalhistas, precarização do
trabalho, e amputação ou liquidação dos sistemas públicos de saúde e aposentadoria.
Depois do estouro financeiro de 2008,
a crise continuou sendo cozinhada em fogo brando, de sorte que uma explosão
ainda mais devastadora do que a de 2008 era esperada. Mas, o resultado dessas
“soluções” neoliberais foi o enriquecimento exponencial da burguesia e o
empobrecimento do proletariado.
É nesse contexto que irrompe a Covid-19.
Os Estados, de modo imediato ou tardio, tiveram
que tomar medidas de isolamento social que conduziram à maior ou menor paralisia
da máquina econômica. Foi o que bastou para que se brandisse o álibi perfeito.
Os think tanks do sistema, as
autoridades, e a mídia de massas, debitam as dificuldades econômicas à
pandemia, isentando de culpa a ordem estabelecida. Ao mesmo tempo, se de um
lado a pandemia está demandando certa revitalização do protagonismo estatal, de
outro, serve também para justificar a continuação das políticas neoliberais.
Retomada dos movimentos sociais e
revivescência fascista
A crise de acumulação repercutiu na
geopolítica, bem como na impostação político/ideológica da burguesia e do
proletariado, o que se desdobrou no seguinte:
aguçamento do confronto do império Euro-Atlântico com a China e a Rússia;
revivescência da ideologia e práticas fascistas ou neofascistas; despertar
oposicionista do proletariado às políticas neoliberais.
As grandes crises capitalistas, tendentes
a degradar as condições de vidas das massas, são propícias à emersão de fenômenos
tanto progressivos quanto regressivos. Na Europa, América Latina e até nos EUA,
os trabalhadores, inclusive os estudantes, se mobilizaram em movimentos,
manifestações de rua, e greves. Em geral contra a degradação dos salários e das
condições de trabalho. Em uns poucos casos, o descontentamento expressou-se na
eleição de governos nacionais de corte socialdemocrata.
Praticamente em contraponto com os
movimentos sociais afloraram correntes políticas fascistas ou fascistizantes
que se manifestaram em quadros políticos, militares, grande burguesia, boa
parte das classes médias –sempre apavoradas com a possibilidade de decaimento
social- e, apreciáveis contingentes
populares, inclusive.
Categorias /valores fascistizantes
encontram-se na ideologia liberal em estado explícito ou latente e, portanto,
também estão presentes no senso comum liberal do povo. Mas, sua condensação
numa doutrina ativa depende de que a classe dominante ou um setor dela invista
nisso seu dinheiro e cabedal político, como bem o demonstraram os clássicos exemplos
da Itália e Alemanha.
Em nosso país, o “fascismo” pós
ditadura 1964 soergueu-se trafegando pela estrada real aberta pelo imperialismo
em concubinato com as disposições da burguesia local. O interesse imperial
neste episódio da vida nacional decorre sobretudo do seu enfrentamento com a
China “comunista” e a Rússia, possivelmente “cripto-comunista”. Nesta nova
versão do confronto geopolítico, o “comunismo”, além de ser o espectro de
sempre, é agora um formidável e intolerável concorrente econômico-mercantil. Esta concorrência avançava no país via
comércio e via BRICS. Ademais, o governo do PT, por mais que tivesse priorizado
os interesses do capital, ainda era um entrave considerável aos “bons” negócios.
Eis, esquematicamente, a agenda política
bolosonarista. Na política econômica podemos considera-la convencional no
sentido de que é adepta de um neoliberalismo chapado. Mas, na instância
superestrutural (cultura, ética, etc.), parece buscar uma reconstituição dos
valores burgueses segundo uma variante espantosamente regressiva, pautada pelo
irracionalismo anticientífico e teses estapafúrdias como o terraplanismo, o
criacionismo, etc. Os demais valores, não estranhos à ordem burguesa, mas muitas
vezes recalcados, são: autoritarismo, eugenia, racismo, misoginia, machismo, colonialismo
e tutti quanti. O modo como o bloco bolsonarista vem abordando
a pandemia é consequente com suas convicções e consiste em imprecar ao Senhor
pela saúde do povo e antes de tudo salvaguardar o capital. Esta impostação
política pode ser tomada como uma prefiguração possível da tendência
comportamental da classe dominante no caso de que se instale a crise estrutural
e a depressão recorrente.
Arrebatar a sociedade à pré-história
O
curto-circuito econômico gerado pela pandemia parece ter-se antecipado à
manifestação aguda da crise econômica. Então, uma suposição pode ser que,
superada a crise, a economia volte ao status
quo ante. Outra é que o covid-19 tenha antecipado a crise aguda e essa
seguirá em continuidade à pandemia.
A natureza da crise é outra questão.
Essa é, uma crise cíclica do capital como outras tantas anteriores, que
comporta a recuperação econômica, ou, estamos em presença de uma crise
estrutural, que se arrastará tempos afora? No passado, os analistas foram surpreendidos
pela capacidade do sistema para superar seus momentos de estrangulamento. Hoje, no entanto, a situação é diferente. Se é
certa a tendência ao decrescimento da taxa de mais valia, o capital se encontra
em palpos-de-aranha. Seja como for, temos agora um coro de vozes diversas que
apostam em que depois da crise o capitalismo mudará profundamente. Mudará como
e para onde? A maioria acredita que a mudança será benévola. Analistas críticos
do sistema chegam a aventar que haverá uma espécie de deslizamento natural do
capitalismo em direção ao socialismo.
Não compartilhamos essa ideia. Não
há nenhuma razão lógica ou histórica para supormos que a burguesia abdicará do
poder. Trata-se de um grupo social composto por grandes proprietários,
fortemente armado, que controla o Estado e a comunicação social, e que lutará
com unhas e dentes por seus privilégios, pois, como muito bem o exemplifica a
história, em ultima ratio preferirá
arriscar a vida a entregar a bolsa.
A crise estrutural abrirá uma janela
de oportunidade para a revolução social e, apenas a oportunidade, dado que não
há nada automático. Mas, oportunidade para quem? Para o proletariado, uma vez que, a rigor, esta
é a única classe social que pode ser consequente com a transformação radical da
sociedade visando o socialismo.
Ademais da oportunidade, a crise poderá
propiciar à classe ambiente propício para que reveja sua práxis política. É
premente, dentre outras tarefas: deixar de lado a fantasia de que o welfare state possa ser recuperado e se
universalizar; acertar as contas com o trauma ocasionado pela dissolução da
URSS; superar o trade-unionismo generalizado na atividade sindical e conexas, e
transcender a noção de democracia como democracia parlamentarista.
Na Terceira Internacional, à raiz do
fracasso da revolução mundial, Lênin defendeu que era tarefa das organizações
dos trabalhadores ganhar a maioria da classe trabalhadora para a causa
socialista. Gramsci, retomando essa proposição acrescentou que a viabilização
da hegemonia política passa também pela hegemonia cultural, ética, etc. Essas
teses suscitam o debate. O que nos parece inequívoco é que mesmo uma mínima aproximação
a essas meritórias proposições demanda que o movimento operário popular (MOP),
em suas tão necessárias lutas de resistência por melhores condições de trabalho
e vida, bem como pela democracia, vá além do que é funcional ao capitalismo.
Não é possível anteciparmos a
história. No momento, é uma incógnita até a evolução da epidemia. Portanto, não
é possível definir a priori quais serão os temas que poderão galvanizar o trabalho
de organização, politização e educação da classe trabalhadora. Porém, cremos
que a experiência histórica do MOP nos autoriza a indicar como objetos
estratégicos da ação político/ideológica do proletariado duas esferas sociais.
Na instância política há muito que a
Comuna de Paris realizou um questionamento prático da democracia parlamentar mostrando
como se poderia ir além dessa concepção limitativa. A “forma afinal
descoberta”, como denominou Marx a democracia da Comuna, serviu como parâmetro
para posteriores análises. Não obstante, depois da grande guerra a concepção
democrática da Comuna remanesceu no MOP numa sorte de eclipse. Portanto, talvez
seja o momento para que o MOP reveja a questão democrática à luz da Comuna, pois
esta, muito mais avançada do que a democracia consagrada pela revolução
burguesa, projeta-se também como antítese desta.
Na esfera econômica um sujeito
fundamental é o trabalhador coletivo (TC). Esse, cuja atividade cooperativa se
encontra alienada para o capital, foi universalizado por este. Em que pese sua
condição subordinada, o trabalhador coletivo é a base do movimento
urbano-industrial, uma vez que, concretamente, é a partir dele que se erigem os
conselhos de fábrica, os sindicatos ou os soviets,
reais ou potenciais.
Como Marx vaticinou, com o
desenvolvimento da indústria moderna e da tecnologia, o trabalho cada vez mais
consistirá em atividades de educação, criação e controle, como já podemos
visualizar nos dias de hoje. E nesse processo, trabalhador coletivo reafirma
sua importância e condição estratégica, o que põe em destaque seu potencial
como coordenador de si mesmo, ou seja, também como intelectual coletivo. O capital contrapõe-se a isso de várias
maneiras, dentre as quais se destacam a hiperespecialização e a fragmentação
das tarefas crescentemente intelectualizadas.
A luta pelo controle sobre sua
própria atividade conquanto trabalhador coletivo faz parte da experiência
histórica da classe trabalhadora e o exemplo clássico foi a revolução
proletária na Rússia. Mas, também aqui,
à semelhança do que ocorre com a questão democrática, durante os últimos
setenta anos o trade-unionismo tem
prevalecido amplamente no MOP. Mas, se a grande crise efetivamente sobrevier
será o momento para que os trabalhadores ultrapassem as necessárias lutas de
resistência ou por melhorias econômicas que, no entanto, se têm mantido no
quadro da lógica do capital. Nos dias atuais, a burguesia é uma classe parasitária.
E a emergência dos empreendimentos de trabalho associado mundo afora, como o
ilustra, p.e., as fábricas recuperadas na Argentina, mostra que a burguesia,
bem como seus funcionários orgânicos, é perfeitamente dispensável. Portanto, uma vertente fundamental de
trabalho político para o MOP é a de impulsionar no âmago da classe trabalhadora
uma percepção/reflexão quanto a quem são os produtores reais, bem como porque
esses devem assumir o controle de sua própria atividade, tanto nas unidades de
trabalho, quanto na sociedade.
Essa inflexão, se ocorrer, será um
elemento chave do movimento proletário que poderá conduzir a sociedade da
pré-história atual à história.
Referências bibliográficas
DIERCKXSENS,
Win; FORMENTO,Walter; PIQUERAS, Andrés. Crisis Mundial 2020 y transición al
post capitalismo. Asturbulla, 2020. https://www.asturbulla.org/index.php/temas/economia/40680-crisis-mundial-2020-y-transicion-al-postcapitalismo
LEIPOLD,
Bruno. La democracia está en crisis y Karl Marx puede ayudarnos. Sinpermiso, 2020. http://www.sinpermiso.info/textos/la-democracia-esta-en-crisis-y-karl-marx-puede-ayudarnos
ROMANOFF,
Larry. The Short Road: Democracy to
Fascism. Global Research, Canadá, 2019. https://www.globalresearch.ca/short-road-democracy-fascism/5695865
SEQUEIRA,
Fernando. Teletrabalho: da ficção oportunista à
realidade objectiva. Resistir.info, Portugal, 2020. https://www.odiario.info/teletrabalho-da-ficcao-oportunista-a-realidade/.
[1]
- Membro do GEPODE, da Unesp, campus Marília. Graduado em ciências sociais pela
USP. Mestrado e doutorado em sociologia pela PUC-SP. Pós doutorado na
Universidade Complutense de Madrid.
In
Paulo Alves de Lima Filho Henrique Tahan Novaes Rogério Fernandes Macedo Ivan Lucon Jacob (orgs.)
SETAS CONTRA O CAPITAL: sobre pandemônios na pandemia e as revoluções necessárias
Marília-SP: Lutas Anticapital-Aramarani Junho - 2020
In
Paulo Alves de Lima Filho Henrique Tahan Novaes Rogério Fernandes Macedo Ivan Lucon Jacob (orgs.)
SETAS CONTRA O CAPITAL: sobre pandemônios na pandemia e as revoluções necessárias
Marília-SP: Lutas Anticapital-Aramarani Junho - 2020
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