segunda-feira, 6 de novembro de 2023

A esquerda ocidental e a contradição EUA-China

 


    Prabhat Patnaik [*] <#asterisco>



Segmentos significativos da esquerda ocidental não-comunista vêem a
contradição em desenvolvimento entre os Estados Unidos e a China em
termos de uma rivalidade inter-imperialista. Tal caraterização cumpre
três funções teóricas distintas do ponto de vista deles:   primeiro,
fornece uma explicação para a crescente contradição entre os EUA e a
China;   segundo, fá-lo utilizando um conceito leninista e dentro de um
paradigma leninista; e terceiro, critica a China como uma potência
imperialista emergente e, portanto, por inferência, uma economia
capitalista, o que está em conformidade com uma crítica
ultra-esquerdista da China.

Tal caraterização ironicamente torna esses segmentos da esquerda
implícita ou explicitamente cúmplices das maquinações do imperialismo
norte-americano contra a China. Na melhor das hipóteses, leva a uma
posição que sustenta que ambos são países imperialistas, de modo que não
faria sentido apoiar um contra o outro; na pior, leva a apoiar os EUA
contra a China como o "mal menor" no conflito entre essas duas potências
imperialistas. Em qualquer dos casos, leva à obliteração de uma posição
oposicionista em relação às posturas agressivas do imperialismo dos EUA
em relação à China; e uma vez que os dois países estão em desacordo na
maioria das questões contemporâneas, leva a um silenciamento geral da
oposição ao imperialismo dos EUA.

Há já algum tempo que sectores significativos da esquerda ocidental,
mesmo aqueles que professam oposição ao imperialismo ocidental, têm
apoiado as acções deste imperialismo em situações específicas. Isso foi
evidente no seu apoio ao bombardeamento da Sérvia quando esse país era
governado por Slobodan Milosevich; é evidente atualmente no apoio à NATO
na guerra em curso na Ucrânia; e é também evidente na sua chocante falta
de qualquer oposição forte ao genocídio que está a ser perpetrado por
Israel contra o povo palestino em Gaza com o apoio ativo do imperialismo
ocidental. O silêncio ou o apoio à posição agressiva do imperialismo em
relação à China por parte de certos sectores da esquerda ocidental não
é, sem dúvida, necessariamente idêntico a estas posições, mas está em
conformidade com elas.

Uma tal posição, que não se opõe frontalmente ao imperialismo ocidental,
está, ironicamente, em total desacordo com os interesses e as atitudes
da classe trabalhadora nos países metropolitanos. A classe trabalhadora
na Europa, por exemplo, opõe-se esmagadoramente à guerra por procuração
da NATO na Ucrânia, como é evidente em muitos casos de recusa dos
trabalhadores em transportar carregamentos de armas europeias destinadas
à Ucrânia. Isto não é surpreendente, pois a guerra também teve um
impacto direto na vida dos trabalhadores ao agravar a inflação. Mas a
ausência de qualquer oposição frontal da esquerda à guerra está a fazer
com que muitos trabalhadores se voltem para os partidos de direita pois,
mesmo que estes se alinhem com as posições imperialistas quando chegam
ao poder, como Meloni fez na Itália, são pelo menos críticos dessas
posições quando estão na oposição. A passividade da esquerda ocidental
face ao imperialismo do ocidente está assim a provocar uma deslocação de
todo o centro de gravidade político para a direita em grande parte da
metrópole. Encarar a contradição entre os EUA e a China como uma
rivalidade inter-imperialista faz parte desta narrativa.

Quanto ao facto de a China ser uma economia capitalista e, por
conseguinte, estar envolvida em actividades imperialistas em todo o
mundo em rivalidade com os EUA, os que defendem este ponto de vista
estão, na melhor das hipóteses, a assumir uma posição moralista e a
confundir "capitalista" com "mau" e "socialista" com "bom". A sua
posição equivale, de facto, a dizer:   Eu tenho a minha noção de como
uma sociedade socialista se deve comportar (que é uma noção idealizada)
e se o comportamento da China em alguns aspectos difere da minha noção,
então, /ipso facto,/ a China não pode ser socialista e, portanto, deve
ser capitalista. No entanto, os termos capitalista e socialista têm
significados muito específicos, que implicam a sua associação a tipos
muito específicos de dinâmicas, cada tipo enraizado em certas relações
básicas de propriedade. É verdade que a China tem um sector capitalista
significativo, nomeadamente um sector caracterizado por relações de
propriedade capitalistas, mas a maior parte da economia chinesa continua
a ser propriedade do Estado e a caraterizar-se por uma direção
centralizada que a impede de ter a auto-direção (ou "espontaneidade")
que caracteriza o capitalismo. Podemos criticar muitos aspectos da
economia e da sociedade chinesas, mas chamar-lhe "capitalista" e, por
conseguinte, envolvida em actividades imperialistas ao nível das
economias metropolitanas ocidentais, é uma farsa. Não só é
analiticamente incorreto como conduz a uma praxis que é palpavelmente
contrária aos interesses tanto das classes trabalhadoras das metrópoles
como dos trabalhadores do Sul global.

Mas a questão que se coloca de imediato é a seguinte:   se a contradição
EUA-China não é uma manifestação da rivalidade inter-imperialista, então
como podemos explicar a sua proeminência no período mais recente? Para o
compreender, temos de recuar até ao período pós-Segunda Guerra Mundial.
O capitalismo emergiu da guerra muito enfraquecido e enfrentando uma
crise existencial:   a classe trabalhadora nas metrópoles não estava
disposta a regressar ao capitalismo do pré-guerra, que tinha implicado
desemprego e miséria em massa; o socialismo havia feito grandes
progressos em todo o mundo; e as lutas de libertação no Sul global
contra a opressão colonial e semi-colonial haviam atingido um verdadeiro
crescendo. Por conseguinte, para a sua própria sobrevivência, o
capitalismo teve de fazer uma série de concessões:   a introdução do
sufrágio universal dos adultos, a adoção de medidas do
Estado-providência, a instituição da intervenção do Estado na gestão da
procura e, acima de tudo, a aceitação da descolonização política formal.

No entanto, a descolonização política não significou a descolonização
económica, ou seja, a transferência do controlo dos recursos do terceiro
mundo, até então exercido pelo capital metropolitano, para os países
recém-independentes; na verdade, contra essas transferências o
imperialismo travou uma luta amarga e prolongada, marcada pelo derrube
de governos liderados por Arbenz, Mossadegh, Allende, Cheddi Jagan,
Lumumba e muitos outros. Mesmo assim, o capital metropolitano não
conseguiu impedir que os recursos do Terceiro Mundo escapassem, em
muitos casos, ao seu controlo, para os regimes dirigistas que surgiram
nesses países após a descolonização.

A maré virou a favor do imperialismo com o aparecimento de uma fase
superior de centralização do capital que deu origem ao capital
globalizado, incluindo sobretudo as finanças globalizadas, e com o
colapso da União Soviética que, por sua vez, não foi totalmente alheio à
globalização das finanças. O imperialismo enredou os países na teia da
globalização e, por conseguinte, no vórtice dos fluxos financeiros
globais, forçando-os, sob a ameaça de saídas financeiras, a seguir
políticas neoliberais que significaram o fim dos regimes dirigistas e a
reaquisição do controlo, pelo capital metropolitano, de grande parte dos
recursos do Terceiro Mundo, incluindo a utilização da terra no Terceiro
Mundo.

É neste contexto de reafirmação da hegemonia imperialista que se pode
compreender o agravamento da contradição EUA-China e muitos outros
desenvolvimentos contemporâneos, como a guerra na Ucrânia. Há duas
características desta reafirmação que precisam de ser notadas:   a
primeira é que o acesso ao mercado metropolitano para bens de países
como a China, juntamente com a vontade do capital metropolitano de
instalar fábricas nesses países para tirar partido dos seus salários
comparativamente mais baixos para satisfazer a procura global, acelerou
a taxa de crescimento nestas economias (e apenas nelas) do Sul global;
fê-lo na China a um ponto em que a principal potência metropolitana, os
EUA, começou a ver a China como uma ameaça. A segunda caraterística é a
crise do capitalismo neoliberal que emergiu com virulência após o
colapso da "bolha" imobiliária nos EUA.

Por ambas as razões, os Estados Unidos gostariam agora de proteger a sua
economia contra as importações da China e de outros países do Sul global
em situação semelhante. Embora essas importações possam estar a ocorrer,
pelo menos em parte, sob a égide do capital americano, os EUA não podem
correr o risco de se "desindustrializarem". A vontade dos EUA de
"reduzir a China" tão pouco tempo depois de a terem saudado pelas suas
"reformas económicas" enraíza-se assim nas contradições do capitalismo
neoliberal e, portanto, na própria lógica inerente à reafirmação da
hegemonia imperialista. Não é a rivalidade inter-imperialista, mas a
resistência da China, e de outros países que lhe seguem o exemplo, à
reafirmação da hegemonia do imperialismo ocidental que explica o
agravamento das contradições entre os EUA e a China.

À medida que a crise capitalista se acentua, à medida que aumenta a
opressão dos países do terceiro mundo devido à sua incapacidade de pagar
o serviço da sua dívida externa através da imposição de "austeridade"
por agências imperialistas como o FMI, e que, por sua vez, suscita uma
maior resistência por parte desses países e uma maior ajuda da China, as
contradições EUA-China tornar-se-ão mais agudas e os requisitórios
contra a China no Ocidente tornar-se-ão mais estridentes.


        05/Novembro/2023
Em
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/patnaik/patnaik_05nov23.html
5/11/2023

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