terça-feira, 17 de setembro de 2019

Para pensar sobre o futuro, depois do senhor Guedes e seu capitão, por


  José Luís Fiori

Hoje, depois do golpe de Estado de 2015/16, e depois de três anos
seguidos da mesma política econômica neoliberal e ortodoxa, o Brasil
está ficando cada mais parecido com a Rússia dos anos 90.



/Existe uma pergunta parada no ar: o que passará no país quando a
população perceber que a economia brasileira colapsou e que o programa
econômico deste governo não tem a menor possibilidade de recolocar o
país na rota do crescimento?/

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No início dos anos 90, na véspera de sua dissolução, a União Soviética
tinha 293 milhões de habitantes, e possuía um território de 22.400.000
km, cerca de um sexto das terras emersas de todo o planeta. Seu PIB já
tinha ultrapassado os doistrilhões de dólares, e a URSS era o segundo
país mais rico do mundo, em poder nominal de compra. Além disso, era a
segunda maior potência militar do sistema internacional, e uma potência
energética, o maior produtor de petróleo bruto do mundo. Possuía
tecnologia e indústria militar e espacial de ponta, e tinha alguns dos
cientistas mais bem treinados em diversas áreas, como a física de altas
energias, medicina, matemática, química e astronomia. E, finalmente, a
URSS era a potência que dividia o poder atômico global com os Estados
Unidos. Mesmo assim, foi derrotada na Guerra Fria, sendo dissolvida no
dia 26 de dezembro de 1991, e depois disto, durante uma década, foi
literalmente destruída.

No entanto, ainda antes da dissolução soviética, Boris Yeltsin – que
viria a ser o primeiro presidente da nova Federação Russa – já havia
convocado um grupo de economistas e financistas, nacionais e
internacionais, liderados pelo jovem ex-comunista Yegor Gaidar, para
formular um programa de reformas e políticas radicais, com o objetivo de
instalar na Rússia uma economia liberal de mercado. Depois disso, a
dissolução da URSS já pode ser considerada o primeiro passo do grande
programa ultraliberal de destruição do Estado soviético e de sua
economia de planejamento. Em 1993, Boris Yeltsin ordenou a invasão e a
explosão da Casa Branca do parlamento russo, que ainda se opunha às
reformas ultraliberais, levando à morte de 187 pessoas, à prisão dos
líderes da oposição e à imposição de uma nova Constituição que
facilitasse a aprovação das políticas propostas pelo superministro Yegor
Gaidar.

Mesmo assim, e apesar das resistências, já em 1992, Yeltsin ordenou a
liberalização do comércio exterior, dos preços e da moeda. Deu início,
ao mesmo tempo, a uma política de “estabilização macroeconômica”
caracterizada por uma rígida austeridade fiscal. Por outro lado, o
superministro Gaidar – que era considerado um “craque” por seus pares do
mundo das finanças – aumentou as taxas de juros, restringiu o crédito,
aumentou os impostos e cancelou todo tipo de subsídio do governo à
indústria e à construção; fez, ainda, cortes duríssimos no sistema de
previdência e de saúde do país.

É fundamental destacar que, como condição prévia, o novo governo russo
se submeteu às determinações dos Estados Unidos e do G7, abandonou
qualquer pretensão a “grande potência” e permitiu a desmontagem e
desorganização de suas Forças Armadas, junto com o sucateamento de seu
arsenal atômico.

E foi assim que o “choque ultraliberal” da equipe econômica de Yeltsin
conseguiu avançar de forma rápida e violenta: basta dizer que em apenas
três anos, Gaidar vendeu quase 70% de todas as empresas estatais russas,
atingindo em cheio o setor do petróleo que havia sido uma peça central
da economia socialista russa, e que foi desmembrado, privatizado e
desnacionalizado. Outrossim, as consequências do “choque” foram mais
rápidas e violentas do que o próprio choque, e acabaram levando Yegor
Gaidar de roldão, já em 1994. A inflação disparou e as falências se
multiplicaram através de toda a Rússia, levando a economia do país a uma
profunda depressão. Em apenas oito anos, o investimento total da
economia russa caiu 81%, a produção agrícola despencou 45% e o PIB russo
caiu mais de 50% em relação ao seu nível de 1990, e vários setores da
economia russa foram varridos do mapa. Por sua vez, a quebra
generalizada da indústria provocou um grande aumento do desemprego, e
uma queda de 58%, em média, no nível dos salários. As reformas e o corte
dos “gastos sociais” devastaram o nível de vida da maior parte da
população; a população pobre do país cresceu de 2% para 39%, e o
coeficiente de Gini saltou de 0,2333 em 1990, para 0,401 em 1999. Uma
destruição e uma queda continuada do PIB que não impediram, entretanto,
as altas taxas de lucro e o enriquecimento de alguns grupos privados,
formados por antigos burocratas soviéticos, que se aliaram com grandes
bancos internacionais e participaram do big business das privatizações –
em particular, da indústria do petróleo e do gás. São os assim chamados
“oligarcas russos”, multimilionários que dominaram o governo de Yeltsin
e criaram junto com ele e seus economistas ultraliberais uma verdadeira
“cleptocracia”, que cresceu e enriqueceu a despeito da destruição do
resto da economia e da sociedade russas.

Leia também:  Ocupação Vladimir Herzog: Memória Viva, por Bruno Fedri
 <https://jornalggn.com.br/noticia/ocupacao-vladimir-herzog-memoria-viva-por-bruno-fedri/>

Na verdade, em 1991, a União Soviética foi derrotada, mas seu exército
não foi destruído numa batalha convencional. Assim mesmo, durante toda a
década de 90, os EUA, a União Europeia e a OTAN promoveram ativamente o
desmembramento do território do antigo Estado Soviético, que perdeu
cinco milhões de quilômetros quadrados e cerca de 140 milhões de
habitantes. Tudo feito com a aquiescência subalterna do governo de Boris
Yeltsin e de seus economistas ultraliberais, em nome de um futuro
renascimento da Rússia, que deveria ser parida pela mão invisível dos
mercados. Mas como vimos, este sonho econômico acabou se transformando
num grande fracasso, com um custo social e econômico imenso para a
população russa. O primeiro-ministro Ygor Gaidar foi desembarcado do
governo em 1994, ainda no primeiro mandato de Yeltsin, e o próprio Boris
Yeltsin teve um final melancólico, humilhado internacionalmente nas
Guerras da Chechênia e da Iugoslávia, renunciando à presidência da
Rússia no dia 31 de dezembro de 1999.

A história posterior da Rússia é mais conhecida e chega até nossos dias,
mas talvez deva ser relembrada, sobretudo para os que apostam, no
Brasil, na radicalização das privatizações e na desmontagem do Estado
brasileiro e de seus compromissos com a soberania nacional e com a
proteção social da população. Porque foi o fracasso do “choque liberal”
russo que contribuiu decisivamente para a vitória eleitoral de Vladimir
Putin, no ano 2000, e para a decisão de seu primeiro governo, entre 2000
e 2004, de resgatar o velho nacionalismo e retomar o Estado como líder
da reconstrução econômica da Rússia, no século XXI.

Leia também:  Economia de Bolhas à Americana: Aqui-e-Agora?!
Por Fernando Nogueira da Costa
 <https://jornalggn.com.br/gestao/gestao-publica-gestao/economia-de-bolhas-a-americana-aqui-e-agora-por-fernando-nogueira-da-costa/>

Tanto Putin quanto seu sucessor, Dmitri Medvedev, e de novo Putin,
mantiveram a opção capitalista dos anos 90, mas recentralizaram o poder
do Estado e reorganizaram sua economia, a partir de suas grandes
empresas da indústria do petróleo e do gás. Mas isto só foi possível
porque ao mesmo tempo retomaram o projeto de potência que havia sido
abandonado nos anos 90, com a reorganização de seu complexo
militar-industrial e a reatualização de seu arsenal atômico. Depois
disso, em 2008, na Guerra da Geórgia, a Rússia deu uma primeira
demonstração de que não aceitaria mais a expansão indiscriminada da
OTAN. Mais à frente, o governo russo incorporou o território da Crimeia,
em resposta à intervenção euro-americana na Ucrânia em 2014, para
finalmente, em 2015, fazer sua primeira intervenção militar vitoriosa
fora de suas fronteiras, na guerra da Síria. Ou seja, depois do seu
colapso econômico e internacional dos anos 90, a Rússia conseguiu
retomar seu lugar entre as grandes potências mundiais em apenas 15 anos,
dando um verdadeiro salto tecnológico nos campos militar e
eletrônico-informacional. E hoje, as sanções econômicas impostas à
Rússia a partir de 2014 vêm produzindo efeitos negativos e problemas
inevitáveis para a economia russa, mas tudo indica que já não
conseguirão alterar o rumo estratégico que aquele país traçou para si
mesmo, voltado para a reconquista de sua soberania econômica e militar
destruída na década de 90.

Hoje, depois do golpe de Estado de 2015/16, e depois de três anos
seguidos da mesma política econômica neoliberal e ortodoxa, o Brasil
está ficando cada mais parecido com a Rússia dos anos 90. Quase todos os
seus indicadores econômicos e sociais são declinantes ou catastróficos,
em particular no que diz respeito à queda do consumo e dos
investimentos, e mais ainda, no caso do aumento do desemprego, da
miséria e da desigualdade social. E quase todas as previsões sérias do
futuro são muito ruins, a despeito da imprensa conservadora que procura
transformar em gemada qualquer filigrana de ovo que encontra à sua
frente, tentando transmitir um falso otimismo para os investidores
estrangeiros. Frente a isto, a equipe econômica do senhor Guedes
resolveu transformar a Reforma da Previdência na tábua de salvação da
economia brasileira, para logo depois inventar um novo Santo Graal, e
agora anuncia em todo lugar e a toda hora, uma privatização radical de
todo o estado brasileiro, incluindo toda a indústria do petróleo e a
própria Petrobrás. Como se fosse um palhaço de circo mambembe do
interior, tentando manter a atenção da plateia entediada com o anúncio
da entrada em cena do leão. Mas tudo indica que sem sucesso, se tomarmos
em conta a maior fuga capitais da Bolsa de Valores, em 23 anos, só neste
mês de agosto recém findo. E é aqui exatamente que a história da Rússia
pode nos ajudar a entender o que está passando, e prever o que deverá
passar daqui para frente, tendo em conta as inúmeras semelhanças que
existem entre esses dois países.

Leia também:  Internações, demissões e tensão constante marcam governo
Bolsonaro, por Sidney Rezende
 <https://jornalggn.com.br/noticia/internacoes-demissoes-e-tensao-constante-marcam-governo-bolsonaro-por-sidney-rezende/>

Agora bem, o que nos ensina a experiência russa dos anos 90, e depois?

 1. Primeiro, e muito importante: que a destruição da economia, do
    Estado e da sociedade russa, na década de 90, não foi incompatível
    com o enriquecimento privado, sobretudo dos grupos de financistas e
    ex-burocratas soviéticos que obtiveram lucros extraordinários com o
    negócio das privatizações – e que depois assumiram o controle
    monopólico das antigas indústrias estatais, em particular no campo
    do petróleo e do gás. Ou seja, é perfeitamente possível conciliar
    altas taxas de lucro com estagnação ou recessão econômica, e até com
    a queda do produto nacional.¹
 2. Segundo: que os grandes lucros privados e os ganhos estatais com as
    privatizações não levam necessariamente ao aumento dos investimentos
    num ambiente macroeconômico caracterizado pela austeridade fiscal,
    pela restrição ao crédito e pela queda simultânea do consumo. Pelo
    contrário: o que se viu na Rússia foi uma gigantesca queda dos
    investimentos e do PIB russo, da ordem de quase 50%.
 3. Terceiro, e o mais importante: que depois de dez anos de destruição
    liberal, ficou muito claro na experiência russa que em países
    extensos, com grandes populações e economias mais complexas, os
    “choques ultraliberais” têm um efeito muito mais violento e
    desastroso do que nos pequenos países com economias exportadoras. E
    esta é uma situação política insustentável no médio prazo, mesmo com
    ditaduras muito violentas, como aconteceu com o fracasso econômico
    da ditadura chilena do General Augusto Pinochet.

Ao mesmo tempo, a reversão posterior da situação russa também ensina: 1)
quanto mais longo e mais radical for o “choque utraliberal”, mais
violenta e estatista tende a ser sua reversão posterior; e ii) em países
com grandes reservas energéticas, é possível e necessário recomeçar a
reconstrução da economia e do país, depois da passagem do tufão, a
partir do setor energético.

A História não se repete, nem se pode transformar a história de outros
países em receita universal, mas pelo menos a experiência russa ensina
que existe “vida” depois da destruição ultraliberal, e que será possível
refazer o Brasil, depois que o senhor Guedes e seu capitão já tiverem
passado em conjunto para galeria dos grandes erros ou tragédias da
História brasileira.

Setembro de 2019

/*José Luís Fiori –* Professor permanente do Programa de Pós-Graduação
em Economia Política Internacional da UFRJ, coordenador do grupo de
pesquisa “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo”, e do Laboratório
de “Ética e Poder Global”, pesquisador do Instituto de Estudos
Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep).
Publicou, “O Poder Global e a Nova Geopolitica das Nações”, Editora
Boitempo, 2007 e “História, estratégia e desenvolvimento”, Boitempo, em
2014./

1 – Sobre este ponto, vide a excelente exposição do professor Franklin
Serrano, em “Pensando o Brasil: quem gosta de crescimento é o
trabalhador” (<https://www.youtube.com>).

In
GGN
https://jornalggn.com.br/artigos/para-pensar-sobre-o-futuro-depois-do-senhor-guedes-e-seu-capitao-por-jose-luis-fiori/
16/9/2019

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