terça-feira, 7 de novembro de 2023

GLO, péssima ideia

 




   

Manuel Domingos Neto

Historiador, professor, pesquisador na área das Forças Armadas. Foi
deputado federal pelo Piauí

 

"Operações de GLO são de grande utilidade simbólica e política",
escrevem Manuel Domingos Neto e Luiz Eduardo Soares edit



*Por Manuel Domingos Neto e Luiz Eduardo Soares*

Mais uma vez, o Estado brasileiro faz o militar agir como policial.
Alimenta a permanente crise de identidade das Forças Armadas e das
corporações policiais.

Agora, o Exército não está nos espaços reservados aos sobreviventes da
escravidão, da matança dos povos originários e da “vadiagem”. Mas a
Marinha e a Aeronáutica atuam em portos e aeroportos, desperdiçando
recursos públicos em atividades distantes de sua destinação precípua.

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Em um mundo assombrado pela possibilidade de guerra generalizada, os
governantes parecem despreocupados com a proteção do Brasil ante
eventuais ameaças de forças estrangeiras hostis.

Essas duas obrigações do Estado, Defesa e Segurança Pública, são
rigorosamente distintas: exigem equipamentos, organização, preparo e
culturas diferentes. Enfrentar agressor estrangeiro nada tem a ver com
tarefas envolvidas no controle das violações às leis.


Confundindo funções diferentes, o governo fragiliza a Defesa do Brasil e
desprotege a cidadania. Alimenta a dependência externa e faz do cidadão
que transgrida a lei um inimigo a ser abatido. Reafirma o conceito de
“inimigo interno” propalado pelo Pentágono e assimilado pelas elites
dirigentes brasileiras. Com “inimigo” não se conversa, se anula de
qualquer forma.

Já o cidadão transgressor continua a ser cidadão e precisa ser levado ao
tribunal. A ideia de que deva ser abatido é traduzida pela consigna
“bandido bom é bandido morto”. A permanência dessa concepção (presente
no recurso às Forças Armadas para lidar com segurança pública) mostra
que a direita raivosa foi derrotada eleitoralmente, não politicamente.
Sobrevive entranhada na sociedade, na representação política e,
sobretudo, nas engrenagens do Estado.

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Operações de GLO são de grande utilidade simbólica e política. São peças
teatrais dispendiosas que servem para fingir que os problemas de ordem e
segurança pública estão sendo encarados. Passam a falsa noção de que o
governo reprime a criminalidade. Permitem ao militar “exibir serviço”,
quando, na realidade, diante do anúncio de conflagração mundial,
descuida da proteção do Brasil. Camuflam o fato de as Forças Armadas
estarem despreparadas para negar a terra, o mar, o ar e os espaços
cibernético e sideral ao estrangeiro ganancioso. Iludem a sociedade,
disseminando a ideia de que o militar é o derradeiro recurso diante de
problema doméstico crônico. Dissimulam o fato de as corporações não
encerrarem as atividades de seus dispendiosos escritórios em Washington.
Reafirmam a crença de que o militar é salvador da pátria e credenciado
condutor da sociedade.

O Constituinte escreveu os artigos 142 e 144 da Carta com o sabre na
garganta. Obedeceu a corporações estruturadas para combater “inimigos
internos”. Governos eleitos democraticamente, mostrando subserviência
aos comandantes, endossam essas aberrações constitucionais.

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Ao autorizar operações de garantia da lei e da ordem, executivos
públicos, em um só lance, mostram descaso diante da necessidade de
garantir voz altiva no cenário internacional e, internamente, desleixo
com a cidadania. Dobram-se às corporações armadas para perpetuar a
subordinação ao estrangeiro poderoso e às estruturas sociais que
contrariam aspirações democráticas e de soberania.

A bandidagem ganha com a GLO, na medida em que, mais uma vez, as
dinâmicas perversas que a fortalecem são mantidas. As facções criminosas
se alimentam do encarceramento em massa de jovens varejistas do comércio
de drogas, absurdo endossado pelo MP e abençoado pela Justiça.

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Dos 832 mil presos brasileiros, os acusados ou condenados por tráfico já
são mais de 30% (62% entre as mulheres). A maioria tem sido presa em
flagrante, porque a corporação que mais prende (a PM) está
constitucionalmente proibida de investigar. Resta-lhe responder à
pressão da sociedade encarcerando a arraia-miúda, que atua
ostensivamente, não interage com os grandes protagonistas das redes
criminosas nem se beneficia dos negócios bilionários.

Uma vez no cárcere, ao jovem pobre, em geral negro, morador de
territórios vulneráveis, resta comprar sua sobrevivência de quem a pode
garantir: a facção que manda no presídio, posto que o Estado não cumpre
a Lei de Execuções Penais, não exerce autoridade nem afirma a legalidade
no interior das prisões.

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O preço da sobrevivência do preso será o envolvimento futuro com a
facção. Em outras palavras: encarcerando em massa e abandonando o
sistema penitenciário às facções, o Estado contrata violência futura,
reproduzindo geometricamente a criminalidade organizada e destruindo a
vida de gerações e suas famílias. Além disso, aprofunda o racismo
estrutural e as iniquidades sociais. Não há exagero retórico quando se
diz que a guerra às drogas é a guerra aos pobres, uma guerra racista e
destinada ao fracasso.

Há um ponto decisivo, que nos remete aos artigos 142 e 144 da
Constituição e ao fato de que, na prática, por imposição dos militares,
não houve transição democrática na Defesa e na Segurança Pública:
qualquer avanço consistente e sustentável exigirá o enfrentamento do
crime no interior das polícias, o qual será impossível enquanto essas
instituições permanecerem refratárias ao comando da autoridade política
civil. Sem a afirmação dessa autoridade sobre as instituições que
mobilizam a força do Estado, a democracia, a vontade popular e a
soberania nacional permanecerão chantageadas.

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Ao postergar reformas na Defesa Nacional e na Segurança Pública, os
governos federal e estaduais prosseguem em marcha batida para o
desastre, alimentando as fogueiras do medo, do ódio e do ressentimento,
que preparam os espíritos para o fascismo.

Os governantes estão perdidos, temerosos de uma opinião pública
envenenada pela confusão entre justiça e vingança, ludibriada pela ideia
de que a única solução é fazer mais do mesmo, com mais intensidade (mais
prisões, mais proibicionismo, mais violência policial, penas mais
longas, cárceres mais cruéis).

É preciso coragem para trocar os jogos de cena pelo diálogo franco com a
sociedade. Até quando será negada a necessidade de uma reforma militar e
de uma profunda revisão do sistema de segurança pública?

Quando Lula começará a “cuidar do povo”, como prometeu? O povo não
precisa apenas de comida, diversão e arte. Sem segurança pública,
persistirá no inferno, que é como vive quem mora nas periferias das
cidades brasileiras. Sem Defesa Nacional, persistirá submetido à vontade
emanada do estrangeiro poderoso.
Em
BRASIL247
https://www.brasil247.com/blog/glo-pessima-ideia
7/11/2023

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