Thierry Meyssan
A França, e vários outros países europeus em menor escala, é atravessada
por um debate sobre « o islamo-gauchismo » ; personalidades de esquerda
que apoiam o islão político apesar do exemplo do Daesh (E.I.).
Contrariamente ao que se poderá crer, não se trata de uma táctica
eleitoral momentânea, mas da consequência de uma estratégia da guerra
fria, reavivada pela Administração Biden.
Nos séculos XVI e XVII, os Europeus distinguiam a «esfera pública»
visível para todos, da «esfera privada» mais íntima. No entanto, no
século XVIII, a Revolução Francesa deu uma definição diferente a estas
duas expressões: a «esfera privada» passou a ser o domínio do trabalho,
da família e da religião, enquanto a «esfera pública» o da política e da
nação. Desde logo, se militantes políticos encontram nas religiões a
força para o seu activismo, parece incongruente que apoiem religiões
particulares.
Ora, esta visão é agora minada pelo apoio dado por algumas
personalidades e grupos políticos a movimentos «islamistas». Por
islamismo, não designo nada que tenha a ver com a religião muçulmana,
mas uma ideologia política que instrumentaliza essa religião. Tendo
Maomé sido simultaneamente um profeta, um líder político e um chefe
militar, a sua herança é fácil de manipular.
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*Rouhollah Khomeiny encontrou Hassan el-Banna em 1938 no Cairo. Os dois
homens concluíram um pacto de não-agressão mútuo e partilharam o
Médio-Oriente.*
O islão político
Na prática, o islão político consiste na mobilização de multidões
invocando a religião muçulmana. Isso pode ser feito com meios muito
diferentes e objectivos opostos, segundo a concepção que se tem desta
religião. O facto de recorrer a argumentos religiosos para fazer
política permite obter um senso de sacrifício sem limites que pode
rapidamente se transformar em fanatismo. A língua árabe, que dá mais
valor às emoções do que à razão, provavelmente torna os Árabes muito
mais receptivos do que outros a este tipo de envolvimento.
No século XX, os Britânicos pediram ao mufti de Al-Azhar para consagrar
uma versão única do /Corão/ a fim de combater a seita do Mahdi no Sudão.
Nessa altura, havia umas quarenta versões diferentes. Eles pediram
igualmente a Hassan al-Banna para criar uma sociedade secreta, a
Confraria dos Irmãos Muçulmanos, decalcada do modelo da Grande Loja
Unida de Inglaterra, para dispor de um meio de pressão sobre o Poder
egípcio. Durante a Guerra Fria, a CIA colocou dois dos seus agentes,
Sayyed Qtob e Saïd Ramadan, nesta sociedade secreta sunita para aí
teorizar a jiade.
Outras escolas contemporâneas do islão político desenvolveram-se
primeiro no seio do Sufismo contra os Impérios Russo e Chinês, depois
com Rouhollah Khomeini no seio do Xiismo contra o Império Britânico. Se
a escola Sufi fez aliança com a Confraria dos Irmãos Muçulmanos em torno
do Presidente Recep Tayyip Erdoğan, a escola Xiita, pelo contrário, fez
um acordo recíproco de não-ingerência com eles. No entanto, todos se
bateram juntos contra os Russos e sob as ordens da OTAN durante a guerra
na Bósnia-Herzegovina. À época, eles julgavam partilhar a mesma
ideologia, mas hoje todos acreditam que isso não era e continua a não
ser o caso.
Os Franceses fazem remontar o apoio de pensadores de esquerda ao
islamismo ao exílio do Aiatola Khomeini na região parisiense (1978-9). À
época, Jean-Paul Sartre e Michel Foucault encontraram-se com ele e
deram-lhe o seu apoio. Eles tinham compreendido perfeitamente a sua luta
contra o imperialismo ocidental, enquanto Zbigniew Brzeziński (o
Conselheiro de Segurança Nacional do Presidente Jimmy Carter) o
considerava, erradamente, como superficial.
Mas aquilo de que tratamos hoje é de uma natureza completamente
diferente: os pensadores de esquerda atribuem aos muçulmanos no seu
conjunto a mesma função de vanguarda popular que ao proletariado do
século XIX. O que é uma estupidez. Com efeito :
- os muçulmanos são oriundos de todas as classes sociais ;
- o islão é absolutamente compatível com o capitalismo mais desenfreado.
Na realidade, eles veêm os muçulmanos de forma diferente, dependendo se
são sunitas ou xiitas. Os primeiros seriam progressistas, enquanto os
segundos seriam reacionários. Eles apoiaram no Egipto o irmão muçulmano
pró-EUA Mohamed Morsi, mas atacam o nacionalista Mahmoud Ahmadinejad no
Irão. Ora, o Presidente Morsi jamais procurou melhorar as condições de
vida dos mais pobres, enquanto o Presidente Ahmadinejad o fez com
sucesso até ao fim dos seus mandatos. Da mesma forma, Mohamed Morsi só
se tornou presidente ameaçando de morte os magistrados do Conselho
Eleitoral e suas famílias [1 <#nb1>], enquanto Mahmoud Ahmadinejad foi
eleito democraticamente. Deve-se constatar que os islâmicos esquerdistas
não se guiam em relação à acção interna das pessoas que apoiam, mas pela
sua política externa. Eles aprovam o islão político que é pró-EUA e
denunciam o islão político anti-imperialista.
O islamo-esquerdismo só existe, à excepção da Tunísia, nos países
ocidentais. O opositor no exílio Moncef Marzouki dá o seu apoio à
Confraria dos Irmãos Muçulmanos e torna-se o primeiro Presidente da
República da Primavera Árabe. Ele servirá de cortina aos Irmãos do
Ennahdha e é afastado do Poder nas eleições presidenciais de 2014.
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*O revolucionário bolchevique Léon Trotski (1879-1940) serviu os
interesses britânicos contra a Rússia. Ele entrou em conflito com
Staline que o expulsou da URSS e o mandou assassinar no México. Alguns
dos seus partidários não hesitaram em prosseguir a sua obra colocando-se
ao serviço dos Estados Unidos.*
A estratégia da NED :
aliança de certos trotskistas com certos islamistas
A apoio de personalidades de esquerda à Confraria dos Irmãos Muçulmanos
e à Ordem dos Naqshbandi foi organizada pela National Endowment for
Democracy (NED) no quadro da Guerra Fria, a partir de 1983. O Presidente
Ronald Reagan acabava de juntar a si um grupo de trotskistas judeus e
nova-iorquinos para lutar contra a URSS. Em virtude do conflito que
opunha o pró-Britânico Trotski [2 <#nb2>] e Staline, estes discípulos
juntaram-se aos serviços secretos dos « Cinco Olhos » (Austrália,
Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia, Reino Unido). Entre outras,
fundaram a NED. No contexto de escândalos envolvendo a CIA, eles
pensaram concretizar certas partes das suas operações por via legal.
Recrutaram personalidades trotskistas de uma parte do mundo para se
juntarem ao seu combate, particularmente nos dois teatros de operação da
época : o Afeganistão e o Líbano.
Para o seu combate anti-soviético no Afeganistão, a NED recruta o «
/french doctor/ » (médico francês) Bernard Kouchner. Este é um antigo
membro da União dos Estudantes Comunistas que deixou essa organização
durante a purga contra os trotskistas. O jovem tratará no Paquistão os
anti-comunistas afegãos e os mujahedins árabes de Osama bin Laden. À
época, estes últimos são aplaudidos no Ocidente como «combatentes da
Liberdade».
Simultaneamente, durante a guerra civil libanesa, a NED sofre para
recrutar. Finalmente, ela escolheu os secessionistas do Partido
Comunista Sírio, Riyad Al-Turk, Georges Sabra e Michel Kilo. Os três
homens assinam um manifesto que equipara os Irmãos Muçulmanos a um novo
proletariado e advoga por uma intervenção militar norte-americana no
Médio-Oriente. Para a Síria, é um apoio claro ao putsch dos Irmãos
Muçulmanos em Hama. O Presidente Hafez al-Assad, manda, pois, detê-los e
prendê-los até que abjurem este texto.
A guerra na Bósnia-Herzegovina é a ocasião para a NED recrutar o
ensaísta Bernard-Henri Lévy. Este tornar-se-á o conselheiro mediático do
Presidente Alija Izetbegović. Na mesma altura, este toma o
neoconservador Richard Perle como conselhe iro político e Osama bin
Laden como conselheiro militar.
No contexto da Guerra Fria, todas as personagens citadas acima
provavelmente acreditaram, genuinamente, que estavam a agir no melhor
sentido. Mas uma vez a URSS dissolvida, alguns deles continuaram o seu
percurso nesta via nauseabunda.
Assim, Riyad Al-Turk, Georges Sabra e Michel Kilo tornaram-se
porta-vozes do Pentágono durante os eventos na Síria. Em nome do seu
passado comunista, convenceram a esquerda europeia que se tratava de uma
guerra civil e não de um ataque por meio de jiadistas internacionais.
Eles conseguiram até fazê-los acreditar que a Frente Al-Nusra (braço da
Alcaida na Síria) era uma organização revolucionária síria.
Ou ainda Bernard-Henri Lévy, o qual, depois de defender Guantanamo, se
tornou o porta-voz dos jiadistas líbios. Ele apresentou a Jamahiriya
Árabe Líbia —um regime inspirado nos socialistas utópicos franceses do
século XIX— como uma ditadura. Ele apoiou o bombardeamento de Trípoli
pela OTAN e a nomeação de um dos chefes históricos da Alcaida,
Abdelhakim Belhaj, como Governador militar de Trípoli. Finalmente, até
ajudou na recepção oficial deste no Ministério dos Negócios Estrangeiros
(Relações Exteriores-br) da França em Paris.
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*O Colectivo contra a islamofobia em França, associação próxima da
Confraria dos Irmãos Muçulmanos, foi dissolvida em 2020 precisamente
antes que o governo francês a interditasse. Líderes de esquerda de
primeiro plano participaram nas suas manifestações.*
A teorização do islamo-gauchismo
Se o islasmo-gauchismo é antes de mais uma prática dos Serviços Secretos
ocidentais, acabou por se tornar uma teoria política, em 1994, por obra
de Chris Harman. Este ideólogo trotskista britânico é um militante do
Socialist Workers Party (Partido Socialista dos Trabalhadores). Em 1994,
ele publicou no /Socialism International/ um artigo intitulado « /The
prophet and the proletariat/ » (O profeta e o proletariado). Aí, ele
tenta demonstrar que os muçulmanos não são nem fascistas, nem
progressistas, mas que formam o novo proletariado.
Os trotskistas de Reagan, como Claude Harman, aderiram todos à teoria de
Ygael Gluckstein (dito «Tony Cliff») da «revolução permanente desviada»,
segundo a qual todos os Estados ditos «comunistas» (China, Coreia do
Norte, Cuba) são na realidade estalinistas. Esta maneira de ver
permite-lhes simultaneamente fazer campanha pela revolução mundial e
atacar os adversários dos Estados Unidos. Eles acabaram expulsos da
Quarta Internacional. Não se trata aqui, portanto, de igualar todos os
trotskistas à sua deriva.
Perante estes elementos, o islamo-esquerdismo não se explica tanto por
ser uma corrida aos votos dos muçulmanos imigrados na Europa mas mais
pela inversão de valores desde a dissolução da União Soviética. O
desaparecimento dos partidos comunistas deixou o campo livre a uma
esquerda atlantista. Esta espontaneamente escolheu a direcção ideológica
dos seus aliados EUA. Ela assumiu-a a ponto de participar nos seus
golpes sujos, nomeadamente à sua instrumentalização do islão político
sunita.
Agora, a lógica dos Serviços Secretos, como a das ideologias, é
subvertida pelo despertar (woke) do puritanismo norte-americano. Estes
últimos encontram nos Irmãos Muçulmanos a mesma busca pela Pureza que os
anima. Vários dos actuais membros da Administração Biden participaram,
em 13 de Junho de 2013, na reunião do Conselho de Segurança Nacional
para a qual um delegado oficial da Confraria, o Xeque Abdullah Bin
Bayyah, fora convidado. Existe agora, portanto, um real perigo de ver o
islamismo-gauchismo instalar-se a longo prazo nos partidos políticos,
tanto mais porque os Ocidentais ainda não assimilaram que todos os
chefes da Alcaida e do Daesh (E.I.) são, ou foram, membros da Confraria
dos Irmãos Muçulmanos.
In
VOLTAIRE.NET
https://www.voltairenet.org/article212391.html
9/3/2021
terça-feira, 9 de março de 2021
O que é « o islamo-gauchismo » ?
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