terça-feira, 23 de março de 2021

Os 150 anos da Comuna de Paris: análise económica

 


*por Michael Roberts *

Decorreu agora o 150º aniversário do início da Comuna de Paris. A Comuna
(Conselho) foi formada como resultado do que deve ser considerado o
primeiro levantamento e revolução liderada pela classe trabalhadora na
história. Esta nova classe foi o produto da revolução industrial no modo
de produção capitalista, do qual Marx e Engels falaram pela primeira vez
com mais destaque no Manifesto do Partido Comunista publicado em Março
de 1848.

Antes da Comuna de Paris, as revoluções na Europa e na América do Norte
tinham como objectivo derrubar monarcas feudais e finalmente colocar a
classe capitalista no poder político. Enquanto o socialismo como ideia e
objectivo já começava a ganhar credibilidade entre a intelectualidade
radical, foram Marx e Engels os que primeiro identificaram a classe
trabalhadora como o agente de mudança revolucionária, ou seja, aqueles
que não possuíam meios de produção excepto a sua própria força de trabalho.

A Comuna de Paris verificou-se como resultado imediato da guerra
franco-prussiana. Essa guerra fora lançada por Luís Bonaparte, sobrinho
de Napoleão, que havia tomado o poder num golpe após a derrota da
revolução de 1848. Ele governou autocraticamente a França nas duas
décadas seguintes. Estas décadas foram de excepcional expansão económica
para o capitalismo na Europa e na América. As recessões económicas foram
poucas e distantes entre si (1859 e 1864) e relativamente moderadas. Na
verdade, a lucratividade atingiu níveis máximos na década de 1850 (alta
de 11%), mas retrocedeu em 4% na década de 1860.

Média decenal da taxa de retorno sobre o capital (%).
Fonte: T Piketty,
www.quandl.com/data/PIKETTY/TS6_2-Capital-labor-split-in-France-1820-2010 <https://www.quandl.com/data/PIKETTY/TS6_2-Capital-labor-split-in-France-1820-2010>


A França transformou-se de uma economia agrícola atrasada numa economia
industrial em crescimento rápido. Bonaparte lançou uma série de obras
públicas e projectos de infraestrutura destinados a modernizar cidades
francesas. Paris emergiu como um centro financeiro internacional em
meados do século XIX, logo após Londres. Tinha um banco nacional forte e
vários bancos privados agressivos que financiavam projectos por toda a
Europa e no Império Francês em expansão. O Banque de France
<https://en.wikipedia.org/wiki/Banque_de_France> , fundado em 1796,
emergiu como um poderoso banco central.

Sob Bonaparte, o governo francês coordenou várias instituições
financeiras para financiar grandes projectos, incluindo o Crédit
Mobilier <https://en.wikipedia.org/wiki/Cr%C3%A9dit_Mobilier> , que se
tornou uma agência de financiamento poderosa e dinâmica para grandes
projectos em França, inclusive uma linha transatlântica de navios a
vapor, iluminação a gás <https://en.wikipedia.org/wiki/Gas_lighting> das
vias públicas, um jornal e o sistema de metro de Paris. A França
aumentou suas linhas ferroviárias em oito vezes e duplicou a sua
produção de minério de ferro. A população cresceu 10% e muito mais nas
cidades, que agora se tornaram centros urbanos da nova classe
trabalhadora industrial. Em 1855 e novamente em 1867, foi encenada uma
exposição mundial em Paris a fim de rivalizar com a anterior Grande
Exposição Britânica de poder industrial em 1851. E Ferdinand de Lesseps
organizou a construção do Canal de Suez.

Mas a política de guerra de Bonaparte e o projecto de redesenhar Paris
usando o arquitecto Haussmann foram caros; a dívida nacional da França
aumentou consideravelmente. E a indústria francesa viu-se sob crescente
competição internacional (isto é, principalmente britânica). Entre 1848
e 1870, o défice do sector público triplicou. O que David Harvey chamou
de "keynesianismo primitivo"
<https://davidharvey.org/media/righttothecity.pdf> começou a perder
força. O governo recorreu à monetarização da dívida, ao estilo MMT, na
esperança de que isso continuasse a estimular o investimento e o
crescimento. Marx chamou a isto "o catolicismo" da base monetária
<https://www.marxists.org/archive/marx/works/1857/grundrisse/ch03.htm> ,
transformando o sistema bancário no "papado da produção" e abraçou o
aquilo que Marx chamou de "protestantismo da fé e do crédito".

Despesa e receita do Estado, 1848-1870.

Quedas financeiras ocorriam à medida que o crescimento dos lucros
começava a cair. Na verdade, pode-se ter uma ideia dos problemas
crescentes para a expansão capitalista francesa com o movimento dos
preços das acções e dos retornos das mesmas. Houve uma queda dos lucros
na recessão de 1859 e em 1864 e 1868 antes da calamidade da guerra
franco-prussiana.

Mudanças no índice das acções e retornos totais.
Fonte: Um desafio para optimistas triunfantes?
Um índice de blue chips para a bolsa de valores de Paris, 1854-2007,
meus cálculos.

À medida que a taxa de lucro caiu durante a década de 1860, a partir de
níveis historicamente elevados, o crescimento anual dos lucros também
diminuiu, com quedas significativas em 1859 e 1864.

Mudanças anuais nos lucros, ganhos por acção, 1855-72 .

A desigualdade de riqueza e de rendimento disparou no momento em que a
classe trabalhadora se expandiu dramaticamente. As tensões sociais
começaram a intensificar-se. Pode-se dizer que foi uma situação
semelhante à de Maio de 1968, após duas décadas de boom económico sob o
governo da presidência gaullista – excepto que em 1870 interveio a
guerra e esta tornou-se o catalisador da ascensão da Comuna.

Pode-se argumentar que Bonaparte, em sua arrogância, precisava de uma
guerra para desviar a luta de classes em casa e precisava restaurar a
hegemonia económica da França na Europa continental. Bonaparte achava
que o exército francês era superior ao da Prússia de Bismarck. Mas ele
subestimou terrivelmente o poder económico e militar alemão liderado
pela Prússia. Os franceses foram rapidamente derrotados e humilhados.
Bonaparte foi capturado, abdicou e fugiu. O governo burguês republicano
tentou lutar, mas acabou negociando um terrível acordo de paz enquanto o
exército prussiano sitiava a população faminta em Paris. Foi então que a
Comuna de Paris – um conselho de delegados operários dos distritos –
surgiu para tomar o poder político em nome da população.

Este texto não pode cobrir todos os eventos e temas nos curtos 72 dias
que a classe trabalhadora de Paris governou por meio de suas próprias
estruturas democráticas, enquanto o governo burguês fugiu para Versalhes
e exortou os prussianos a esmagar a Comuna. A Comuna não sobreviveu por
muito tempo. Permaneceu amplamente isolada na França e acabou sendo
suprimida de forma sangrenta pelas forças do governo de Versalhes.

Os melhores relatos da Comuna de Paris são o do communard Lissagaray, a
História da Comuna de Paris
<https://www.marxists.org/history/france/archive/lissagaray/index.htm> ,
traduzido por Eleanor Marx e publicado em 1876 e, naturalmente, /A
Guerra Civil em França,/
<https://www.marxists.org/archive/marx/works/1871/civil-war-france/> o
próprio livro de Marx escrito logo depois de a Comuna ter sido esmagada.
E o marxista belga Eric Toussaint fez um excelente relato moderno das
maquinações económicas do Banque de France e da Comuna aqui
<http://www.cadtm.org/The-Paris-Commune-of-1871-banks-and-debt> .

Assim, neste breve texto, vou apenas apresentar algumas observações
sobre as políticas económicas da Comuna. O mais importante foi o
fracasso em assumir as alavancas financeiras do capital, em particular,
o Banque de France. Dez anos após o esmagamento da Comuna, Marx
argumentou que a Comuna poderia muito bem ter sobrevivido se o Banque de
France tivesse sido conquistado. "Além de ser simplesmente a insurreição
de uma cidade em circunstâncias excepcionais, a maioria da Comuna não
era de forma alguma socialista e não poderia ser. Com um pouco de bom
senso, porém, ela poderia ter obtido de Versalhes um compromisso
favorável a toda a massa do povo – o único objectivo alcançável na época".

.

Na verdade, o maior medo que o governo de Versalhes tinha em relação à
Comuna era a perda dos fundos do Banque. Lissagaray observa:   "Todas as
insurreições sérias começaram capturando a coragem do inimigo, a sua
caixa registadora. A Comuna foi a única que se recusou. Permaneceu em
êxtase diante do dinheiro da alta burguesia que tinha nas mãos".

E Engels na sua introdução à reedição em 1891 de A Guerra Civil em
França:   "muitas coisas [foram] ignoradas que, de acordo com nossa
concepção de hoje, a Comuna deveria ter feito. O mais difícil de
compreender é certamente o santo respeito com que se parava diante das
portas do Banque de France. Além disso, foi um grave erro político. O
Banco nas mãos da Comuna valia mais de dez mil reféns. Isso significaria
que toda a burguesia francesa pressionaria o governo de Versalhes a
fazer as pazes com a Comuna. "

Banque de France. Por que os líderes da Comuna não assumiram o controle
do Banco? Bem, a maioria dos delegados da Comuna não era socialista, mas
constituída por democratas republicanos. A ala socialista era uma
minoria. E dentro dessa minoria socialista, os marxistas eram uma
minoria ainda menor. A maioria dos socialistas era proudhoniana. Eles
viam o socialismo vindo do controle monetário, ou seja, através do uso
do crédito. O homem encarregado das finanças da Comuna, Charles Beslay,
amigo de Proudhon, tinha uma fé cega nos bancos e nas finanças em geral.
Ele era membro da Primeira Internacional desde 1866 e tinha uma grande
influência na Comuna. Beslay tinha um passado como capitalista, pois
fora dono de uma oficina que empregava 200 trabalhadores.

Charles Beslay. O vice-governador do banco, o monárquico De Ploeuc,
comentou: "O Sr. Beslay é um daqueles homens cuja imaginação é
desequilibrada e que se deleita com a utopia; ele sonha em conciliar
todos os antagonismos que existem na sociedade, os patrões e os
trabalhadores, os senhores e os servos". Beslay confirmou seu
proudhonismo em acção: "Um banco deve ser visto sob um duplo aspecto; se
ele se apresenta a nós sob seu lado material por seu dinheiro e suas
notas, ele também se impõe por um lado moral que é a confiança. Tire a
confiança e a nota é apenas um título /(assignat) / ". Beslay atacou os
marxistas:   "O sistema da Comuna e o meu se traduzem nesta palavra
sagrada: 'respeito pela propriedade, até sua transformação'. O sistema
do cidadão Lissagaray resulta nesta palavra repulsiva: expoliação".

Além disso, os mecanismos financeiros são demasiado complicados para
serem entendidos pelo cidadão comum, ou mesmo por políticos, e devem,
portanto, ser reservados a especialistas ou mesmo peritos. A atitude do
principal líder da Comuna, Rigault, era que "questões de negócios,
crédito, finanças, bancos […] precisavam da ajuda de homens especiais,
que só podiam ser encontrados em número muito pequeno na municipalidade.
[…] Além disso, as questões financeiras […] não são […] vistas como os
problemas essenciais do momento. No futuro imediato, tudo o que importa
é que o dinheiro entre". Em vez de demitir o assustado Rouland,
governador do banco, e assumir o controle dos enormes fundos ali
mantidos, Beslay permitiu que Rouland ficasse no cargo e apenas pediu
fundos suficientes para pagar aos Guardas Nacionais que defendiam Paris.
Rouland gentilmente permitiu que Beslay ingressasse no conselho do banco
como "delegado da Comuna", onde Beslay agiu para garantir sua
independência do controle e das demandas da Comuna.

Rouland, governador do Banque de France. Em vez de querer assumir o
controle, Beslay fez tudo para manter a integridade do Banque de France
e garantir sua independência. O resultado foi que durante os setenta e
dois dias da sua existência, a Comuna recebeu apenas 16,7 milhões de
francos para as suas necessidades: os 9,4 milhões de bens que a Comuna
já tinha por conta e 7,3 milhões emprestados pelo Banco. Ao mesmo tempo,
o Banque enviou ao governo de Versalhes 315 milhões de francos a partir
da sua rede de 74 agências!

O dinheiro conseguido pela Comuna foi geralmente bem utilizado. Cerca de
80% foram para a defesa de Paris, mas também houve distribuição de
rendimento às partes mais pobres da cidade. A Comuna introduziu um
sistema tributário progressivo, reduzindo o imposto municipal para os
mais pobres em 50% e introduzindo impostos mais altos sobre as empresas.
Os proprietários foram forçados a reembolsar os aluguéres dos últimos
nove meses e os futuros foram suspensos. Houve uma moratória para todas
as dívidas, que agora poderiam ser pagas em três anos sem juros.

Mas a falha na tomada do controle do Banco foi o calcanhar de Aquiles do
progresso da Comuna. E o conselho do Banco sabia disso. Temiam que
houvesse uma "ocupação do Banco por parte do Comité Central, que ali
poderia instalar um Governo de sua escolha, fazer com que as notas
fossem produzidas sem medida ou limite e, assim, ocasionar a ruína do
estabelecimento e do país". E outro membro do conselho industrial
afirmou que "o Conselho não pode […] permitir que o Banco a ser
saqueado. O mal seria irremediável e a destruição dos valores da
carteira e da guarda dos depósitos constituiria uma calamidade terrível,
porque é uma grande parte da fortuna pública".

Se o Banco tivesse sido tomado, Versalhes teria sido destituída de
fundos para derrotar a Comuna, uma vez que este detinha uma carteira com
montantes que chegavam a 899 milhões de francos, além de 120 milhões de
francos em títulos depositados como garantia de adiantamentos e 900
milhões de francos em títulos em depósito. Ao invés disso, Beslay seguiu
as instruções do governador do Banco e permitiu que o mesmo enviasse
dinheiro para Versalhes, enquanto o vice-governador dava a ordem de
remover todos os títulos para as caves e a seguir entaipar a escada de
acesso.

Dois anos após o esmagamento da Comuna, Beslay resumiu sua acção numa
carta ao diário de direita /Le Figaro, / publicada em 13 de Março de
1873:   "Fui para o Banco com a intenção de protegê-lo de qualquer
violência do partido extremado da Comuna e estou convencido de que
mantive o establishment no meu país, o qual era o nosso último recurso
financeiro". A Comuna acabou por ser esmagada em Maio de 1871, com cerca
de 20.000 comunards mortos, 38.000 presos e mais de 7.000 deportados.
Beslay foi libertado e mudou-se para a Suíça.

Cerca de 45 anos depois, após outra revolução desencadeada pela guerra e
uma derrota para a classe dominante, Lenine relembrou esta lição da
derrota da Comuna de Paris: "Os bancos, como sabemos, são centros da
vida económica moderna, os principais centros nervosos da todo o sistema
económico capitalista. Falar em "regular a vida económica" e ainda assim
fugir à questão da nacionalização dos bancos significa demonstrar a mais
profunda ignorância ou enganar "as pessoas comuns" com palavras
floreadas e promessas grandiloquentes com a intenção deliberada de não
cumprir tais promessas".

*O original encontra-se em
thenextrecession.wordpress.com/2021/03/18/paris-commune-150-the-economics/
<https://thenextrecession.wordpress.com/2021/03/18/paris-commune-150-the-economics/>
*
In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/crise/mroberts_18mar21.html
12/3/2021

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